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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Sozinhos no meio das chamas: quando a água acabou, apagaram o fogo com mosto

Maria Joaquina viu vizinhos a morrer e o povo a combater as chamas sozinho. José salvou a casa com as suas mãos, mas perdeu o sustento. Do Governo, pedem-lhes "resiliência" — e isso não lhes agrada.

Chega uma altura em que, amparada nas suas muletas, Irene Silva perde as forças e cai redonda no chão. Aos 53 anos, conta com dois AVC, que a atacaram em janeiro e agosto de 2016. Agora, quando o seu marido, José Silva, a vê cair diretamente no asfalto da estrada principal da aldeia de Joana Martins, fica com uma certeza. “É o terceiro, está a dar-lhe agora”, diz, com o telefone a chamar para o 112.

A madrugada deste domingo não foi fácil para ninguém nesta aldeia do concelho de Vouzela, distrito de Viseu. Assim que soube que havia fogo, José meteu a mulher e a filha, Daniela, de 14 anos, dentro do carro. Depois, conduziu-as para longe da casa e voltou para trás, sozinho.

Nessa altura, José pegou em duas mangueiras e ligou-as a um depósito de mil litros que tem para a agricultura. Com este material tentou apagar o fogo que lhe lambia as paredes de casa. Em trinta minutos, ficou sem água. Depois, só conseguiu ir buscá-la a um chafariz comunitário. O resto da noite foi passada a correr da fonte à casa, com dois baldes cheios de água — até que, também ali, ela deixou de brotar. Nessa altura, não teve outra escolha para além de esperar pelo fim. Enquanto isso, Irene e Daniela, na casa de uma vizinha, tentavam apagar o fogo com o que tinham à mão. Quando a água também por ali acabou, começaram a deitar mosto, das uvas que há pouco tempo foram pisadas após a vindima, para cima das labaredas.

Horas depois do incêndio, Irene Silva não tem forças para regressar a casa e por isso senta-se na rua. Pouco depois, viria a ter um AVC (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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José já tinha pensado neste dia. “Eu sabia que um dia isto ia arder tudo, era tudo uma questão de tempo”, diz. Por isso, deu por si a pensar, nos últimos tempos, como poderia fazer frente a um fogo na sua aldeia. “Nós temos de meter as pernas a caminho assim que isto chega, porque ninguém nos vem ajudar, isso é que não vem de certeza”, diz, desagradado.

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Naquela altura, José teve de fazer escolhas. Se queria salvar a casa, teria de deixar o armazém onde tinha o trator, as alfaias agrícolas e os mais de 20 animais de criação à mercê das chamas. “Eu sou só um, não sou mais do que isso”, diz, já no dia a seguir. Com a luz do sol alta, já ao início da tarde, José Silva sabe que salvou a casa. O armazém, onde estava todo o sustento da família, ardeu por completo.

Dentro do armazém e à volta dele, não há nada que não esteja preto. Da vegetação em torno, sobram de pé apenas as árvores, calcinadas. Tudo o resto, está espalhado pelo chão, em pequenas dunas de cinzas. É por elas que avança Daniela Silva, filha de Irene e José, que aos 14 anos é a segunda habitante mais jovem da aldeia — e que, enumerando um a um os seus habitantes, conta 28 pessoas. De telemóvel na mão, a adolescente fixa os olhos num círculo de borracha queimada, debaixo de uma árvore. Relutante, explica do que se trata. “Era o meu baloiço, de quando era mais nova.”

Não muito longe, José e Irene olham a custo para dentro do armazém. Assim que é aberto o portão pela primeira vez desde o incêndio, uma nuvem preta passa-lhes por cima. Depois, esta começa a perder a espessura e os destroços começam a ser visíveis. O trator está queimado, os cereais que compraram para semear também. “E se for à porta do outro lado e certeza que apanho lá os animais todos queimados”, diz José, que, dito isto, avança para encarar aquilo que já adivinha. Assim que abre a porta, ela prende no cadáver de um borrego, impedindo-o de ver mais para dentro.

Do armazém de José e Irene Silva, não sobra nada além de cinzas, sucata e os cadáveres do gado que tinham (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

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Irene afasta-se. “Eu não consigo ver isto, eu não consigo ver isto. Eu não consigo passar uma coisa destas, eu desta já não me levanto”, diz. “Eu não me vou aguentar.” Depois, vira as costas e parte para a estrada principal de Joana Martins. É lá que, entre lágrimas que lhe saem em gritos de dor, cai no chão. O marido chama uma ambulância e, 35 minutos mais tarde, a sua chegada é anunciada pelo soar de uma sirene.

Desde que as chamas atravessaram aquela aldeia, esta foi a primeira vez que aquele som ecoou por aqueles lados. Durante a noite do incêndio, por mais que ligassem a pedir a ajuda, ninguém acudiu. José ligou várias vezes para os bombeiros, sempre sem sucesso. Também fez uma chamada para o presidente da câmara, cujo nome tem escrito no boné cor-de-laranja que leva na cabeça. “PSD Rui Ladeira, Vouzela 2017”, lê-se. Do lado de lá do telefone, o autarca não lhe deu esperança de que qualquer socorro viesse a caminho. “Ele disse-me que não havia bombeiros para nada, que eles não conseguiam vir até aqui”, recorda da conversa.

“Há gente a morrer e eles dizem isso?”

Rui Ladeira esteve longe de ser o único político a não oferecer esperança em tempos de aperto às populações que, no domingo, viveram aquele que foi o pior dia dos incêndios de 2017 e do qual resultaram pelo menos 36 mortos.

Durante a madrugada, a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, disse que “as comunidades têm de se tornar mais resilientes às catástrofes” e referiu que os cidadãos devem fazer a sua “autoproteção”, através de uma “adequação dos seus comportamentos, interiorização de algumas práticas”. Da mesma forma, o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, disse que as pessoas devem ser “proativas”, em vez de ficarem “todos à espera de que apareçam os nossos bombeiros e aviões para resolver os problemas”.

José não tem eletricidade, por isso não viu nem ouviu as declarações daqueles responsáveis políticos. Porém, quando toma conhecimento delas, não esconde a irritação. “A gente sente-se abandonada aqui. Sabe o que é ter chamas por todo o lado e não vir ninguém ajudar? Sabe o que é estar prestes a morrer e não termos nenhum sinal de ajuda? Esses políticos deviam vir aqui, apagar fogos como nós apagamos, com mangueiritas e com baldes, para verem como isto nos dói”, diz. “Há gente a morrer e eles dizem isso?”

Maria Joaquina Dias conhece quatro das pelo menos 36 pessoas que perderam a vida nos incêndios de 15 de outubro. Vive em Vila Nova da Ventosa, aldeia onde nasceu há 77 anos e da qual nunca saiu.

Maria Joaquina Dias conhecia as quatro pessoas que morreram em Vila da Nova da Ventosa. "Morreram sozinhos, sem que os pudessem ajudar", lamenta. (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Ao longo dos anos, habituou-se a conviver com Maria Rosa de Jesus, mulher de 93 anos e sua cunhada que, apesar da idade, insistia em fazer uma caminhada todas as manhãs. Apoiada numa bengala, atirava àqueles que pelo caminho se metiam com ela: “Caminhar faz bem, caminhar faz bem!”. Agora, Maria Rosa de Jesus está morta. Morreu numa estrada próxima da aldeia, depois de um mar de chamas ter impedido que o carro em que seguia com a filha avançasse. A filha conseguiu fugir, mas Maria Rosa de Jesus ficou para trás. Foi encontrada na manhã desta segunda-feira, já sem vida.

Na aldeia de Vila Nova da Ventosa também morreram três dos seus vizinhos: Arminda de Jesus Lourenço, solteira aos 78 anos; e o seu irmão, Fernando Jesus Lourenço, tal como a sua mulher, Laurinda Lourenço, ambos também septuagenários. Maria Joaquina acredita que morreram todos na cama, sem que se tivessem apercebido do fogo que tomava a aldeia de assalto.

Maria Joaquina só se apercebeu do incêndio à meia-noite, quando se levantou da cama, onde já dormia há mais de uma hora, para ir à casa de banho. Entre o quarto e aquela divisão da casa, olhou pela janela. Ao fundo, estava tudo vermelho. “Era um tornado, era uma chuva de chamas que por aí vinha acima ter connosco”, recorda. Chamou o marido, que acordou logo. Depois ouviu que o sino da capela tocava a rebate, acordando toda a aldeia. “Nós vamos morrer aqui!”, dizia ao marido. Até que a filha, que vive algumas casas ao lado, lhe bateu à porta. “Saiam já daqui, venham já para a minha casa, que vocês aqui morrem”, gritou aos pais. Fugiram de casa a correr — e ainda agora Maria Joaquina está para perceber como, em passo de corrida e agachada, se esquivou a uma chama que lhe passou à altura da cabeça.

“O povo não ficou à espera dos bombeiros, o povo mexeu-se logo!”

O resto da noite de Maria Joaquina foi passada em branco, enquanto lá fora os mais novos ajudavam como podiam a salvar as casas de toda a aldeia. Aqui, os bombeiros só apareceram às 4h30, quando ali já tinham morrido quatro pessoas. Por isso, também, Maria Joaquina estranha as palavras que ouviu dizer vindas de alguns membros do Governo. “O povo telefonou aos bombeiros mas não ficou à espera deles, o povo mexeu-se logo, senão isto tinha ardido tudo”, disse. “Os senhores do Governo que não pensem que o povo não se protege e que não dá luta. Aqui na nossa aldeia é um por todos e todos por um”, diz.

Maria Joaquina sabe que teve sorte. Esta segunda-feira, quando voltou a casa, pensando que dela sobrariam apenas as paredes, reparou que só os vidros das janelas sucumbiram ao fogo, com o calor. Mas, depois, olhou para os cortinados. “Só estavam sujos, mais nada, nem sequer se queimaram”, diz, com um dos poucos sorrisos que consegue dar um dia depois de ter visto o inferno. “Os cortinados não se estragaram, não senhor. Agora é só meter na máquina, lavar, e já está.”

O resto, porém, não é assim tão simples. E é por isso que, olhando em sua volta, o lábio começa a tremer. “Mas nem todos tiveram a minha sorte… Morreram-nos quatro dos nossos. Uma delas era minha cunhada, mas os outros também era como se fossem da família”, lamenta. “Sinto-me muito triste por dentro, muito triste. Porque morreram sozinhos, sem que os pudessem ajudar.”

Os incêndios de 15 de outubro mataram pelo menos 36 pessoas (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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