** A propósito do alegado atentado deste sábado contra o Presidente da Venezuela, o Observador recupera esta reportagem sobre portugueses e luso-descendentes que fugiram do país sul-americano, publicada em julho de 2017. **
Cada vez que José Bernardo saía para dar um passeio, a família ficava toda com o coração nas mãos. Dispensava a companhia e o amparo, ainda andava bem. Mas no lugar da realidade, que o Alzheimer o foi impedindo de decifrar, José tinha colocado o passado. Depois de alguns dias de pânico, a família reparou que ele ia sempre para o mesmo sítio. Entre as ruas da baixa de Braga, José procurava a casa onde tinha vivido cerca de meio século, em Caracas. Iam dar com ele a olhar para as fachadas, sem conseguir encontrar a casa do país que teve que abandonar.
Começaram a faltar os medicamentos e a comida. A insegurança crescia em proporção à escassez e a família decidiu regressar há dois anos. Toda. “Dezoito pessoas, quatro cães e dois gatos” é a frase pronta, na ponta da língua, de todos os membros da família Bernardo Soares que voltou em peso à cidade de Braga de onde os primeiros membros tinham saído no início dos anos 60.
Nos anos 60 ninguém emigrava a pensar em regressar em breve. Não se passavam temporadas em Londres, em Paris ou em Budapeste em Erasmus. Nas despedidas, a palavra “Adeus” carregava algum do seu peso original: o de enviar alguém “a Deus”.
Assim partiu Maria Armínia Bernardo Soares, hoje com 79 anos, com os seus pais, em 1965, quando a Venezuela absorvia como gaze mão-de-obra menos qualificada e o próprio governo chamavam italianos, espanhóis e portugueses para irem para lá fazer o que melhor faziam deste lado. Os pais de Armínia montaram um talho, com circuito de distribuição incluído, um negócio que mais tarde passou para José Bernardo, o marido de Armínia, depois da morte dos seus sogros.
José Bernardo não era amigo da família, era um algarvio que apareceu lá pelo talho um dia. Procurava emprego. Puseram-no a conduzir a carrinha de distribuição e assim começou um namoro que deu em casamento até à morte de José, há dois meses, já em Braga, onde tanto procurava a sua casa de Caracas. “Ao princípio não gostava nada dele, o meu pai dizia-me para lhe ir levar um copo de água depois da ronda e eu dizia que ele sabia muito bem onde ficava a copa”, conta Maria Armínia na esplanada do restaurante que hoje é o negócio da família. Acabou de chegar da fisioterapia. Foi operada à anca na Venezuela e lá não havia nem medicamentos para as dores nem anti-inflamatórios.
18 pessoas, quatro cães e dois gatos
Um dos filhos, Júlio, de 48 anos, está ao seu lado e relembra uma das vezes em que andou por Caracas à procura de remédios para a mãe: “Fui a todas as farmácias, andei pela cidade toda, a cobrar favores, a ligar a conhecidos, nada. Acabei por encontrar, mas apenas me venderam uma caixa, que durava para três semanas, e muito mais cara do que o preço normal. Aí eu comecei a pensar: ‘Isto só vai ficar pior, quando a minha mãe precisar dos comprimidos de novo, ou de um outro medicamento, pode já não haver'”.
Foi apenas o último de um conjunto de sustos que empurrou a família para Portugal. Tal como muitas, vieram porque tiveram que vir. Não foi uma escolha.
A comida começou a escassear a sério em 2015. Foi também aí que os protestos começaram a ocupar as ruas das principais cidades. Caracas, a capital da Venezuela, está “irreconhecível”, diz Júlio que, por não ter filhos, foi o último a voltar. Ficou a tentar vender algumas das posses da família, embalando e enviando aos poucos alguns dos bens acumulados ao longo de 50 anos. “Custou-me imenso deixá-lo lá”, diz Armínia olhando o filho com lágrimas nos olhos. “Estou feliz de aqui estarmos, finalmente estamos todos juntos, lá nem sempre estávamos. A única coisa que me falta é o meu José”, diz. Júlio dá a mão à mãe. Daniela, uma das netas chega da escola num trotinete cor de rosa e roxa e abraça-a. “Por que lloras, abuela?”
Tem sete anos, é filha de Susana, a filha mais nova de Armínia, que está lá dentro a preparar almoços. O irmão, Blass, como o pai, tem 14 e chega pouco depois. O seu tio Júlio incentiva-o a ir treinar o inglês com um casal de turistas que acabou de se sentar. Há que começar a praticar tanto o serviço de mesa como o inglês com os clientes; porque é este o negócio que, para já, sustenta a sua família.
O pai, Blass Miguel, com 41 anos, marido de Susana, é venezuelano. Está na cozinha a colocar pratos de batatas fritas debaixo da luz quente para deixar o queixo derreter-se-lhes por cima. Tal como Susana, agora com 40 anos, na Venezuela exercia advocacia. Não é luso-descendente mas como casou com Susana não tem problemas com papéis, ao contrário de muitas pessoas que estão a voltar com amigos e namoradas, sem qualquer vínculo legal que lhes permita permanecer e trabalhar em Portugal. Ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras chegaram já 200 pedidos de autorização de residência, apenas desde maio, quando os confrontos entre os apoiantes do presidente Nicolás Maduro e os que se lhe opõem, se intensificaram.
São dois meses de confrontos que, nas últimas duas semanas, paralisaram o país. Para domingo, dia 30, espera-se o pior. Nicolás Maduro convocou uma eleição para escolher 545 membros de uma Assembleia Constituinte que será formada para modificar a Constituição de 1999. Os apoiantes do regime dizem que é preciso repor a ordem no país, reforçar a segurança para garantir que os investidores estrangeiros se voltam a sentir seguros para abrirem negócios, mas a oposição teme que esta Assembleia esvazie o Parlamento e tome as funções deste.
Geoff Ramsey, especialista em política interna da Venezuela no centro de analise internacional Advocacy for Human Rights in the Americas, considera a instauração desta Assembleia “um passo perigoso”. Ramsey considera as assembleias constituintes são relativamente comuns — Itália depois da Segunda Grande Guerra ou, talvez a mais famosa, a que escreveu a Constituição dos Estados Unidos, em 1787 — mas que o que se está a organizar na Venezuela “é antidemocrático” porque “a população não decidiu que quer modificar a Constituição e é isso que exige o artigo 347”.
“Está não é uma iniciativa proposta por um líder eleito recentemente, por uma inequívoca maioria popular, um consenso fresco e renovador. É um ímpeto de um líder pouco popular que está apenas a evitar eleições”, considera o analista.
Não há ainda nenhuma matriz pela qual seja possível inferir que pontos ou áreas da Constituição serão alvo de mudança, e por isso os críticos do regime estão desconfiados. “Maduro disse muitas vezes que esta Assembleia deverá assegurar o continuidade do ‘projeto comunitário’, uma referência a um projeto que começou em 2006 e que visava a integração de ‘concelhos da comunidade’ no aparelho do Estado. No início isto foi apenas uma experiência de democracia participativa mas agora são mais de 45.000 ‘concelhos’ sob a alçada do Ministério das Comunidades e dos Movimentos Sociais, o que pode ser visto como a tentativa de criar um estado paralelo“.
Há também algumas preocupações quanto aos representantes que serão eleitos. Como a oposição se recusa a ser parte deste voto, de qualquer forma é muito provável que esta Assembleia seja de facto eleita, com maior ou menor participação. Dos 545 lugares disponíveis, 181 serão “sectoriais”, ou seja, representantes das várias “profissões”: estudantes, agricultores, empresários, enquanto que 364 lugares serão escolhidos pelos diferentes municípios.
A divisão territorial deste voto é o que mais preocupa a oposição uma vez que há um risco de que as zonas rurais, maioritariamente apoiantes do chavismo, tenham o mesmo peso que enormes zonas urbanas, onde a oposição ao regime é mais forte. Cada município terá direito a um voto, as capitais terão direito a dois e apenas Caracas terá direito a sete. O peso das comunidades isoladas e rurais é, assim, desproporcional em relação ao número de habitantes que têm.
Oito mil bolívares = um dólar
“É a segunda vez que fujo de uma ditadura”, diz Blass pai, que tem nacionalidade venezuelana mas na verdade nasceu no Chile de onde os pais fugiram durante o regime de Augusto Pinochet. “É para dizer as coisas com elas são. A um país onde a Assembleia é maioritariamente de uma cor mas os tribunais superiores aprovam as leis escritas por uma minoria, chamamos o quê?”, pergunta Blass, que despiu a jaqueta de chef mas deixou o boné que usa para prender o cabelo. É todo preto e diz “BRAGA” por cima da fivela.
É principalmente a insegurança que aflige Blass. “Fui sequestrado em 2009 em 2014 sequestraram o meu tio. Pagámos o resgate e entregaram-no morto. No funeral, com a minha família toda, a minha mulher, os meus filhos pequenos, pensei: ‘Não, eu não os vou deixar crescer aqui'”, conta.
Também Armínia e José tinham sido sequestrados alguns anos antes. Tal como Júlio e vários primos dos dois lados da família. “É muito comum, mesmo muito comum”, desabafa. A vida faz-se apenas enquanto o sol está alto. “Estamos sempre em casa, saímos de manhã para ir levar os miúdos à escola e à tarde voltamos para casa, deixámos de poder sair de casa, não é possível confiar em ninguém, os miúdos não brincam na rua, nada disso. É um país muito diferente daquele onde eu cresci”, diz Susana. “Há muito tempo que nos tínhamos habituado a olhar para o retrovisor quando conduzíamos de noite, e há muito tempo que tínhamos cuidado com o que usávamos na rua, com as ruas por onde deixávamos os miúdos andar, ao ponto de não sairmos de casa”, acrescenta Blass.
Quando eram jovens, ainda sem filhos, Susana e Blass já andavam na rua a protestar contra Hugo Chávez, o homem que foi líder da Venezuela desde 1999 até à sua morte, em 2013, vítima de cancro. Sucedeu-lhe Nicólas Maduro, um homem a quem alguns venezuelanos já não reconhecem nem sequer carisma. “Quando Chavez venceu parecia que as coisas poderiam mudar porque o regime antigo também era despótico e corrupto. Havia muito, mas muito dinheiro do petróleo, foram anos loucos, havia muito dinheiro mas assim que o preço baixou todas as fissuras do regime ficaram a nu: não se produz nada na Venezuela, comprava-se tudo e sem as divisas do petróleo não é possível importar”, explica Blass.
Mesmo assim, diz que não existe país mais rico no mundo. “Temos tudo: a maior reserva de petróleo, ouro, pedras preciosas, urânio, alumínio, madeira, terra arável, clima, paisagens maravilhosas para os turistas, pergunto-me como é possível destruir tudo assim”.
Quando Hugo Chávez chegou ao poder, em 1999, o barril do petróleo estava mais ou menos a 30 dólares o barril, passando em 2000 para um valor ainda mais baixo: 19 dólares. Depois a curva inverteu-se e o preço começou a subir: em 2006 estava a 60 dólares. Entre 2011 e 2014 ultrapassou os 100 dólares. Agora ronda outra vez nos 50 dólares. Como dizia à SIC Andrés Malamud, especialista em assuntos da América Latina, quando os protestos se intensificaram no início do verão, “o governo ainda pode aguentar esta guerra muito tempo, ainda falta o barril descer muito para que se torne insustentável”.
Talvez ainda seja politicamente sustentável para o governo por mais algum tempo mas quem passa o dia todo em filas para conseguir sustento, não consegue aguentar muito mais.
Em meados de novembro de 2016, o arroz custava 5.000 bolívares o quilo, o que o colocava no campo do inacessível – campo onde já figuravam o frango, a manteiga, o leite, assim como a farinha necessária para a confeção das arepas, o pão achatado, feito de farinha de milho, base da alimentação na Venezuela. Uma caixa de ovos, um quilo de maçãs, e dois pacotes de leite e dois de farinha, quando de encontram, podem custar quatro ou cinco ordenados mínimos.
Com uma inflação que deverá atingir os 2000% em 2018, segundo os analistas do Fundo Monetário Internacional, e o salário mínimo nos 190 mil bolívares (ordenado mais subsídio de alimentação dado pelo governo), é praticamente impossível aos mais pobres adquirir alimentos. Mesmo estes preços, que vão aparecendo nas notícias e nas queixas dos venezuelanos nas redes sociais, estão sempre a subir porque cada dia que passa há menos comida.
Mesmo os ordenados muito acima da média, como era o caso dos de Susana e Blass, de pouco servem porque simplesmente não há comida e a que há é “tão cara como esmeraldas”, diz Blass. Se não fosse a rede de solidariedade social entre portugueses, hão-de confirmar todos os regressados/retornados com quem o Observador falou, passar-se-ia fome, “assim, sem paninhos quentes”, diz Susana. Ainda segundo o FMI, 82% dos venezuelanos vivem hoje abaixo do limiar de pobreza.
“É comum ver pessoas à espera que as famílias com mais dinheiro acabem as suas refeições nos centros comerciais para depois irem comer o que elas deixam nos pratos”, conta Susana que nunca se há-de habituar à nova face da sua cidade. “Pessoas à procura de comida no lixo, vizinhos que perderam 10 e 15 quilos em seis meses, crianças subnutridas de famílias de classe média, tudo isto se tornou uma realidade à qual, por muito comum que seja, eu não consigo bem habituar”, diz a advogada.
Maria Armínia ouve e emociona-se. Fala ainda bem o português, gosta daqui, mas a sua casa é na Venezuela, a que lá ficou, trancada a sete chaves, aquela que José tanto procurou, iludido pela doença, nas ruas de Braga. A família espera um dia conseguir vir a desfazer-se do que lá deixou, realizar algum dinheiro, mas ninguém se atreve a lá ir agora tratar dos negócios que ainda não se resolveram.
Queimaduras solares, 500 caixotes vistoriados e um gato muito valioso
Durante todo o ano de 2015, com a família já em Portugal, Júlio andou a tratar de vender algum do património, o que não é assim tão fácil num país cada vez mais pobre, onde a iniciativa privada é vista cada vez mais como um roubo aos olhos dos apoiantes de Maduro. “Quando falta pão em todo o lado e grande parte das pastelarias e padarias são portuguesas o que é que achas que vão achar de nós?”, atira Júlio, que, nos últimos tempos, sofreu na pele a discriminação crescente contra os portugueses. “Todos os dias um novo negócio era pilhado, incendiado, roubado, invadido”.
A mãe ligava todos os dias, e ele dizia sempre que estava tudo calmo ali pela zona da casa deles, que as manifestações estavam longe. Até que um dia a mãe ligou enquanto passavam as notícias das oito da noite e ali estava o seu filho, atrás de um camião, no meio dos protestos. Quando atendeu voltou a dizer que não, que não tinha ido meter-se em sarilhos. Não queria preocupar a mãe mas “também não podia não fazer nada”.
“As pessoas têm fome, tudo o resto é secundário. Mas a culpa do estado do país não é dos imigrantes. O meu pai trabalhou 60 anos naquele e para aquele país, eu e os meus irmãos mais 30. Não somos nós os corruptos nem os culpados pelo desaparecimento da comida das prateleiras”, diz Júlio que explica este ressentimento com as necessidades que os venezuelanos passam e com a ideologia que ensinam aos mais novos na escola. “Há uma geração agora quase com 20 anos que cresceu já debaixo deste regime e na escola o que lhes dizem é que o inimigo são os ricos, que a culpa da miséria é dos países estrangeiros. Eles vão para a rua a achar que o inimigo são todos os que ainda não são pobres, e vão carregados de raiva, como é normal”, acrescenta.
Para vender as casas da família Júlio teve que se revestir de cuidados. “Não sabia em quem confiar. Não sabia se o agente da imobiliária ia dizer a alguém que eu estava a desfazer-me de tudo e se viriam atrás de mim. Para me impedirem de sair do país, para me roubarem o dinheiro. Mostrava as casas na calada da noite“, conta.
Durante meses empacotou tudo o que era da família em 500 caixas. Alugou um contentor e quando foi ao porto para despachar a mercadoria deparou-se com uma autêntica escolta policial. “Normalmente eles mandam abrir umas dez caixas à sorte, quando souberam que eu era português decidiram que iam abrir as 500 para verificar tudo”, diz. Ficou um dia ao sol, no porto, enquanto membros da Guarda Nacional Bolivariana se revezavam a rasgar os caixotes sem grande cuidado. Os cães da polícia urinaram nas coisas porque a família sempre teve cães e gatos e era isso que eles cheiravam, e não “alguma coisa ilegal”. Mas a Guarda não acreditou e esteve 12 horas a abrir caixas à procura do que pudesse incriminar Júlio.
“Ofenderam a minha família, chamaram-me ladrão dos bens comuns do país, disseram que eu tinha aquilo tudo porque era ladrão, e o meu pai já tinha sido ladrão”. Não conseguiu ficar calado e isso custou-lhe mais cinco horas pelo sim pelo não e uns dólares por baixo da mesa. Não se consegue câmbio nos canais oficiais na Venezuela. Apenas no mercado negro, que se expandiu como um enorme polvo e hoje afeta todas as áreas da economia. É preciso um sistema paralelo para que as pessoas consigam adquirir os bens mais essenciais, mas, no subsolo, é tudo muito caro. “São precisos quase 8.000 bolívares para comprar um dólar no mercado negro. O ordenado mínimo são, portanto, nove ou 10 dólares”, diz Júlio. É assim, de facto, e continua a subir. Oficialmente, a taxa é bem menor (“compra-se” um dólar com 6 bolívares) só que não se vende nos bancos, que também não emprestam dinheiro, muito menos aos “inimigos da revolução”, cujos nomes constam em listas elaboradas pelo governo.
Mas assim lá foram as caixas, que já não fecharam da mesma maneira: e loiças, eletrodomésticos, molduras, muitas coisas chegaram partidas.
A saga continuou no aeroporto, uma semana depois. “Era um avião cheio, e 80% eram portugueses que regressavam a Portugal”. Júlio levava dez malas e um gato, que ia sedado, numa caixa própria, despachada no porão com todos os cuidados, garantiu a própria polícia no aeroporto. Estavam já todos sentados e o capitão chama pelo altifalante: “Senhor Júlio Mesquita Machado queira descer até à pista onde a Guarda espera por si”. Júlio deu a mala de mão a uma das assistentes de bordo, onde tinha algumas joias, relógios e dinheiro. Retirou antes apenas alguns euros que colocou no bolso. Pelo sim pelo não, achou melhor levar o lubrificador de conversa oficial dos tempos que correm na Venezuela.
“Porque é que leva 12 malas?”, perguntou um membro da Guarda.
“Não há uma lei contra isso, há? Levo roupa para a minha família, documentos e fotografias dos meus pais para a casa deles, e presentes”, respondeu Júlio.
“Não pensa voltar, é?”, votou o agente.
“Penso. Tenho a minha vida aqui, e o meu bilhete é de ida e volta, é fácil verificarem isso, só vou de férias”, respondeu Júlio que entretanto viu um outro agente chegar da parte de trás do avião com o seu gato.
“E vai de férias com o gato?”, perguntou esse agente.
“Vou sim, é um mês, não tenho quem cuide dele”, responde Júlio.
Ao contar isto Júlio explica ainda que não tem filhos e que o gato é a sua companhia, que é “como um filho”, com as devidas as aspas, que ilustra com um gesto.
“Você enfiou esmeraldas na barriga do gato”, acusa o agente que ainda continua com a caixa do bicho na mão.
“Isso não é verdade”, disse Júlio, já a pensar que lhe iam levar o gato. Tirou então cem euros do bolso.
“Está a tentar subornar-nos?”, pergunta um outro agente.
“Não. Ia dar-vos este dinheiro para a radiografia ao gato e para que lhe arranjem um dono e o tratem bem até alguém o querer”, disse Júlio.
“Eu não quero o gato”, disse o polícia que tinha a caixa, passando-a para Júlio e levando os cem euros.
O capitão deixou Júlio levar a caixa no seu colo até Portugal. Neste tempo a Guarda mandou mais pessoas descerem e a algumas que simplesmente se levantassem e mostrassem o que levavam com eles. “Quando o avião levantou parecia que tinha sido dado o ‘Ação!’ num filme sobre desastres aéreos. Toda a gente chorava, alto, uma espécie de libertação coletiva mas também muita raiva, muita dor, muito desespero de estar a ser tratado daquela forma, de estar a deixar um país que já foi maravilhoso entregue à fome e à corrupção”, conta o ex-bancário sob o olhar siderado da mãe. Muita coisa, ela desconhecia. Ele poupara-a.
“Provavelmente perdeu-se uma geração”
Sofia Mesquita Machado está a trabalhar em Braga, num atelier de moda. Fala connosco à hora de almoço. Ao princípio está um pouco apreensiva. Foi das últimas a voltar, a que mais ofereceu resistência, uma das mais novas da família e também por isso uma das “mais” venezuelanas. Tem 31 anos, e todos os seus amigos estão lá. Sem marido nem filhos, os seus amigos da universidade eram a sua vida.
Até que começaram todos a sair de Caracas.
No início deste verão, um deles, que tinha ficado, perdeu a vida nos protestos contra Nicólas Maduro. Foi baleado sem culpa apurada. Ela mesma também andava “sempre na rua” e, por isso, garante que “podia perfeitamente lá ter estado nesse dia”. O luto foi feito em conjunto, pelo grupo de Whatsapp que mantém com quem ainda lá está – “dois estão em Caracas”, diz. A plataforma online parece ser, para todos os venezuelanos com quem falámos, aqui e lá, uma necessidade absoluta.
É por ali que se organizam grupos de troca de medicamentos, por ali que os que emigraram falam com os que ficaram, que se pedem informações sobre o tamanho das filas para a farinha das diferentes partes da cidade, que se tenta encontrar alguém com uma conta no estrangeiro que possa trocar dinheiro ou comprar passagens para Portugal, que se trocam informações sobre a posição dos militares da Guarda. É por ali que Sofia se vai mantendo a par do que se passa na Venezuela e “não é fácil de ouvir”, as histórias dos amigos que “estão marcados pela polícia e que mesmo assim vão protestar todos os dias”.
Pelo caminho deixou o seu negócio. Trabalhava na área do fabrico de roupa desde os 17 anos e, uns anos mais tarde, abriu a sua própria fábrica. Com uma sócia, montaram uma loja e chegaram a vestir grandes estrelas da televisão venezuelana. Quando regressou, teve que largar tudo. “Não vendi o negócio porque não valia a pena, a minha sócia não ia poder pagar a minha parte. As pessoas já não têm dinheiro para comprar nada. Já não há matéria prima. Fica tudo preso na alfândega dias, semanas, e é preciso pagar muito para que libertem a mercadoria”, conta. Recomeçou como estagiária do lado de cá, e agora ganha pouco mais do que o ordenado mínimo. “As pessoas aqui perguntam quanto eu ganhava lá, e eu digo uns quatro salários mínimos. Parece bom mas hoje em dia isso não dá nem para as compras mais básicas de uma mulher que viva sozinha sem encargos de maior, como eu”, diz Sofia.
Começou do zero, sem vontade nenhuma mas agora que voltou diz que “não pensa mudar” porque “não dá para andar sempre a mudar, a mudar, a começar aqui e lá, aqui e lá”. A violência que germina na pobreza é um grilhão preso ao desenvolvimento de um país que Sofia viu crescer e depois cair, nas ruas. “Na Venezuela o que vai acontecer é que quando for preciso reconstruir o país não haverá ninguém com educação superior para ocupar os ministérios, perdeu-se uma geração porque quem quer um futuro melhor, ou um futuro de todo, tem que sair de lá. Não haverá investidores porque irão investir em outros lados, nas empresas faltarão quadros”. A esperança de Sofia é que pelo menos a violência passe rápido e que “da necessidade tenham nascido grandes ideias, tenha surgido o engenho, e um povo muito mais unido”.
Uma ilha portuguesa tingida de azul, vermelho e amarelo
Nas ruas do Funchal, nas ruas de Porto Santo, ouve-se agora quase tanto espanhol como português. Segundo os últimos números avançados pelo secretário regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus, Sérgio Marques, à agência Lusa, já terão regressado à Madeira entre 3.000 e 4.000 pessoas. Muitos nasceram e cresceram na Venezuela, alguns já são filhos de quem já nasceu lá. É o caso de Roberto Agreda, de 24 anos, que é neto de madeirenses.
A ligação a Portugal é ténue. Esteve dois anos a estudar no Funchal, no secundário, porque sequestraram o sócio do seu pai, numa padaria, ameaçaram a família toda e os pais enviaram-no a ele e ao irmão para casa de familiares na Madeira. Agradece as oportunidades que lhe foram dadas aqui, mas “será o primeiro a comprar bilhete de avião assim que a situação melhore”, conta ao Observador a partir do Monte, no Funchal.
Lá já tinha o seu próprio negócio, também na área da restauração. Na Madeira lava carros numa garagem. Diz que “só quem já viveu na Venezuela é que entende o que é viver no paraíso”, e que, na Europa, as coisas são muito mais calmas e organizadas, o que é bom, mas, na sua opinião, é tudo “um pouco fechado”.
A Venezuela, diz, é um país “cheio de paisagens virgens”, onde os jovens são “totalmente sonhadores”, onde deixou todos os amigos e tudo o que conhece. Apenas o pai lá ficou a tentar dissolver os negócios mas “não é possível vender nada, não há quem compre, vende-se apenas por um preço simbólico”, diz, tal como Júlio, o de Braga, já contara. É o ato de “regalar”, como muitas pessoas dizem. Vêm embora e oferecem muitas coisas a amigos e vizinhos, deixam os carros com os filhos dos amigos por preços irrisórios só porque mais vale que alguém usufrua do que se guardou tantos anos do que ficar tudo abandonado..
“Quase todos os portugueses lá são comerciantes, na sua maioria têm padarias, supermercados e restaurantes. Até há uns anos eram muito bons esses negócios, havia dinheiro do petróleo. Agora que o preço baixou os políticos começaram a ficar com medo da miséria e guardam tudo para eles mesmos. Invadem os negócios para poderem dar ao povo aquilo que é essencial para que algumas pessoas ainda se mantenham do lado deles. Nesse processo quem tem um negócio é que perde”, explica Roberto.
Chegou dia 10 de maio e diz que não pára de receber pedidos de ajuda de amigos que também querem sair de lá. “Centenas saem todos os dias para outros países da América Latina, para os Estados Unidos, para Inglaterra, Espanha e Portugal onde estão as maiores comunidades, mas acredito que por muito que sejamos bem recebidos, um venezuelano quer sempre regressar à Venezuela”, completa o jovem.
Roberto não tem responsabilidades. Deixou o coração no asfalto das estradas de Caracas, onde passou os últimos seis meses a protestar, mas não deixou filhos. Envia-nos vídeos pelo Whatsapp onde se veem homens a cortar árvores para trancarem as estradas, ele e os amigos envoltos em bandeiras da Venezuela no meio de avenidas atapetadas de pessoas que gritam pelo fim do regime. Sem medo. Não é o caso de Adriana Rodriguez, que, com 37 anos, deixou os seus três filhos com a mãe e voltou para tentar juntar dinheiro para as passagens de avião. Voltou dia 15 de julho mas parece que já os deixou há “uma vida”.
Lá tinha um restaurante de comida portuguesa e venezuelana que deixou de conseguir abastecer. Passou o espaço por pouco dinheiro, comprou a passagem e deixou o resto com mãe e com os filhos, duas meninas de 7 e 17 e um menino de 12. “Não paro de pensar neles, na segurança, na alimentação. Deixaram de ir à escola, como todos os outros. Há um ano que não sabem o que é leite com cereais, apenas pão e arepas quando há. Fruta e vegetais ainda vai havendo mas tremo só de pensar que eles ou a minha mãe ficam doentes”, conta ao telefone de Porto Santo, já perto da meia-noite, depois de mais um turno num hotel onde trabalha como camareira.
Os pai morreu, a mãe quer vir embora e os seus filhos também. Têm medo de tudo, estão “muito pouco protegidos” porque a avó também já não pode defendê-los se for caso disso. “As coisas correrem bem é não se passar fome”, resume Adriana, que vai sabendo pela mãe as falhas na alimentação equilibrada dos seus filhos, que cresceram no meio de uma cozinha farta, que servia centenas de refeições, e à roda de uma mesa de uma casa portuguesa. E para o seu maior problema, Adriana ainda não tem solução.
As autoridades venezuelanas não querem entregar o passaporte do menino. O das filhas foi emitido mas o do seu filho não saiu. “Claro que já dei dinheiro por trás, mas nada, não me dão razão, não me dizem nada, a minha mãe telefona, tenta informar-se e não dizem nenhuma data, não sabemos quando será emitido”.
Na Madeira não há emprego para todos os venezuelanos que estão a chegar. As últimas contas do governo regional, que a secretária regional da Inclusão e Assuntos Sociais (SRIAS), Rita Andrade, partilhou com o Observador, dão conta de cerca de 180 ex-emigrantes que, todos os meses, se inscrevem no Instituto de Emprego da Madeira. No final de maio de 2017, os números do desemprego na Madeira eram pouco animadores: mais de 16 000 desempregados num universo de 250 000 pessoas.
Mas o auxílio que estes novos retornados pedem não se fica apenas por um emprego. Aos serviços sociais chegam também pedidos para habitação social (para uma centena de pessoas). A SRIAS, através do Instituto de Segurança Social da Madeira, confirmou o organismo, apoia 173 famílias o que corresponde a 476 elementos destes mesmos agregados.
Outro indicador, está nos números divulgados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que registou, desde que as manifestações pró e contra Nicolás Maduro se intensificaram, mais de duas centenas de pedidos de autorização de residência de cidadãos venezuelanos.
Na Venezuela vivem perto de meio milhão de portugueses e luso-descendentes. Destes, cerca de 300 mil são originários da Madeira.
Cláudia Monteiro de Aguiar, eurodeputada pelo PSD, diz ao Observador que os eurodeputados portugueses têm feito um esforço para “não deixar cair no esquecimento” estas pessoas que estão a chegar a Portugal no geral — e à Madeira em Portugal. “Eu tenho exposto esta situação com alguma regularidade. As minhas interpelações a Federica Mogherini (chefe da diplomacia europeia) têm ido no sentido de garartir que os problemas destes novos emigrantes seja acompanhado”.
A eurodeputada confirma também que estão em marcha conversações para investigar que tipo de fundos europeus se podem destinar a ajudar estas pessoas, mas sublinha que esta é uma questão “politicamente difícil” uma vez que os próprios madeirenses também precisam de ajuda. “O que está a ser discutido, e isto para já é apenas uma discussão entre os eurodeputados portugueses, é o tipo de ajudas que poderiam estar disponíveis para estas pessoas, que, em parte, também são refugiados”, diz a eurodeputada.
Alguns chegam com poupanças robustas, que conseguiram tirar do país aos poucos, através de amigos com contas no estrangeiro ou enviando por transferência para Portugal quando os bancos ainda realizavam essas operações. Mas os que chegam com uma ou duas malas, mais de 50 anos de idade, um sotaque estranho e disponibilidade para fazerem o que quer que seja nem sempre são bem vistos pela população residente. Adriana conta que os seus colegas são frios para ela no hotel, “não prejudicam mas também não ajudam”. Em espanhol ela diz que a “burlam”. Esclarecimento no dicionário: “fazer pouco”, “chacota”, “gozar”, “troçar”, “piada”.
Com Aura ainda ninguém “troçou”, mas já a ofenderam. Chegou há um ano à Madeira depois de uma vida de 56 anos na Venezuela. Foi professora de português para estrangeiros no Instituto Camões em Caracas mas já ouviu dizerem-lhe na cara: “És muito velha para recomeçar”.
“Há muitas pessoas que, como eu, estão a regressar com uma mão na frente outra atrás”, diz Aura. Conta uma história de um casal idoso que foi habitar uma casa que tinham deixado há quase 70 anos. “Estão a pedir apoio para remodelação, a casa está quase a cair, mas é muito dinheiro. O orçamento do engenheiro levaria todas as suas poupanças. Mais vale destruir mesmo, é quase o mesmo dinheiro para construir uma casa nova, mas eles não têm onde viver, então estão lá, com más condições, a rezar que não chova muito este ano”.
Aura diz que já foi “a todo o lado” pedir emprego. “Não precisamos” é a resposta que, até agora, mais recebeu. Trabalhou 18 anos na TAP, mais cinco no Instituto Camões mas aqui já lhe disseram que não são precisas nem professoras, nem auxiliares de educação para os espaços de tempos livres das crianças quando saem da escola, nem ninguém para os check-in no aeroporto. Juntando ao facto de não ter ainda encontrado emprego, Aura tem um filho de 12 anos e dois pais bastante doentes. O pai tem Alzheimer, é diabético e tem problemas cardíacos. A mãe sofre de demência.
Pensou em abrir uma pastelaria, mas tem medo. Quando o assunto é investimento, Portugal parece-lhe “tão inseguro como a Venezuela”. A burocracia e os impostos têm colocado um travão ao investimento, na opinião de Aura: “Com a economia instável e uma carga tão pesada de impostos sobre as empresas é impossível saber se vamos reaver o nosso investimento nem mesmo em dez anos”. Na Venezuela, “assim que volte a democracia”, as pessoas “conseguirão de novo levantar um negócio do chão e fazê-lo prosperar”. O que falta é a paz e democracia que “está consolidada em Portugal”.
Subverter o sistema por dentro — ou, pelo menos, tentar
Desiree Dabois tem 38 anos e chegou a Portugal em junho de 2016. Tem um ano aqui, metade da família cá, metade lá. Irmãos, dois, e a mãe, continuam lá. Veio com o marido, Gustavo Pereira, filho de portugueses mas nascido na Venezuela. Ele próprio deixou lá outros dois filhos, de um outro casamento. E perde horas de sono a pensar no que fazer para os conseguir trazer. Falar com eles é uma injeção de “ansiedade e preocupação”.
Tem o telemóvel em cima da mesa e começa a reconstruir uma chamada normal com os filhos, via Skype.
“Holla papá, como estas?”, diz Gustavo imitando uma voz mais fina, com a das crianças.
“Bem, filhote, e vocês?”, responde para um ecrã sem imagem.
“Uiii papá”, imita ele de novo, desta vez baixando-se como todos fazemos, por reflexo, quando ouvimos um estrondo.
É isto que os filhos fazem do outro lado do ecrã, duas ou três vezes por chamada, porque da rua chegam estrondos, árvores a cair, petardos, balas e bombas de gás lacrimogéneo. “Não é fácil falar com eles e ver isto a acontecer sem poder fazer nada naquele exato momento”, diz.
Nem a sua nova família tem casa própria, vivem todos ainda com a mãe de Gustavo. Trazer o resto da família e mais a família de Desiree pode demorar. São quatro crianças, uma ex-mulher, a sogra e os cunhados que Gustavo teria que ajudar a integrar. Todos se dão bem, os filhos de Gustavo com a sua primeira mulher gostam muito de Desiree, que também se emociona ao falar da menina, de 17 anos, filha de Gustavo. “Ela olha para o ecrã e diz que isto não é a mesma coisa, que quer abraçar-nos, que não quer estar lá, longe da família e dos irmãos. Está sempre a perguntar quando é que podem vir”, conta.
A família de Gustavo é da Torreira, distrito de Aveiro, um dos que mais portugueses viu sair nos anos 60 e 70, e, por isso, um dos que mais tem acolhido quem regressa. Murtosa, Estarreja, Avanca, Vagos, Mira, são apenas alguns exemplos de cidades onde o Observador encontrou comunidades de luso-descendentes a crescer, apesar de sempre terem existido. Crescer em Aveiro é comer cachitos ao lanche, uma espécie de pão branco recheado de pedaços de fiambre, com ou sem queijo derretido por cima, empanadas de carne moída e ver as montras de quase todas as padarias decoradas com vários tipos de farinha PAN, que é importada da Venezuela.
No seu último ano lá, Desiree travou algumas batalhas inglórias. Numas conseguiu pequenas vitórias, as vitórias possíveis de quem foi advogada do Ministério Público. A sua superior direta era Luísa Ortega Díaz, a Procuradora-Geral da República que recentemente pediu proteção pessoal por se ter revelado contra a realização das eleições para a Assembleia Constituinte deste domingo, dia 30. O seu passaporte foi-lhe retirado e as suas contas bancárias foram congeladas, mas Ortega Díaz continua a desafiar o governo, movendo processos contra membros da polícia culpados de agredir ou mesmo matar membros da oposição durante as manifestações.
“Esta Assembleia Constituinte é um ataque à integridade dos venezuelanos, foi o que Ortega Díaz nos disse tantas vezes. E por muito que tentemos ver isso de outra forma, ela mesma sempre foi fiel à Constituição de Chavéz, é impossível. Ainda ninguém explicou o que é que está mal na Constituição, porque é que precisamos de a modificar”, lamenta Desiree que viu o sistema judicial a tomar, aos poucos, “a forma de Maduro”.
Mas nem ela, nem os seus colegas, cediam sempre. Quando podiam iam contornando as diretrizes de Caracas. Mas houve um dia em que Desiree se sentiu um pequenino grão de areia numa engrenagem enorme, trituradora. Chegou ao Tribunal e tinha 10 jovens, todos ou estudantes do secundário ou da Universidade, para prender, em nome do Estado para o qual trabalhava.
“Olhei para aquele enorme processo, para as caras dos rapazes, uns miúdos, todos estudantes, sem qualquer registo criminal prévio e tive que ir ler a acusação enviada por Caracas. Não podia retirar as acusações mas podia ler monocordicamente a acusação e fazer menos para os acusar do que seria requerido de uma advogada do Ministério Público”. Foi o que fez. Os jovens tinham protestado em Barguisimeto, no estado de Lara, onde as manifestações têm sido quase tão intensos como em Caracas. Mas não tinham ferido ninguém, pelo menos nada do género constava do processo que os acusava. “A juíza foi muito justa e deixou-os ir”, conta Desiree que gosta de pensar que tanto ela como os seus colegas que trabalhavam naquela dependência do Ministério Público fizeram sempre o possível para que a arbitrariedade não levasse a melhor. “Nesse dia estive 10 horas no Tribunal, cheguei às 10 da noite a casa com uma carga de dores de cabeça que mal conseguia aguentar. Aquilo iria sempre assim dali para a frente?”, perguntou-se, na altura.
Durante os seis meses seguintes, Desiree teve em mãos vários casos de “delito económico”. E o espectro deste delito é abrangente: os transportes públicos privados não podem cobrar o preço de bilhete que precisam para cobrir as despesas, os patrões não podem despedir ninguém, os comerciantes não podem comprar a quantidade de matéria prima que precisam nem vender os produtos ao preço que decidam, para cobrir custos e ter lucro. Chegavam à secretária de Desiree dezenas de delitos como estes, aos quais a sua consciência não permitia dar seguimento. Conta um episódio específico:
“Um dia chegou-me uma acusação de um senhor que era apenas motorista de camiões de transporte de mercadorias. Tinha na mala peças para automóvel, velas penso eu, e foi apanhado pela polícia sem fatura de compra de material. É preciso averiguar onde está a fatura, é certo, mas não se pode prender uma pessoa por isso. Tem que se apreender a mercadoria, ir ver onde está a fatura e depois o dono da mercadoria pode ir ao armazém da Guarda reaver o que comprou”, começa Desiree. “Pois esse retorno da mercadoria deixou de ser possível. Eu emitia a ordem para que o comerciante fosse buscar a sua mercadoria, o comerciante chegava com a minha ordem ao local onde a sua mercadoria estava arrestada e não lha devolviam. Eram meses e meses ou então acabavam por pagar subornos para apenas reaver uma parte. Outra ficava para o governo. Toda a gente sabe disso”, relembra a advogada.
Desiree foi uma testemunha privilegiada do afunilamento do sistema e da concentração de poderes. “É um conceito que vai terminar. Esta Assembleia, a própria Comissão Eleitoral já o disse, terá total poder para modificar a Constituição, para dissolver o Parlamento e para modificar a ordem legal, carimbado as ordens do Presidente sem que elas passem por qualquer escrutínio”, diz.
“Vais comprar pão e parece que estás a comprar droga”
Entre setembro de 2015 e maio de 2016 renunciaram 15 dos 20 advogados seus colegas. Não foi fácil vir com mais de três décadas de vida dentro de duas malas mas, enquanto lá estava, ainda com os filhos, a insegurança era impossível de aguentar. “Sai da janela Gustavinho”, era a frase que Desiree mais dizia ao filho, agora com quatro anos, nos meses que antecederam o regresso. Na Venezuela viviam num condomínio fechado, mas os filhos deixaram de ir à escola porque as ruas principais estavam permanentemente “uma sauna”, uma metáfora para “situação demasiado perigosa”, acrescenta.
“Não há farinha e um pão tornou-se uma espécie de relíquia”, diz Gustavo, o pai. “O meu filho pedia-me um pão e eu não tinha para lhe dar”, conta a mãe. Recorreu então à ajuda de alguns portugueses que ainda têm padarias não tomadas pelo governo, que tem ocupado bastantes, dirigindo a produção e fixando os preços. “Chegava com o carro no fim da tarde, estacionava na parte de trás, e tinha que comprar queijo, manteiga e sumos para poder por o pão por baixo porque se alguém vê pão roubam-te na hora. Parecia que estavas a comprar droga, a olhar para todos os lados a ver se vinha a polícia”, recorda Gustavo que depois gesticula como um polícia sinaleiro que quer apressar o tráfego a imitar a cena que se passava na pastelaria dos seus amigos: ‘Agora, agora, mete no carro, mete no carro, ‘bora, ‘bora!” E lá iam os sumos e o queijo por cima de duas ou três baguetes.
As famílias revezam-se na filas para tudo. Muitos têm que faltar ao emprego um turno inteiro porque chegam a formar-se filas de três, quatro horas para adquirir o que quer que seja que exista na loja. É o último número do Bilhete de Identidade que designa os dias a que cada cidadão pode ir buscar comida. “Chegamos lá e dizemos que queremos, por exemplo, leite e farinha. E, muitas vezes, a resposta é que não há. Então o que é que há? Há azeite e couves. Ok, então levo isso”, exemplifica o marido.
Na Venezuela, Gustavo trabalhava na distribuição de alimentos mas, como ele exemplifica, esse deixou de ser um negócio viável. Passou a transportar pessoas em carrinhas de luxo, maioritariamente empresários e políticos, diplomatas e pessoas que precisassem de segurança nas suas viagens. Agora está a investir numa bebida orgânica criada por britânicos que já se vende em algumas lojas de produtos biológicos. É colocar dinheiro numa coisa que ele não sabe se vai dar dinheiro mas é da sua personalidade, e da da maioria dos emigrantes, investir e tentar lançar novos negócios.
Para Gustavo, é precisamente o fim do “socialismo aberto”, onde cada pessoa podia ter o seu negócio, que há-de ferir de morte a Venezuela. Desiree acrescenta: “Não há segurança jurídica. Quem é que vai abrir um negócio sabendo que pode ser acusado de delito económico só por estar a vender os seus produtos, que pode ser preso, que a sua mercadoria pode ser tomada ou o seu negócio nacionalizado? Ninguém”.
Afinal ainda nascem negócios — como o dos bachaqueros
Não seria bem a isto que Sofia se referia quando falou ao Observador das novas ideias que poderiam nascer das dificuldades económicas que afetam a Venezuela mas o que é certo é que há negócios ilegais a nascer.
Um bachaco é uma formiga grande, que se encontra principalmente junto das zonas fluviais das selvas da América do Sul — e agora é também o nome que designa alguém que compra os produtos de primeira necessidade por preços muito baixos, fixados pelo governo, e os revende no mercado negro. Também aqui é tudo acertado pelo Whataspp. Muitas vezes com a conivência da Guarda, estas pessoas entram em primeiro lugar nos supermercados, ou várias vezes, compram a quantidade autorizada de mercadoria por pessoa, armazenam tudo em casa, aos poucos, como uma formiga, e depois revendem. Marilin, que não quis dar o nome verdadeiro ao Observador, é uma das pessoas que se dedica a esta atividade.
“Logo de manhã vou para os mercados com algumas amigas que também se começaram a dedicar a esta atividade porque perdemos os nossos empregos. Compramos aquilo que podemos, organizamos tudo num armazém escondido e, por volta do meio dia, enviamos mensagens aos nossos clientes, a informar quais os produtos que, naquele dia, temos disponíveis”, diz a jovem mãe de 34 anos que trabalhava num supermercado que teve que despedir pessoas, mas que ainda utiliza os seus contactos no meio para conseguir saber quando é que vão chegar mais mercadorias.
É aos bachaqueros que Maduro culpa pela escalada dos preços na Venezuela, mas Marilin diz que não vende os produtos a preços exorbitantes e garante que é sem este interposto muitas famílias não poderiam comer: porque já não chegariam a tempo de comprar nada quando a sua vez na fila chegasse.
“Claro que é errado, claro que é subversão do sistema, claro que há pessoas a vender arroz pelo preço de meio salário mínimo mas a primeira subversão foi a do governo porque isto não era necessário há cinco anos. Porque é que agora eu e tanta gente mais temos que fazer isto para sobreviver?”, pergunta Marilin numa breve chamada.
Marilin fala de condutores de táxi, comerciantes, professores que também se tornaram bachaqueros pelo menos um dia por semana. “Não é uma profissão nem uma forma de vida, é sobrevivência e a sobrevivência deixou de ser exceção para passar a ser a regra”, diz, reforçando o pedido para que não divulguemos o seu nome.
Alguns dos produtos que consegue divide com quem lhe dá a informação, outros oferece à Guarda, que “também precisa de comer”. Para conseguir estas mercearias, Marilin e as amigas têm Bilhetes de Identidade falsos, com números diferentes, para poderem ir buscar produtos fora dos dias designados pelo governo.
De acordo com a Lei dos Preços Justos, que estabelece os preços autorizados, alguém que venda comida no mercado negro pode passar cinco anos na prisão mas, segundo a empresa de sondagens Datanálisis, 60% das pessoas que fazem fila em frente aos supermercados revendem uma parte dos produtos que conseguem.
“Não se trata apenas de uma economia desequilibrada ou de um Estado de direito em queda. É uma reação em cadeia: metade da população dedica-se a comprar produtos de primeira necessidade e a outra metade a comprá-los a 100 vezes o seu preço para ter alguma coisa que comer. Isto não é um agravamento da qualidade de vida: isto é genocídio”, disse Miguel Ángel Campos, sociólogo de la Universidade de Zulia, ao diário espanhol El País.