Uma equipa reduzida, avisos de potenciais constrangimentos e um plano de contingência pronto a ativar “sempre que necessário.” A situação no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca — mais conhecido por Amadora-Sintra e que serve cerca de 600 mil pessoas — tem inspirado “preocupação” após a demissão em bloco de dez médicos do serviço de cirurgia geral e consequente resignação do diretor. Foi um golpe numa equipa composta por 18 especialistas e 13 internos e obrigou a unidade hospitalar a dar início a uma campanha de recrutamento. Na origem de tudo isto está o regresso de um ex-diretor do serviço e um cirurgião que no ano passado denunciaram “más práticas generalizadas”.
“Era importante resolver isto de uma vez por todas”, diz ao Observador o ex-diretor Vítor Nunes, que depois de ter sido reintegrado no serviço a 1 de outubro tem colaborado particularmente nas urgências. No espaço de um mês após o regresso de dois cirurgiões — além de Vítor Nunes, regressou também António Pedro Gomes —, foram conhecidas as onze demissões. Mas as notificações de saídas dos médicos, a que se seguiu a do diretor, já se faziam anunciar muito antes. O clima de conflitualidade no serviço de Cirurgia Geral do hospital motivou até uma visita do presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos (OM) ao conselho de administração.
“Se voltam duas pessoas que entraram em conflito com os restantes elementos do serviço, que levaram quase à destruição do serviço há dois anos, o que fez com que fossem em mobilidade para outro lado, obviamente isso só vai levar a uma situação que é a destruição do serviço“, diz Paulo Simões a propósito das demissões em bloco.
Ao Observador, a Unidade Local de Saúde (ULS) de Amadora-Sintra, a que pertence o hospital, reconheceu que as demissões foram provocadas pelo regresso dos médicos, mas afastou o cenário descrito pela OM. Numa resposta escrita, afasta o risco de encerramento de Cirurgia Geral e refere que o serviço “está a funcionar adaptado ao contexto atual”, com uma equipa “ajustada à saída dos elementos.”
A ULS não se pronunciou sobre o tipo de constrangimentos que têm decorrido, mencionando apenas que sempre que se verificarem dificuldades no cumprimento das escalas “informará as autoridades competentes.” Por esta altura, a equipa funciona apenas com nove especialistas, incluindo o diretor, que não quis prestar esclarecimentos nem se se mantém em funções até ao dia 31 de dezembro. Até lá, ainda se preveem mais demissões, com o presidente da OM a explicar que pelo menos mais duas pessoas mostraram intenções de sair.
Muitos médicos saíram do hospital sem ter assegurado outro trabalho
Os esforços de contratação já começaram no Amadora-Sintra, confirmou o Observador junto do hospital. Ainda assim, a tarefa poderá revelar-se difícil, acredita Paulo Simões. “Com este clima e com as informações que correm, obviamente que ninguém estará muito disponível para assumir quer o serviço quer o trabalho no serviço”, antecipa. O presidente da Secção Regional do Sul da OM não ficou surpreendido com as recentes demissões, tendo em conta os avisos feitos pelos próprios médicos ao conselho de administração do hospital.
“Todos os médicos que tinham dito que não estavam disponíveis para trabalhar saíram”, refere. Paulo Simões acrescenta que, em muitos casos, sem ter assegurado outro lugar, mas não aceitando trabalhar com os dois médicos reintegrados na unidade de cirurgia. “Isso talvez tenha alguma significado: as pessoas entendem que não há condições para o desempenho de funções de forma adequada”, sublinha. Sobre a resignação do diretor do serviço, lembra que sempre garantiu que se manteria à frente do serviço “enquanto tivesse condições de prestar assistência à população.”
Os dois médicos cujo regresso causou mal-estar estiveram ao longo do último ano a trabalhar no Hospital de Vila Franca de Xira. “Fomos porque nos propuseram, porque disseram que era importante, mas lá não somos aproveitados”, considera Vítor Nunes. De regresso ao hospital onde trabalhou durante 27 anos, o ex-diretor do serviço explica que enquanto cirurgião não se sentia “realizado” na equipa de Vila Franca.
O envio para aquela unidade de saúde aconteceu já depois de Vítor Nunes deixar de ser diretor do serviço de Cirurgia no Amadora-Sintra. Tinha apresentado a demissão do cargo em fevereiro de 2022, após vários profissionais de saúde da equipa o terem acusado de assédio laboral. Como o Observador noticiou na altura, o conselho de administração quis mantê-lo em funções até ao término do inquérito interno instaurado após a comunicação das queixas, mas o cirurgião insistiu na saída. Continuou, ainda assim, a integrar a equipa de cirurgiões, mas como médico. A investigação acabou por ser arquivada por falta de provas sobre a prática desses atos, que o médico voltou a sublinhar esta segunda-feira não ter cometido: “Nunca houve bullying, nunca houve perseguição.”
Os seus últimos meses no Amadora-Sintra também foram marcados pelas denúncias que fez chegar à diretora clínica sobre “más práticas” generalizadas no hospital. Inicialmente, foram noticiadas pelo jornal Expresso, que em janeiro do ano passado citava uma carta enviada por dois cirurgiões da unidade à Ordem dos Médicos. O organismo acabaria mesmo por iniciar uma investigação levada a cabo por peritos independentes.
Na missiva que a OM recebeu alegava-se que vários doentes operados “morreram ou ficaram mutilados” como resultado de uma “prestação de cuidados ao doente cirúrgico que não coincide com a legis artis” — isto é, as regras e os princípios técnicos e científicos por que se devem pautar todos os atos clínicos. A notícia falava de 22, mas o Observador confirmou que apenas 18 estavam sob investigação.
A denúncia não se centrava num médico em particular, por se tratar de uma “situação sistémica”, descreviam os denunciantes. Era mencionado o caso de um utente na casa dos 60 anos que morreu “exsanguinado, com perto de 15 transfusões”, depois de ter sido submetido a uma operação ao baço apesar de não ter anteriormente qualquer indicação para a realizar. Também era referida a história de uma pessoa com cerca de 60 anos que foi submetida a uma operação ao pâncreas por suspeitas de um tumor que, afinal, não existia, e de um “doente que fez radioterapia e não tinha tumor.”
Nenhuma das queixas se referia a alegadas complicações ocorridas quando Vítor Nunes ainda era o diretor de serviço. Diziam respeito a casos acompanhados no hospital já depois de Paulo Fernando Lopes Alves assumir o cargo, uma nomeação que chegou a ser posta em causa pelo ex-diretor de serviço.
Formação e prestação de cuidados à população pode ser “comprometida”
A investigação da Ordem dos Médicos acabou por concluir que “não foram encontrados indícios de má prática generalizada, ou violação das ‘legis artis‘ nos casos denunciados”. Foi, no entanto, identificada uma situação em que teria sido adotada uma “má opção cirúrgica” que poderia configurar um caso de má prática. Acolhendo estas conclusões, o Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca instaurou procedimentos disciplinares aos médicos que participaram na cirurgia. O processo teve fim com o envio das conclusões ao Ministério Público, ao Ministério da Saúde, à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e à Entidade Reguladora da Saúde.
Atualmente, as preocupações da Ordem dos Médicos, em particular da Secção Regional do Sul, estão concentradas na falta de médicos na equipa de cirurgia. “A preocupação, uma vez que a ordem não tem capacidade executiva, é com a formação dos internos e a prestação de cuidados à população, que o serviço dificilmente irá cobrir”, alertou Paulo Simões.
Avisos também ecoados por vários sindicatos logo nos primeiros dias após a demissão em bloco. “É uma situação complicada e complexa que não tem solução fácil”, lamentou à Lusa Nuno Rodrigues, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), que sublinhou que o diretor demissionário “fez tudo para capacitar e modernizar o serviço”. Também a presidente da Federação Nacional do Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, manifestou preocupação: “A administração tinha prometido resolver o problema, mas nada fez e está a comprometer os cuidados de cirurgia à população que serve.”
Ao Observador, a ULS Amadora-Sintra não menciona casos específicos de constrangimentos. Diz apenas que, se necessário, as autoridades competentes serão avisadas. A unidade tem um plano de contingência, uma ferramenta que “é acionada para responder ao funcionamento do serviço e às necessidades identificadas a cada momento” e que será utilizada “sempre que necessário.” Sobre o mesmo tema, Paulo Simões diz que “há uma série de dias sem cobertura de uma equipa de cirurgia”. “Pedi ao conselho de administração que enviasse a escala, mas entretanto ainda não a fez chegar”, explicou. O responsável da Ordem dos Médicos também está em contacto com o Ministério da Saúde, a quem foi comunicada a situação.
“Nós conhecemos o tema. É um tema que nos preocupa, mas está a ser tratado como tem de ser, pelo presidente do Conselho de Administração, que conta com toda a nossa colaboração”, disse na semana passada a ministra da Saúde, que esta terça-feira é ouvida no Parlamento a propósito das opções do ministério para a Orçamento do Estado do próximo ano. Questionado posteriormente sobre o assunto, o ministério de Ana Paula Martins remeteu mais esclarecimentos para a Direção Executiva do SNS. “No âmbito das suas competências e no que diz respeito à situação relacionada com o serviço de cirurgia geral da ULS Amadora-Sintra, [a Direção Executiva do SNS] está a trabalhar, conjuntamente com o Conselho de Administração, para encontrar soluções que salvaguardem o atendimento e acompanhamento dos utentes”, apontou numa resposta escrita ao Observador.
A abertura de um concurso para a direção do serviço de cirurgia
Para além de refazer a equipa após a saída dos dez médicos, a ULS Amadora-Sintra terá de arranjar um substituto para o diretor demissionário, que ainda permanece em funções até ao dia 31 de dezembro. “Com ele há um segundo elemento que manifestou intenção de sair — não sei se o fará ou não — e haverá provavelmente um terceiro elemento que também sairá. Ou seja, há o risco de, em finais de dezembro, dos nove que estão atualmente ficarem seis”, alerta Paulo Simões.
Para o presidente da Secção Regional do Sul da OM, a questão do sucessor na direção é preocupante e poderá ser dificultada pelo ambiente que se vive. “Em última instância, ainda vão abrir um processo de intenção para diretor do serviço e colocam lá a pessoa que suscitou toda esta mobilização”, aponta. Na sua opinião, seria o “paradoxo máximo”: “Tenho algumas dúvidas de que o serviço pudesse recuperar desta situação.”
O Observador questionou a ULS Amadora-Sintra sobre esta hipótese. Em resposta, a unidade disse que “a gestão interna do serviço está assegurada” até à data da saída do diretor demissionário. Acrescenta que “o concurso para a nomeação de um novo diretor será lançado em conformidade com as normas e regulamentos em vigor.”
Sobre uma eventual candidatura ao cargo, Vítor Nunes diz que se trata de “uma possibilidade como outra qualquer”: “Neste momento não ponho isso. Vai depender das condições, da equipa que está, de uma série de fatores. Mas, se fosse neste momento, não iria concorrer.”