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Reformar é preciso (mas é possível?)

O eleitorado envelheceu consideravelmente. Problema: a população com mais idade preocupa-se mais com a sua reforma do que com as reformas do país. Como é que se sai disso? Ensaio de Vítor Bento.

Há dois anos publiquei, no Observador, um ensaio elaborado à volta do seguinte gráfico, que, em dois momentos separados por 40 anos (1980 e 2020), distribui o eleitorado pelas fontes de rendimento, salientando a proporção dos eleitores potenciais que têm o seu rendimento directamente dependente do Estado, por alternativa aos que dependem directamente do sector produtivo (o Resto):

[As fontes e os cálculos subjacentes ao gráfico estão explicados numa adenda ao ensaio, publicada também no Observador na mesma data. O universo de eleitores potenciais (eleitorado) não corresponde ao conteúdo dos cadernos eleitorais, que estão consideravelmente inflacionados. Corresponde à população nacional e residente no país, com 18 ou mais anos; não inclui, portanto, os eleitores registados fora do país.]

O objectivo fundamental do gráfico, e do ensaio que nele se fundou, foi, como então escrevi, “demonstrar a alguns amigos, nostálgicos de um tempo que já não há”, que a estrutura social do eleitorado mudou consideravelmente desde esse tempo, pelo que pensar soluções ou mensagens políticas adequadas à sociedade desse tempo só poderá dar maus resultados (políticos) na sociedade actual. Nesse sentido, o gráfico mostrava, na sua simplicidade, como há 40 anos quase dois terços do eleitorado tinha o seu rendimento directamente originado na actividade produtiva (chamemos-lhe assim, por simplificação) e que essa proporção se reduziu, entretanto, para quase metade. Ao mesmo tempo que mais de 60% dos potenciais eleitores actuais passaram a ter o seu rendimento directamente dependente do Estado, seja este o fornecedor directo do mesmo (cerca de 50%), seja o decisor do rendimento fornecido pelo sector produtivo (cerca de 10% recebem salário mínimo, fixado pelo Estado).

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Feita a demonstração da realidade social do eleitorado, o ensaio desenrolava-se, depois, a explicar que ganhar eleições e conduzir reformas transformacionais requerem diferentes coligações sociais, o que torna muito difícil conseguir ganhar eleições a prometer reformas. Tanto mais que, com a disseminada iliteracia económico-financeira, não é fácil à generalidade das pessoas perceber – e muitos se empenham em que assim continue – a ligação entre a capacidade distributiva do Estado e as condições de funcionamento do sector produtivo, onde se gera o rendimento de que aquela depende, e cuja melhoria resulta de reformas transformacionais.

E também não tem sido feito muito esforço a explicar, paciente e persistentemente, que, para o Estado poder distribuir pelos eleitores potenciais uma fatia maior do rendimento nacional – com os partidos governantes a recolherem o respectivo crédito político –, teve que ir buscar os recursos ao sector produtivo, onde o rendimento é gerado, e por isso a carga fiscal aumentou cerca de 15 pontos percentuais durante o período em análise (colocando o país num dos mais elevados esforços fiscais, quando ocupa apenas o 19o.º lugar entre os 27 membros da UE em termos de PIB per capita). Ou ao rendimento das gerações futuras, através do endividamento que, não obstante as receitas que, pelo caminho, foram obtidas com as reprivatizações, fez aumentar a dívida pública em cerca de 70 pontos do PIB [Estes dados foram obtidos a partir da base europeia AMECO]. Com esta dissonância cognitiva – sobre quem distribui rendimento e quem o cria – é fácil fundar a ilusão de que o rendimento das pessoas depende mais do Estado (e dos seus dirigentes) do que das empresas, pelo que a conversa das reformas fica a parecer retórica fútil.

Manifestantes participam na Jornada Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos, organizada pela Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos – MURPI, para exigir a necessária reposição do poder de compra das pensões e um travão ao aumento do custo de vida, em Lisboa, 27 de outubro de 2023. JOÃO RELVAS/LUSA

Actualmente, 55% do eleitorado tem mais de 50 anos — eram 39% há 40 anos

JOÃO RELVAS/LUSA

Nestas condições, continuava o ensaio, a “quadratura do círculo” entre ganhar eleições e fazer reformas seria mais fácil com coligações políticas pós-eleitorais entre a representação fragmentada de interesses sociais diferentes, mas conciliáveis, do que com partidos catch-all, que têm, para ganhar eleições, que cavalgar a referida dissonância cognitiva, focando-se mais na distribuição pelo Estado no que nas condições necessárias para gerar rendimento. Não vou aqui repetir, por ser extensa, a argumentação do ensaio em torno das formas de superar este dilema político, remetendo-a para o mesmo.

Volto hoje ao tema, com um outro gráfico, que conduz ao mesmo dilema político, mas por outro caminho, embora não muito afastado do primeiro. Este novo gráfico mostra a evolução da estrutura etária do eleitorado durante os mesmos 40 anos:

[Os anos de referência dos dois gráficos não são totalmente coincidentes. O primeiro, que não foi refeito, toma os “anos redondos” de fim de década, enquanto este novo toma os inícios de década, que são os anos de realização dos Censos, que constituíram a sua fonte.]

Duas coisas ressaltam deste gráfico:

  • Actualmente, 55% do eleitorado tem mais de 50 anos (eram 39% há 40 anos);
  • E a idade mediana do eleitorado aumentou 10 anos entre o início e o fim do período, tendo metade do actuais eleitores potenciais mais de 54 anos (ou, dito de outra forma, metade do eleitorado nasceu antes de 1970).

Esta realidade demográfica mostra como o eleitorado envelheceu consideravelmente desde “o tempo que já não há”. [Tenha-se em atenção que o gráfico etário representa os eleitores potenciais e não os votantes. A experiência, e estudos vários, mostram que os jovens constituem uma proporção maior dos não votantes (abstencionistas), do que do eleitorado, pelo que a estrutura etária dos votantes é ainda mais envelhecida do que o gráfico revela].

A essência da mensagem de uma política que se queira reformista, mas esteja consciente de que sem ganhar eleições ninguém reforma, é explicar ao eleitorado reformado e próximo da reforma, de uma forma muito clara e convincente, que só com reformas políticas se garante a sustentabilidade duradoura das pensões dos reformados e, sobretudo, como é que uma coisa implica a outra.

As dificuldades políticas sugeridas por este novo gráfico podem ser resumidas no trocadilho fácil de que “a população com mais idade preocupa-se mais com a sua reforma do que com as reformas” (do país). Mesmo que a sustentabilidade daquela dependa destas. Mas isso, mais uma vez, não é fácil de perceber, pois que, entre outras coisas, os efeitos das reformas políticas têm demoras na sua materialização, ofuscando a ligação entre uma coisa e outra.

Se se quiser seguir uma linha mais analítica, recorrendo ao “teorema do eleitor mediano” para explicar a evolução dos sucessos e insucessos eleitorais – que outros dois gráficos do mesmo ensaio, sobre a evolução dos votos da direita e da esquerda convencionais, também mostravam – o que os dois gráficos aqui exibidos fundamentam é a deslocação das preferências do tal “eleitor mediano”, ocorrida desde 1980, e cuja aderência é necessária para ganhar eleições.

Deste modo, a essência da mensagem de uma política que se queira reformista, mas esteja consciente de que sem ganhar eleições ninguém reforma, é explicar ao eleitorado reformado e próximo da reforma, de uma forma muito clara e convincente, que só com reformas políticas se garante a sustentabilidade duradoura das pensões dos reformados e, sobretudo, como é que uma coisa implica a outra. Ao mesmo tempo que deverá procurar explicar, ao eleitorado mais novo, e de forma igualmente clara e convincente, como é que só com reformas políticas se podem conseguir, sustentadamente, salários mais elevados. Sem se conseguir explicar muito bem os nexos de causalidade – com poucas, mas claras, mensagens –, e tendo presente a realidade que os gráficos revelam, tudo o resto é pregação no deserto.

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