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Raoul Wallenberg: o sueco que salvou milhares de judeus em Budapeste

Arquiteto e homem de negócios, foi diplomata na Hungria durante a Segunda Guerra Mundial. Salvou milhares da deportação e morte. Fazemos a pré-publicação da biografia de Raoul Wallenberg.

É o protagonista de uma das mais fascinantes e, ao mesmo tempo, misteriosas histórias da Segunda Guerra Mundial. Raoul Wallenberg era arquiteto. Também era home de negócios. Mas quando trocou um trabalho estável em Estocolmo por uma arriscada missão diplomática em Budapeste, tornou-se uma figura histórica. É essa figura que está no centro de um novo livro, “O Caso Wallenberg”, de Ingrid Carlberg, que chega às livrarias a 14 de maio.

Wallenberg faz parte do lote de nomes como Oskar Schindler ou Aristides de Sousa Mendes, homens em posições de poder que conseguiram, de forma mais política ou mais administrativa, salvar judeus da deportação e do envio para campos de concentração. No caso do biografado neste livro que foi originalmente publicado em 2015, a estratégia passava por documentação laboral e de asilo, que garantia a proteção do estado sueco sobre milhares de pessoas. No excerto que aqui publicamos, revela-se parte do esquema montado por Wallenberg, de que forma foi mantido e como conseguia resultados.

Após o fim da guerra, a história de Raoul Wallenberg ganhou contornos ainda mais enigmáticos. Acabou por ser detido pelas forças soviéticas, e terá morrido na prisão em 1957. Porém, as circunstâncias e os reais factos dos últimos anos da vida do diplomata só com este livro ganharam novos e mais coesos esclarecimentos. A autora é a jornalista sueca Ingrid Carlberg.

A capa de "O Caso Wallenberg", de Ingrid Carlberg, na edição portuguesa da Casa das Letras

Raoul estabeleceu regras rígidas para os processos que regiam a atribuição dos passaportes de proteção. Para o efeito, foram desenvolvidos formulários de candidatura específicos, que cada pessoa tinha de preencher e entregar. O objetivo destes formulários era provar a ligação do requerente à Suécia, quer através de uma associação familiar quer através de uma associação empresarial. Se se tratava de negócios, havia várias condições que tinham de ser cumpridas: o dinheiro que ganhavam com as operações suecas tinha de representar uma proporção comprovadamente significativa das transações comerciais da empresa húngara; a relação tinha de ter durado vários anos; e o requerente devia ter tido um papel importante na empresa. Raoul também introduziu uma terceira categoria de proteção, destinada a artistas, «agentes de teatro» e outras pessoas que trabalhavam nas artes. Este dossiê foi marcado com as letras KL, que significa Kulturleute (pessoas da cultura).

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Cada caso era examinado por um painel composto por quatro dos colegas mais próximos de Wallenberg, entre os quais estavam Hugó Wohl, Vilmos Forgács e Pál Hegedűs. Pelo menos três deles tinham de estar de acordo para que um pedido fosse aprovado. Com o tempo, quando Raoul estendeu e reformulou a sua construção burocrática, a decisão do painel também passaria a ser examinada por revisores e auditores adicionais, mas ele ainda não chegara a esse ponto. Por último, o próprio Raoul determinava o destino do requerente com a sua própria assinatura. Só então o passaporte de proteção podia ser entregue a Danielsson, para um carimbo final e assinatura.

Wallenberg não tinha intenção de iniciar uma ação relâmpago irrefletida. A sua ideia de salvar vidas baseava-se numa burocracia eficaz e rigorosa, pelo menos, nesta fase. As condições rigorosas que ele foi forçado a adotar eram necessárias para haver credibilidade, mas também tiveram algumas consequências. Para quem lia as condições, ficava claro que apenas os mais abastados de Budapeste podiam ser ter possibilidade de obter um dos passaportes de proteção suecos. Por isso, Raoul e os seus colegas tiveram de lidar com o rumor de que a missão de resgate sueca não estava interessada em ajudar os judeus pobres.

Desde o início, o plano era que Raoul voltasse à Suécia umas semanas depois de fazer um relatório inicial aos americanos. Não foi isso que aconteceu. No início de agosto, no entanto, Per Anger foi a Estocolmo, para pôr a família em segurança. Durante o verão, Budapeste sofrera mais de um bombardeamento e Per Anger era o único membro da equipa que tinha família. A mulher, Elena, passava muito tempo com a filha de 3 meses, Birgitta, na casa de evacuação da legação sueca, no lago Balaton. Mas isso não era uma solução sustentável.

Nessa altura, Raoul já contara tanta coisa sobre a sua missão a Per Anger que podia pedir-lhe para se encontrar com Iver Olsen, em Estocolmo, e pô-lo a par da situação. E também deu a Anger alguns pontos que gostava que ele discutisse na reunião que ia ter no MNE. Entre outras coisas, Raoul queria acabar com quaisquer ilusões que os diplomatas que estavam em Estocolmo pudessem ter: os alemães eram, e continuariam a ser, contra a saída de judeus para a Suécia. Assim sendo, por esse meio, os suecos só podiam ajudar um número muito reduzido de pessoas. Se queriam ajudar um número muito maior, teriam de se concentrar na organização da proteção local, dentro dos limites impostos pelos recursos disponíveis. E observou que «também não é do interesse sueco acolher um número muito grande de judeus».

Pediu também a Per Anger que arranjasse maneira de o MNE transmitir a Kálmán Lauer os relatórios de Raoul, «uma vez que ele precisa desta informação para recolher fundos adicionais e é o único que pode gerir o dinheiro». Na mensagem que enviou a Lauer, através de Anger, Raoul disse-lhe, sem rodeios, que precisava urgentemente do dinheiro dos americanos.

O MNE de Estocolmo classificou a missão de Wallenberg como «delicada». Umas semanas depois, à volta de Raoul ninguém tinha dúvidas de que o seu trabalho em Budapeste não se limitaria a escrever avaliações secas sobre a situação no país.

Raoul escreveu que usaria a quantia disponibilizada para os custos do escritório. Além disso, queria comprar produtos enlatados, para os poder distribuir de acordo com as necessidades. Também não era barato garantir casas para as famílias judias que agora seriam postas sob proteção sueca: Raoul calculou o custo de abrigar 2 mil pessoas e estimou que precisava de cerca de 75 mil coroas suecas para toda a operação (aproximadamente 130 mil euros hoje). «Os judeus “ricos” não têm dinheiro desde que este foi confiscado», lembrou Raoul. Pediu a Lauer que lhe enviasse mil cigarros, dois quilos de café, alguns sabonetes e mil folhas de papel de máquina de escrever padrão.

Apesar das circunstâncias trágicas e dos muitos obstáculos financeiros, foi, ao que tudo indica, um Raoul saudável e estimulado que, no fim, ainda acrescentou uma carta para a sua mãe à coleção de documentos que entregou a Per Anger, antes da partida para Estocolmo. «Vivi aqui talvez as três ou quatro semanas mais interessantes da minha vida. Embora, à nossa volta, haja uma tragédia de proporções inimagináveis, os meus dias e as minhas noites estão tão cheios de trabalho que só penso nisso de vez em quando», começou ele por escrever.

Quem leu a carta não pôde deixar de ver que Raoul gostava da camaradagem no departamento humanitário. Os seus dias eram tão intensos e tão cheios de significado que quase se esqueceu do seu próprio aniversário, a 4 de agosto.

«O meu aniversário foi muito agradável porque, por coincidência, só me apercebi da data nessa mesma tarde e mencionei-a à minha muito competente secretária, a condessa Nákó. Duas horas depois, recebi um bonito presente composto por pasta, agenda, tinteiro, etc.; bem como uma garrafa de champanhe e flores.»

Raoul disse à mãe que arrendara uma «casa do século xviii, muito bonita, em Várhegy (colina do Castelo) com mobiliário muito requintado, um maravilhoso jardinzinho e uma vista deslumbrante, e, às vezes, é aí que dou jantares oficiais».

A villa de pedra sobre a qual Raoul escreveu à mãe era na Ostrom utca 9-11 e ficava na encosta norte de Várhegy. Era, inegavelmente, uma casa impressionante, com lustres e lareiras em quase todas as divisões e estátuas de mármore no jardim. Raoul arrendou a casa a Aurél Balázs Sr, que era um homem rico, com um papel importante na vida empresarial de Budapeste. Era diretor e representante húngaro de muitas empresas estrangeiras na indústria tecnológica, nenhuma delas sueca, no entanto.

Raoul conheceu esta família judia através do seu filho de 25 anos, Aurél Balázs Jr, que era conhecido como Relli e pertencia ao círculo cosmopolita de jovens jetsetters que o sueco conhecera durante as suas viagens de negócios a Budapeste, em 1942 e 1943. Balázs Jr era considerado um playboy. Era bonito, mas nada mais, diriam amigos dele. Até o pai o achava demasiado dado a festas. Raoul ofereceu-lhe um emprego como motorista e, portanto, o rapaz era elegível para um passaporte de proteção. A proteção sueca significava que a família podia continuar a viver no outro edifício da propriedade, quando Raoul se mudou.

O MNE de Estocolmo classificou a missão de Wallenberg como «delicada». Umas semanas depois, à volta de Raoul ninguém tinha dúvidas de que o seu trabalho em Budapeste não se limitaria a escrever avaliações secas sobre a situação no país.

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Documentos conseguidos graças às medidas aplicadas por Raoul Wallenberg, que salvaram milhares de pessoas, colocando-as ao abrigo do estado sueco

Em Estocolmo, Iver Olsen ficou a saber que nem toda a gente, no MNE, gostava do que via. Encaminhou essas impressões para a sede do War Refugee Board, em carta datada de 10 de agosto de 1944:

«Indiretamente, tenho a impressão de que o MNE sueco está um pouco inquieto com as atividades de Wallenberg em Budapeste, e talvez sintam que ele pegou no assunto com demasiada força. Eles preferiam, é claro, abordar o problema judaico segundo a melhor tradição da diplomacia europeia, o que não ajudaria muito. Por outro lado, há muito a dizer sobre a possibilidade de nos movimentarmos tranquilamente neste tipo de trabalho. Seja como for, sinto que Wallenberg está a trabalhar imenso e a fazer as coisas bem, como era o objetivo.»

«A sua relação com a Suécia é a Kanthal Company»

A judia Alice Korányi, de 19 anos, nunca ouvira falar de uma empresa chamada Kanthal, na aldeia industrial sueca de Hallsta – hammar. Não conhecia suficientemente bem os negócios internacionais do pai nem do novo sogro. Mal sabia onde era a Suécia e, naturalmente, não conhecia Wallenberg, o novo diplomata da legação sueca de Budapeste. Como é que havia de conhecer? No início de agosto de 1944, já estava, há várias semanas, internada no campo de Kistarcsa, nos arredores de Budapeste. Tal como milhares de outros infelizes judeus, fora mandada para ali, à espera de ser transportada para Auschwitz – assim que os comboios recomeçassem a circular.

Alice tinha cabelo preto, pelo ombro, e olhos cinzento-aço. Em março, quando os alemães invadiram a Hungria, estava em Budapeste, hospedada num pensionato para meninas. Viera da pequena cidade húngara de Körmend, que ficava perto da fronteira austríaca. Mas Alice era de uma família burguesa e os pais tinham mandado a filha para a escola, em Budapeste.

Durante algum tempo, Alice viveu uma idílica existência estudantil na capital, com aulas de Antropologia e Arqueologia e animadas conversas noturnas sobre livros e música clássica. No domingo, 19 de março de 1944, tudo isso tinha mudado. No mesmo dia em que os alemães atravessaram a fronteira húngara, o filho do dono do pensionato foi ao quarto de Alice. Ela e a sua colega de quarto, Adrienne Mátyás, tinham deixado de ser bem-vindas ali, disse-lhes ele. Era natural, sublinhou. Afinal de contas, eram ambas judias.

Em março, Alice ainda estava solteira e o seu apelido era Breuer. Foi atirada para a rua e só pensava em tentar regressar à pequena cidade de Körmend, para junto da mãe, do pai e da irmã mais nova, Ibi. Não era uma tarefa fácil, na primavera de 1944, sobretudo para uma jovem judia que agora tinha de usar uma grande estrela amarela no bolso do casaco e que perdera o direito de usar os transportes públicos. Mas acabou por conseguir, apenas para descobrir que a sua família estava agora internada num dos muitos guetos das zonas rurais húngaras, numa preparação para as deportações em massa. Alice mudou-se para lá, com a mãe, o pai e a irmã mais nova. E aguardavam o seu destino comum.

O súbito regresso de Alice Breuer a casa deixou desesperado o seu namorado, Erwin Korányi. Percebeu o perigo em que ela estava e não ficou de braços cruzados. Pensou no assunto e resolveu roubar uns papéis timbrados e uns selos. Com isso, criou uma falsa carta oficial da universidade em Budapeste dirigida ao comandante do gueto de Körmend. A carta exortava a «estudante de Medicina» Alice Breuer a apresentar-se ao reitor da universidade, o mais rapidamente possível, «no interesse da nação».

Os selos e os papéis timbrados impressionaram os gendarmes que, na sua maioria, eram pouco instruídos. Assim, concederam dez dias livres a Alice e ela voltou à capital. «Se nos casarmos, podes ficar em Budapeste», disse-lhe Erwin Korányi, e assim fizeram. Dez dias depois, eram marido e mulher e, do gueto de Körmend, chegou uma carta e um bolo que a mãe dela, Cecil, sabe-se lá como, conseguira fazer e enviar em segredo. «Toma conta da minha Lici», escreveu Cecil a Erwin. «A partir de agora, és responsável por ela.» Uns dias depois, outro comboio sobrelotado partiu de Körmend para Auschwitz. A mãe, o pai e a irmã de Alice, Ibi, estavam numa das carruagens. Nunca mais voltaram.

Três semanas depois, apareceu um guarda e gritou o nome dela. Pensou que chegara a sua vez de ser deportada, mas levaram-na a dois polícias que lhe disseram que, como era cidadã sueca, ia ser levada para a legação da Suécia em Budapeste.

A recém-casada Alice Korányi foi viver com Erwin e os sogros. Recentemente, tinham deixado a sua bela casa de Budapeste para, nas palavras de Erwin, viverem «num buraco cheio de gente e degradado, num edifício patético», em Peste. O miserável edifício estava marcado com uma grande estrela amarela sobre um fundo preto.

Num dia em julho, Alice esperava à entrada do prédio, às 11 da manhã, pois tinha o cuidado de não desobedecer ao recolher obrigatório para os judeus. Logo que o relógio marcou a hora certa, ela saiu – e foi presa, um minuto depois. «É muito cedo», disseram os gendarmes, e foi desta forma que Alice acabou no campo de Kistarcsa, à espera de transporte para Auschwitz. Mais uma vez, a situação parecia sombria. Alice sofria maus-tratos todos os dias.

Três semanas depois, apareceu um guarda e gritou o nome dela. Pensou que chegara a sua vez de ser deportada, mas levaram-na a dois polícias que lhe disseram que, como era cidadã sueca, ia ser levada para a legação da Suécia em Budapeste. Alice, que fora severamente agredida, após a detenção, convenceu-se de que ficara com graves danos cerebrais. «Disseram que eu era sueca. Eu não sabia nada sobre a Suécia e não fazia ideia de onde o meu sogro, que era ferreiro, comprava o aço. Fiquei completamente desnorteada», disse mais tarde sobre a situação.

Claro que fora Erwin a tratar de tudo. O pai dele comprava um aço especial à empresa Kanthal, na aldeia sueca de Hallstahammar. Felizmente, já o fazia há muitos anos e tinha os documentos que o comprovavam. Erwin Korányi foi ao gabinete de Wallenberg. Conseguiu provar a sua ligação empresarial com a Suécia e, posteriormente, a legação prometeu-lhe que ia ajudar a sua jovem mulher. Ele próprio falara com Wallenberg e considerava o sueco como «um homem enérgico, claramente impulsionado por uma profunda força interior».

Assim, a polícia levou Alice Korányi, de 19 anos, para os novos escritórios do departamento humanitário. Atrás da secretária estava um homem de cabelo ralo, educado e que falava num tom calmo que lhe ofereceu um pouco de chocolate, que tirou de uma caixa, e lhe disse que o marido dela o tinha procurado três vezes. E explicou que, a partir dali, ninguém podia fazer nada contra ela, porque estava sob proteção de um país neutro. E, depois, entregou-lhe um certificado, num papel de tamanho A4. Alice sentia-se enjoada e com tonturas. Suécia? Isso não era na Escandinávia? Quando estava prestes a partir, Wallenberg disse-lhe: «Lembre-se, a sua relação com a Suécia é a empresa Kanthal, em Hallstahammar.»

Raoul conhecia bem a Kanthal. Conhecia o proprietário, Hans von Kantzow, e conhecera o seu filho e filhas. Von Kantzow desempenhara um papel importante no outono de 1938, quando Raoul ajudou o engenheiro judeu-alemão Erich Philippi a fugir de um campo de concentração da Alemanha para a Suécia.

Com o documento na mão, foi uma Alice atordoada que saiu, a cambalear, para a rua, onde o seu jovem marido, Erwin, a esperava. Depois de um banho e de ter tirado os piolhos, Alice regressou a Peste, ao buraco infeto onde viviam os sogros. A partir desse dia, toda a família Korányi começou a praticar a frase: «A empresa Kanthal, em Hallstahammar.» Tornou-se o seu mantra. Todos eles tinham ganho proteção da Suécia graças à ligação com essa empresa.

Pouco depois, tanto Alice como o marido tinham um novo passaporte de proteção sueco. E esta foi a primeira vez, mas não a última, em que Raoul Wallenberg foi em seu auxílio.

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No início de agosto, Raoul tinha 40 funcionários e o departamento não parava de crescer

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Em agosto, o trabalho no departamento humanitário, na Minerva utca, começou a estabelecer uma rotina. Wallenberg era o centro das atividades. Falava continuamente ao telefone, fazia anotações ou dava instruções num alemão fluente, mas que, aos ouvidos dos colegas de trabalho, soava com sotaque americano, «uma espécie de jargão empresarial do outro lado do mar», como o descreveu o irmão de Gábor Forgács, Pál. «… uma linguagem que, no entanto, lhe assentava bem, de uma forma engraçada, tal como o casaco corta-vento e o chapéu de feltro mole ou, mais tarde, o capacete de aço cinzento e o saco-cama».

Quando não estava a escrever, Raoul estava a desenhar. Assim como na Mid-European Trading Company, também aqui a sua secretária estava sempre cheia dos seus esboços rápidos e rabiscos. «Quando estava a falar ao telefone ou quando ouvia alguém contar- -lhe alguma coisa, quando estava a falar, sim, mesmo quando pensava, ele estava sempre a desenhar», disse, mais tarde, a sua secretária, Frau Falk.

Muitos dos colegas de trabalho de Raoul também se interessavam por arte. Quando, por acaso, conseguia ter um momento de paz gostava de conversar com eles sobre obras-primas da história da arquitetura. E, muitas vezes, desenhava pequenos esboços para mostrar aquilo em que estava a pensar. Mas, na maior parte do tempo, trabalhava a um ritmo infernal. Andava depressa, pensava depressa e tomava decisões depressa, sem perder o controlo organizacional. Havia quem o achasse tenso, outros interpretaram a sua atitude como uma expressão do seu foco e determinação. Desde o início, os colegas ficaram impressionados com a sua incansável energia e capacidade de trabalho.

Raoul Wallenberg tinha o seu gabinete na parte de trás da villa, com uma grande secretária e o seu próprio telefone. Na sala ao lado, havia uma fila de datilógrafas, em secretárias ao lado umas das outras. Tinham a tarefa de aceitar os pedidos de passaportes de proteção e de lhes juntar os telegramas que chegassem dos supostos familiares ou parceiros de negócios, na Suécia. Um paquete corria de um lado para o outro, entre o departamento humanitário e a legação, no edifício ao lado, porque era aí que ficava a sala do telégrafo.

Algumas daquelas datilógrafas tinham sido recrutadas por Raoul entre as alunas de Sueco de Valdemar Langlet. Desempenharam um papel importante quando, em meados de agosto, começou o processamento dos passaportes de proteção, porque sabiam ler sueco e, assim, conseguiam classificar as respostas, que chegavam por telegrama, em dois grupos: as que confirmavam a ligação do requerente com a Suécia e as que não confirmavam. Os candidatos aceites tinham de apresentar duas fotografias.

Gabriella Kassius, na altura Gabriella Margalit, foi uma das estudantes de Sueco que, em agosto de 1944, começou a trabalhar para Wallenberg. Recorda que colavam as fotografias nos passaportes, datilografavam o nome e, depois, anexavam as respostas vindas da Suécia com um clipe. Raoul revia cada um dos processos e assinava-os. Segundo Gabriella Kassius, ele era muito exigente e sublinhava constantemente o quão importante era que não houvesse confusões, que era uma questão de vida ou de morte. Raoul estava ansioso para que a equipa começasse rapidamente as suas próprias atividades de resgate. Não queria que os passaportes protetores sofressem a mesma perda de credibilidade que as cartas da Cruz Vermelha. Isso arruinaria tudo, dizia ele.

Todas as noites, Raoul Wallenberg ia ter com Ivan Danielsson, ao edifício da legação, levando-lhe as resmas de passaportes protetores processados daquele dia. E eram todos carimbados e assinados sem que o ministro lhe fizesse uma única pergunta complicada.

Por vezes, como no caso de Alice Korányi, havia necessidade de contacto direto com os campos de internamento para que os prisioneiros com ligações suecas pudessem ser retirados. Raoul definiu, rapidamente, uma rotina para esses casos. Escrevia uma carta de verificação, confirmando que o passaporte fora emitido, certificava-se de que todos os carimbos eram postos no sítio certo, enviava o original ao ministro e uma cópia, por correio, ao comandante do campo de internamento em questão.

No início de agosto, Raoul tinha 40 funcionários e o departamento não parava de crescer. Raoul, que era um hábil administrador, dividiu-os em grupos, desde o início. Havia «a secção de receção, a secção de registo, contabilidade, arquivo, a secção de correspondência, bem como a secção de transportes e habitação». Esta abordagem disciplinada foi essencial. Raoul tinha 4 mil pedidos em cima da sua secretária e, em média, havia 600 novos pedidos por dia. A pressão foi tão grande que o gabinete ficou sem formulários de candidatura e os requerentes tiveram de copiar os documentos uns dos outros, com um hectógrafo antiquado.

Todas as noites, Raoul Wallenberg ia ter com Ivan Danielsson, ao edifício da legação, levando-lhe as resmas de passaportes protetores processados daquele dia. E eram todos carimbados e assinados sem que o ministro lhe fizesse uma única pergunta complicada.

A secção de transportes e habitação também não estava parada. A legação sueca acabara de receber uma promessa concreta sobre um edifício, em Peste, que seria esvaziado para abrigar os judeus suecos protegidos. «Com o tempo, os edifícios próximos, na mesma rua, serão transformados em campos de trânsito suecos», escreveu Raoul Wallenberg, num relatório de 6 de agosto de 1944.

Os americanos continuaram consideravelmente mais interessados em influenciar a direção do trabalho de Wallenberg do que o MNE sueco. O War Refugee Board, em Washington, depressa enviou instruções adicionais a Iver Olsen para que fossem encaminhadas para o recém-recrutado emissário, em Budapeste. Um dos pontos levantados foi o de que Wallenberg deveria procurar a cooperação da legação portuguesa, uma vez que o Departamento de Estado norte-americano tinha constatado que os portugueses agiam secretamente em nome dos judeus. Num telegrama especial assinado pelo vice-secretário de Estado Edward Stettinius Jr, era pedido a Olsen para «expressar o grande apreço do WRB pelos esforços de Wallenberg».

A esperança do War Refugee Board sempre foi a de que Raoul conseguisse facilitar a saída da Hungria de grandes grupos de judeus. Mas, agora, Washington dava luz verde ao desejo de Raoul de construir um campo, em Budapeste, para proteger os judeus. O WRB escreveu que estavam satisfeitos por terem recebido uma «estimativa do custo da operação do campo experimental sugerido, bem como as suas opiniões sobre até que ponto pode ser financiado sem fornecer gratuitamente divisas estrangeiras ao inimigo. A necessidade de proteção parece ser a base adequada para a seleção».

O War Refugee Board insistiu, também, que a principal orientação do trabalho de Raoul devia ser ajudar os judeus húngaros a fugirem do país. Era um dado adquirido que isso podia exigir negociações puramente «comerciais». No telegrama assinado por Stettinius, os americanos sugeriram, portanto, que Wallenberg procurasse Vilmos Billitz, do grupo empresarial Manfréd Weiss. Billitz era o homem que facilitara os contactos entre a família judia proprietária do grupo Manfréd Weiss e o principal negociador de «acordos comerciais» de Himmler, o oficial Kurt Becher. A negociação terminou em maio, com as SS a ficarem com o maior empreendimento industrial da Hungria, as fábricas Manfréd Weiss, em troca de garantir a livre passagem para cerca de 50 membros das famílias dos proprietários.

Billitz tinha, então, ajudado a organizar a fuga das famílias para a Suíça e para Portugal. Ainda ocupava um cargo nas empresas Manfréd Weiss e era o elo nomeado para Kurt Becher, que, após o seu sucesso em maio, continuou com mais dessas «negociações comerciais». Em breve, Wallenberg seguiria esse conselho.

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