O suspeito da morte do ator Bruno Candé, que morreu baleado no sábado em Moscavide, vai aguardar o julgamento em prisão preventiva, adiantou esta segunda-feira à agência Lusa fonte judicial.

Segundo a mesma fonte, o homem de 76 anos foi ouvido esta manhã no Tribunal de Loures, tendo-se “remetido ao silêncio”.

Bruno Candé, o ator de 39 anos que morreu este sábado após ter sido “baleado em várias zonas do corpo” na avenida de Moscavide, já tinha sido ameaçado e insultado pelo autor dos disparos, um homem de 80 anos, segundo testemunho da família.

Perante ameaças de morte, alegadamente feitas dias antes do ataque e vários insultos racistas, a família considera que “fica evidente o caráter premeditado e racista deste crime” e exige que “a justiça seja feita de forma célere e rigorosa”. Mas a Polícia de Segurança Pública (PSP) disse que, em seis testemunhas ouvidas sobre a morte de Bruno Candé, “nenhuma falou de racismo”.

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Bruno Candé tinha três filhos menores — dois rapazes de cinco e seis anos e uma rapariga que fará três anos em agosto, segundo o jornal Público — e pertencia à companhia de teatro Casa Conveniente desde 2010, tendo participado em telenovelas como a “Única Mulher” e “Rifar o Coração”, revelou a família.

Em comunicado, a família de Bruno Candé descreve-o como uma “pessoa extremamente afável e sociável” e revela que o “assassino já o havia ameaçado três dias antes”. Em declarações ao Correio da Manhã, a família da vítima diz que o autor dos disparos terá afirmado: “Vai mas é para a senzala” (uma expressão associada à escravatura) antes de abrir fogo.

O suspeito é um enfermeiro aposentado de 80 anos. Os disparos foram feitos em plena rua, na avenida de Moscavide à hora de almoço e o atirador foi imobilizado pelos populares até à chegada das forças de segurança. Na altura, Bruno Candé estava com o cão que terá sido um dos motivos para desacatos anteriores entre os dois homens.

Marta Félix, atriz da companhia Casa Conveniente e colega de Bruno Candé, contou ao Público que a morte do ator foi o culminar de “uma discussão na quarta-feira, depois de um homem ter tropeçado na cadela do Bruno”: “O homem terá ameaçado o Bruno de morte e, hoje [sábado], quando ele estava numa esplanada na avenida principal de Moscavide, onde ia assiduamente, o homem avistou-o, terá ido pouco depois a casa buscar uma arma, e disparado quatro tiros”.

O comunicado da família revela ainda que o ator sofreu em tempos um acidente de bicicleta, por atropelamento, e desde então ficou com sequelas em todo o seu lado esquerdo”, ficando com limitações de mobilidade evidentes, mas manteve-se ligado ao teatro. A cadela que o acompanhava, da qual era “inseparável”, “foi importante na sua recuperação”.

SOS Racismo não tem dúvidas: foi um crime “com motivações de ódio racial”

Entretanto a associação SOS Racismo exigiu “justiça” para este caso, considerando tratar-se de “um crime com motivações de ódio racial”.

“Hoje, pelas 14h, Bruno Candé Marques, cidadão português negro, foi assassinado com 4 tiros à queima roupa. O seu assassino já o havia ameaçado de morte três dias antes e reiteradamente proferiu insultos racistas contra a vítima”, garante o SOS Racismo em comunicado.

Para a associação, “o caráter premeditado do assassinato não deixa margem para dúvidas de que se trata de um crime com motivações de ódio racial”. No comunicado, a SOS Racismo pede que o “assassinato do Bruno Candé Marques não seja mais um sem consequências”, exigindo que “justiça seja feita”.

A concelhia do Bloco de Esquerda já veio pedir que se apurem as circunstâncias da morte do ator. Em declarações emitidas este fim de semana, o Bloco disse: “O assassinato de Bruno Candé Marques choca-nos profundamente e obriga-nos a todos, enquanto sociedade, a refletir sobre como foi possível acontecer em plena luz do dia no centro de Moscavide”.

A mensagem contrasta com a mensagem do líder do Chega, que nega haver motivações racistas na origem do caso, apesar de a PSP ainda não saber o motivo do crime: “Acabem lá com essa ladainha habitual do racismo. Não somos um país racista! Nada neste homicídio aponta para crime de ódio racial”, proferiu André Ventura no Twitter.

PSP ainda não tem certezas sobre o motivo do crime

Questionado sobre se o crime foi motivado por racismo, a vítima era de raça negra, Bruno Pires da PSP referiu que “a única coisa que se sabe, e que poderá ser útil para a investigação, é que já existem relatos ao longo desta semana de desacatos”, mas a PSP ainda desconhece o motivo dos mesmos. “Dos relatos que conseguimos, não foi adiantada muita informação”, reforçou.

Nas redes sociais circula agora a informação que uma cadela preta que acompanharia Bruno Candé, de porte médio e alegadamente chamada “Pepa”, terá fugido na sequência dos disparos. Pede-se que quem a vir contacte a PSP de Sacavém.

JÁ FOI ENCONTRADA Cadela de porte média – labradora (?) – preta, olhos castanhos, com uso de peitoral cor-de-rosa,…

Posted by Ricardo Mesquita de Oliveira on Saturday, July 25, 2020

O alerta para a situação de disparos na avenida de Moscavide ocorreu pelas 13h20. Quando a Polícia de Segurança Pública (PSP) chegou ao local encontrou “um homem que tinha sido baleado em várias zonas do corpo por outro homem”.

“O detido, após os disparos, foi retido por populares até à chegada da PSP, não ofereceu resistência e, neste momento, encontra-se na nossa custódia”, referiu o comissário Bruno Pires, acrescentando que o suspeito está num dos departamentos policiais do Comando Metropolitano de Lisboa.

O crime ocorreu na via pública, “em plena avenida de Moscavide”, onde foram registados “alguns disparos” cujos vestígios “estão a ser recolhidos pela Polícia Judiciária”, por se tratar de um crime de homicídio, avançou o comissário da PSP. A ocorrência mobilizou “dezenas de polícias”, inclusive devido à necessidade de interromper o trânsito na avenida de Moscavide.

Notando que não tem “acesso aos autos formais” nem “ao que vai constar do teor da acusação” do Ministério Público, o comissário do COMETLIS da PSP refere que as testemunhas “estavam na via pública e ouviram os disparos”, não tendo ouvido insultos ou ameaças racistas. Diz mais: os relatos das testemunhas ouvidas no local parecem apontar para “algum desaguisado” entre “os dois sujeitos processuais”, não havendo ainda qualquer indício de que o desaguisado estivesse relacionado com “a cor da pele” da vítima.

“Não tenho acesso a qualquer informação que me leve a poder dizer que A chamou nomes a B ou C, discriminatórios em termos de cor de pele”, referiu ainda o comissário Luís Santos.

PSP: em seis testemunhas ouvidas sobre a morte de Bruno Candé, “nenhuma falou de racismo”

Em 2015 dizia: “Eu sempre quis ser ator, sabes?”

Nascido e criado na Zona J, Bruno Candé era visto como alguém “de trato fácil e de gargalhada sonora”, como detalhava o Observador aqui, em 2015.

Na altura, falava assim do seu percurso: “Eu sempre quis ser ator, sabes? Eu tinha, sei lá?, uns oito anos, e no nosso lar nós tínhamos aquelas atividades de final de ano, e havia teatro e tal. Um amigo meu, o Milton, desistiu em cima da hora, um dia antes da apresentação, e eu, também em cima da hora, tive que preparar qualquer coisa. O que é que eu fiz? Fiquei a noite toda acordado, a ver o vídeo da Tina Turner com o Bryan Adams, sabes qual é?, aquele do “It’s only love” [e trauteia o refrão], e fiz uma imitação do caraças”.

Virar a vida de pernas para o ar

A primeira peça que fez mais seriamente foi “A Missão”, de Heiner Müller, encenada por Mónica Calle — mas também frequentou o Chapitô, fez um workshop com Bruno Schiappa e tentou um casting para um espectáculo de La Féria, quando tinha 16 ou 17 anos.

Bruno Candé recordou o primeiro encontro com Calle, no espaço antigo da Casa Conveniente no Cais do Sodré, assim: “Quando lá cheguei, disse: é aqui? É aqui que vão fazer teatro? Estava à espera de um palco, de uma cortina, de uma plateia. Não havia nada disso. Mas logo que comecei a trabalhar com ela [Mónica Calle], percebi que tudo aquilo fazia sentido exatamente como era”.

Uma amiga de longa data de Bruno Candé chamada Emilita Cassamá recordava-o assim: “Sei que ele sempre teve dentro dele o bichinho do teatro, e tinha a certeza que ele um dia ia ser ator, um grande ator. E ele é muito importante para a Casa Conveniente, porque toda a gente o conhece, toda a gente gosta dele, tem um grande carinho por ele, e muitos também vêm por causa dele, porque ele insiste. E depois gostam e ficam”.

Notícia atualizada às 14h35 com informação acerca da prisão preventiva do suspeito.