Este artigo pode ferir a sensibilidade de alguns leitores
11h00 da manhã de quinta-feira. A carrinha funerária chega ao estacionamento do crematório de Barcarena, onde já estão à espera três homens, todos de máscara. O carro pára, mas não para retirar a urna, que é apenas puxada ligeiramente para fora — sem nunca ser aberta e apenas durante alguns momentos — por dois agentes funerários, protegidos por fato, máscara, óculos e luvas. Os dez minutos que se seguem são o tempo máximo para que os três homens que ali esperavam — dois filhos e um neto — se despeçam do pai e avô, vítima da Covid-19, antes de o corpo seguir para o crematório.
11h00 da manhã de sábado. Os dois dias que separam um funeral do outro não fazem mudar o ritual, agora novo por causa da pandemia. No cemitério da Amadora são seis os familiares que esperam, mas os agentes funerários mantêm as mesmas proteções e o mesmo tempo limitado para um velório muito curto, também por razões de segurança. Neste caso, o óbito foi declarado em casa, sem que se soubesse que tinha contraído Covid-19. O teste, positivo, foi feito já depois. E há também uma outra diferença: o corpo vai ser sepultado e não cremado, por isso a família pode estar ali, junto às campas, por breves momentos, para depois se afastar alguns metros quando a urna é colocada no solo.
“Não podemos ver?” O momento mais comum para as famílias se despedirem dos seus mortos é agora absolutamente proibido. Por razões de saúde pública, não é possível abrir o caixão de uma vítima de Covid-19, foi explicado ao familiar que perguntou. A regra foi definida pela Direção Geral da Saúde, que, apesar de todas as medidas de segurança, também recomenda que familiares ou amigos que pertençam a grupos de risco não estejam presentes. No máximo, poderão acompanhar os breves momentos finais apenas 10 pessoas e todas devem estar longe umas das outras. O objetivo é evitar que os funerais se tornem potenciais focos de infeção, mesmo que isso implique impedir abraços ou gestos de carinho.
Não mudaram só os funerais, também mudou a forma como se pode lidar com a dor da perda. E isso não tem apenas um impacto imediato. Sem a despedida, o velório, o corpo que se acompanha, o ritual do enterro ou da cremação, o luto fica adiado — ou, pelo menos, arrastado no tempo. E a tristeza — que serve para dar tempo aos que perderam de se readaptarem — pode acabar por fazê-los parar.
Fatos, luvas e máscaras. O processo duro de preparar o corpo para o funeral
Está praticamente em silêncio o armazém onde Artur Palma guarda todo o material necessário à realização de um funeral: caixões de todos os tamanhos e qualidades de madeira, cruzes de metal e de plástico, terços, lápides e quatro carrinhas funerárias, cada uma para um tipo de funeral diferente. Ao fundo do armazém, ouve-se apenas o estalar do silicone de luvas descartáveis a serem calçadas e de plástico a ser remexido. Os seus colegas equipam-se para entrar numa sala onde está o frigorífico mortuário, com capacidade até quatro corpos.
A sala, com uma temperatura interior de -2ºC, tem uma bancada não muito diferente da de uma cozinha perfeitamente banal, mas com outro tipo de utensílios: produtos de maquilhagem, por exemplo, que por vezes são utilizados. Ao lado dessa bancada há uma plataforma metálica, usada para tratar os corpos — mas não os de doentes que tenham morrido de Covid-19. Esses são apenas despidos, desinfetados e colocados em dois sacos — também sujeitos a desinfeção. O processo, muito duro até para quem já está habituado a fazê-lo, repete-se em relação ao caixão, que tem de ser limpo por dentro e por fora.
Artur Palma é um dos que já têm experiência suficiente para estarem habituados, mas que a isto não se conseguem habituar. Lida com a morte há mais de 30 anos. Trabalhou no Instituto de Medicina Legal e tem hoje uma agência funerária, a Funerária Velhinho, na Amadora, onde trabalha também com o filho. No início de abril, já tinha tratado de mais de uma dezena de funerais de vítimas de Covid-19.
Se médicos e outros profissionais de saúde estão na linha da frente no combate à doença, Artur está no fim dessa mesma linha.
Ao Observador, explica que a dureza que agora enfrenta não tem a ver apenas com a forma como os corpos são preparados, mas mais até com o luto que, depois, não vê acontecer, porque parece que o processo se desumanizou. “O número de familiares no funeral não pode ir para além dos 10”, lembra. “Têm de estar distantes, nem abraçar-se podem e nós, agentes funerários, temos de ir vestidos com aqueles fatos que parecem fatos do CSI.”
São dois pares de luvas, umas brancas e outras azuis, um fato completo dos pés à cabeça branco, máscara, óculos e proteção para os pés que todos têm de trabalhar. “Todo o cuidado é pouco”, explica o agente funerário, que percebe que as famílias “se sintam incomodadas” com todo aquele aparato, mas tem mesmo de ser assim. “Estamos a zelar pela nossa saúde, temos ali alguém que morreu com um vírus que ainda não se sabe muito bem como lidar com ele”, desabafa.
O material foi todo comprado depois de a Direção Geral de Saúde ter emitido as novas normas para a realização dos funerais nesta fase da pandemia. Apesar de todo o equipamento de proteção individual (EPI) ser descartável, Artur explica que tem de lavar os fatos brancos, com cloro das piscinas e água, por serem tão caros e por não haver muita oferta no mercado.
Haverá um dia, claro, em que deixará de ser assim, mas Artur Palma não acredita que os funerais voltem a ser iguais ao que eram tão cedo. Pelo menos, até o vírus desaparecer. Por estes dias, garante, há tanto medo que até nos funerais de pessoas que morreram de outras causas há cuidados — da agência e de quem vai aos velórios. Todos têm medo de possíveis casos não diagnosticados.
Agora, é tudo rápido e sistematizado. Os corpos de quem morre de Covid-19, em regra, são entregues ao Instituto de Medicina Legal. Aí são identificados pelo agente funerário, com base na fotografia do cartão do cidadão ou por um familiar — que terá de vestir todo o equipamento de proteção para o poder fazer pessoalmente. Depois são recolhidos pelas agências funerárias, tratado e colocados em caixões selados — que, depois de totalmente desinfetados são forrados com película aderente e sujeitos a uma nova desinfeção. Dali, seguem diretamente para o crematório ou para a sepultura.
Um processo de luto muito mais limitado
Para quem está do outro lado, é tudo o que deixou de acontecer que mais impacto tem. As cerimónias fúnebres de alguém que morreu são, por si só, um momento muito duro para familiares e amigos, mas também podem ser essenciais para dar início à recuperação de quem precisa de se reorganizar depois da perda. Nesta altura, são uma etapa que se perde, com possíveis consequências para tudo o resto.
O processo de luto é composto por cinco fases — negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Apesar da ordem, nem sempre se percorre todos os estágios, quanto mais numa altura de pandemia. Fernando Almeida, psiquiatra, professor no Instituto Universitário da Maia e professor convidado no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, esclarece ao Observador que as dificuldades acrescidas na realização de um funeral numa altura em que o país lida com a crise gerada pelo novo coronavírus podem não ajudar o processo de luto, “na medida em que a pessoa não se consegue despedir do ente querido, não consegue estar próximo dele ou vivenciar os últimos dias com ele”.
Essa falta de despedida pode facilitar a possibilidade de surgir um outro sentimento, a culpa. Os especialistas lembram que a dificuldade em dizer um último adeus pode gerar nostalgia, sentimento de impotência e até culpabilidade. Exemplo disso é alguém interrogar-se sobre como a pessoa em questão ficou infetada ou se teve alguma responsabilidade nisso. Nessas circunstâncias, “a Covid-19 pode perturbar o processo de luto”, afirma Fernando Almeida, ele que também é médico psiquiatra no Hospital Lusíadas Porto.
A isso junta-se a falta de vários momentos que é suposto uma família ou um amigo passar, para conseguir encerrar esse capítulo. Miguel Ricou, presidente do conselho de ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses, refere a importância do funeral enquanto um ritual que até “faz parte do nosso imaginário”, que permite fazer uma derradeira homenagem ao outro, além de ser um produto cultural. “Há uma necessidade clara de nos despedirmos e os rituais funerários servem para isso. Desde os tempos imemoriais que temos estes comportamentos para com os mortos, o que mostra bem a sua importância.”
O ritual em si serve de ponto final, alivia a questão da culpabilidade e oferece uma espécie de conforto a quem fica. “Nestas circunstâncias”, continua Miguel Ricou, “isso fica limitado”. À dificuldade de perder alguém — mesmo não sendo pelo novo coronavírus —, o processo da despedida fica limitado, o que pode “fazer arrastar o luto”. A perda dá-nos tristeza e a tristeza faz-nos parar. Esse é, aliás, o grande objetivo da tristeza: parar para nos readaptarmos. “É evidente que, quanto mais profunda for a tristeza, mais difícil é adaptarmo-nos. O processo de luto numa altura destas é muito mais complicado”, acrescenta Ricou, esclarecendo que esta é também uma fase temporária em que as nossas liberdades estão condicionadas, o que pode acarretar dificuldades na fase de regressar às rotinas e procurar uma readaptação saudável.
Em todas estas dificuldades, há, porém, um aspeto que pode ajudar. Fernando Almeida sublinha o sentimento de comunidade, uma espécie de solidariedade, cumplicidade e até comunhão que, por estes dias, todos vão vivendo, que resulta de estarmos a partilhar a mesma situação, o que pode implicar que a pessoa se sinta menos sozinha. “Estamos todos no mesmo barco”, salienta, não sem antes acrescentar que, apesar de tudo, a morte numa altura destas não é necessariamente acompanhada de impotência ou culpabilidade. Além disso, o psiquiatra lembra que estas mortes podem ser respeitosamente “sinalizadoras”, no sentido em que “anunciam um caminho, o da prevenção”.