É o princípio da tarde. Ricardo Araújo Pereira reserva-se no canto esquerdo do pavilhão Municipal das Travessas, em São João da Madeira, com a restante equipa Kolmachine. Tem um livro na mão. Fora daquelas paredes é uma estrela. Ali dentro, poucos dão por ele e consegue passar despercebido pelas bancadas dos amantes de Kickboxing.
Mas os jornalistas já estão atentos: “Antes de a revista Sábado ter dito a todo o mundo, incluindo à minha mãe, que isto ia acontecer, eu ia participar numa coisa semi-clandestina em São João da Madeira”, desabafa ao Observador. Trouxe o carro com mais quatro pessoas, veio pelo amor que tem ao desporto e passou de três para cinco treinos semanais para aceitar o desafio de competir na final da Taça.
Ali se decide que equipas serão vencedoras da Taça de Portugal de Kickboxing e de Muaythai, num evento que, pelas idades dos atletas, mais parece um torneio de Desporto Escolar, afeto, de facto, à clandestinidade. E teria sido, não fosse ter-se sabido que um dos veteranos inscritos é humorista, apresentador, comentador político e vizinho das televisões de meio Portugal.
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Mas “veterano”, dentro do ringue, “significa apenas ter mais de 41 anos. Não é propriamente sinónimo de muita experiência”, esclarece Mafalda Falcão, da Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai. E realmente é isso que é ali Ricardo Pereira (faltou-lhe o Araújo, deixou-o cair de propósito na hora da inscrição como num golpe de defesa): mais velho mas inexperiente, por comparação com a média dos restantes 450 atletas.
A quadratura de um dia a combater mede-se em São João da Madeira pela falta de originalidade noutras figuras geométricas. É quadrado o ringue, o tatame – tapete – ringue dos mais amadores -, como o pavilhão de chão de madeira que contém em várias cores as linhas dos campos de voleibol, andebol, basquetebol. Também quadradas são as mais de seis mil cadeiras para espetadores do pavilhão, que se enchem à medida que o dia passa de meio vazio para meio cheio.
Depois das pesagens, logo pela manhã, e do sorteio de combates, “dás um passo para a direita e metes a perna”. Começam os combates ao fim da manhã e os conselhos dos treinadores de bancada, quando dois jovens adolescentes lutam com as cores nos capacetes iguais às do tapete – tatame – azul e vermelho nº 5. No ringue nº 1, na mesma direção, em vez de se avaliar a velocidade, no light contact, confere-se a potência dos golpes entre Céu Macedo e Carolina Proença.
O treinador do Clube Desportivo de Guimarães só repete “anda” para Céu. No fim do primeiro assalto, do outro lado, Carolina Proença ruma do centro para o canto do ringue e apanha o vento da toalha do treinador, que lhe dá recomendações e olha para o relógio.
Um minuto passado, o “fight” do árbitro e o toque luva a luva, “olha o frontal, olha o frontal”.
Daqui a quatro minutos acaba! Se não atacas, ela descansa. Não estás a fazer nada! Bora lá, Céu”.
Mas com fogo nos calções como nos golpes, Carolina ganhou por acumulação de pontos. “Quando a vi pensei que o combate ir acabar a meio e a primeira impressão conta bastante”. É nos que insistem em questionar a sua capacidade para vencer que pensa Carolina quando calça as luvas e entrança o cabelo para lutar. Treina desde que, com seis anos, experimentou o ballet. “Cheguei a ir a uma aula mas depois disse à minha mãe que queria ir para o kickboxing com o pai”.
Ainda faltam algumas horas para entrar na competição, mas Ricardo (Araújo) Pereira já tem presença assegurada nas meias finais. O adversário do combate para os quartos de final tinha desistido. Agora é esperar: o atleta treinado por Pedro Kol e Diogo Neves só tem combate marcado para o final do dia.
Até à pausa para almoço, dois ringues e três tatames serviam de palco para provas simultâneas. Nas bancadas azuis e amarelas, pais e equipas dividiam-se entre os que se sentavam apenas a assistir, de mãos cruzadas e por vezes de olhos fechados, e os que, agarrados ao corrimão, eram a claque necessária dos atletas.
Esta é a segunda prova mais importante, a seguir ao campeonato, para os dois desportos de combate em que se tenta ser inteligente nos pontapés e nos murros dados ao adversário. Para isso, quase sempre justifica insistir num ponto fraco. Na modalidade de light contact, a de Ricardo Araújo Pereira, não é possível dar pontapés nas pernas e há mais proteção nos equipamentos.
Hora de almoço e o sabor a vitória, na sueca
“O paus estava seguro” mas, com firmeza, Albertino chuta um “ás” e faz eco na mesa. “É o jogador com pior perder”, conta-nos Delfim Gonçalves. Albertino não responde à provocação. Os dez idosos de São João da Madeira, jogadores de sueca, estão apertados numa mesa no canto: “Porque hoje está cá muita gente”, analisa o reformado. É essa a diferença para os outros dias, em que montam pelo menos quatro meses para jogar às cartas. Ainda assim, “o pavilhão é muito grande, dá largueza para toda a gente”, assegura Delfim. Há mais de cinco anos que vêm sempre de terça a sábado para o pavilhão, “depois da hora e meia”, e por aqui ficam até às 16h30 ou 17h. Depois fecha e cada um vai para sua casa, “para o lume”.
O “roda bota fora” faz-se no jogo da sueca, mas também lá em baixo, nos ringues. Da parte da tarde, são disputadas as semi-finais, com os atletas já apurados dos quartos de final, disputados de manhã. Delfim não sabia que Ricardo Pereira fazia parte da “canalha a lutar”, mas também não se esforçou por procurar o humorista. Tal como Manuela Vidrago, que não deu importância ao atleta VIP. “Se quer saber, até acho que em vez de estar ali escondido, se podia mostrar”, confessa ao Observador.
Nas bancadas, há cheiro a festas de anos. Mães e avós sacam das marmitas feitas em casa onde cabem rissóis, batatas fritas, saladas e massa com carne, para quem leva a sério a dieta proteica.
De casaco “tigresse” e unhas de gel roxas, assiste à prova a avó do campeão nacional de -57kg de light kick, José Silva: “É a primeira vez que venho assistir. E vai ser a última”. Apesar de ter uma família muito ligada ao desporto, esta mulher de 67 anos não gosta de ver o neto a lutar – “dá-me vontade de chorar” -, mesmo quando ganha. “Ele andava doente e há duas semanas que não treinava, mas disse que vinha na mesma e que se sentisse mal, atirava a toalha ao chão. Depois até ganhou”, confessa, quase tão surpreendida como José, ao saber que RAP também por ali andava.
O Ricardo Araújo Pereira vem cá fazer o quê?”, pergunta o neto.
“Não sei mas a tua mãe já me tinha dito…”
“Na minha equipa [Team New Kick] ninguém comentou nada”.
Seis da tarde e um ringue a mais, porque “dear weekend, I love you”
O dia correria a meio pelas 17h30, caso os combates demorassem o tempo previamente estipulado. Claro estava, nesta altura, que os prognósticos tinham sido otimistas: nem a metade das provas ia aquele campeonato. Quando alguns se deitam no chão com mantas polares e casacos a servir de cobertores, outros aplicam golpes no ar, fixando um ponto imaginário, e muitos saltam à corda para não arrefecerem.
“Para tanto atleta, só três tapetes…”, resmunga uma mãe na bancada, depois de abrir a boca e de reposicionar os sacos com taparueres de frango e arroz. “Sabe que eles até às pesagens não podem comer. Há miúdos que têm de perder três quilos para combater. Depois vai arroz, frango, nozes, chocolates… vai tudo!”.
O peso já não é um problema para Ricardo (Araújo) Pereira desde que começou, em 2018, a praticar kickboxing. “É um desporto muito intenso que me permite comer, beber e fumar o que eu quero sem pesar 100 quilos”. Sempre gostou de desportos de combate, mas passar da posição de espetador para a de atleta fá-lo chegar à conclusão de que nunca esteve “em tão boa forma física”.
Pelas seis da tarde, o aproximar da primeira luta fá-lo ficar nervoso. Começa a aquecer com os treinadores e a equipar-se, à medida que a Federação decide montar um terceiro tapete tatame, para acelerar os combates, porque “Dear weekend, I love you”, lê-se numa bolsa na mesa da arbitragem.
A ala esquerda do pavilhão, adepta até então de uma certa reserva, ganhou vida própria. A equipa Kolmachine, do treinador Pedro Kol, tinha de repente três atletas a competir. João, no ringue, com “twins” escrito a letras brilhantes nos calções curtos, merecia gritos de apoio da bancada, mas logo depois é o Ricardo sem Araújo que chama as atenções. Prepara-se para pisar o tatame central e para aparecer ao mundo, sob as lentes das câmaras dos jornalistas, como o humorista que também sabe como andar à pancada.
Luvas brancas, capacete preto, combatia contra outro Ricardo, experiente e pouco intimidado. “Tá tudo a vê-lo! Tem mais gente aqui do que nos espetáculos dele”, grita um homem ligado em videochamada com duas mulheres, prontas para ver o combate em direto. E se, por essa altura já não se jogava a sueca e havia reduzido o público nas bancadas, levantaram-se os telemóveis.
Ricardo Pereira, “faz a tua!”, dizem os treinadores. É o pontapé à cabeça, o golpe preferido e facilitado pelos mais de 1,90 metros de altura. “Perna, é tua, é tua!”. Mas “tá-se a esticar, ele”, comenta-se de fora quando a árbitra manda acalmar.
Vocês é que estão a colocar uma pressão enorme no homem”, diz alguém aos jornalistas.
Não terá sido pelos flashes das câmaras que Ricardo perdeu para o homónimo Pires, no primeiro combate de kickboxing. Porque “veio só para se divertir”, o também radialista e apresentador de televisão sai sorridente do tatame. No fim, um abraço.
“O que dói mais não é o impacto, é eu pensar que estou todo fechadinho, que não entra nada, e depois o adversário demonstrar, por via de um banano mesmo no meio das ventas, que eu estava enganado. Dói mais no orgulho do que nas ventas”.
Nota retificativa: Céu Macedo, que combateu nos quarto de final contra Carolina Proença, acabou por vencer o combate. Após o treinador Manuel Gomes ter arriscado os 100€ de taxa de protesto (mais tarde devolvidos) e após revisão por parte do júri, o resultado passou de 1-2 para 3-0 e a atleta combateu mais tarde nas meia-finais, altura em que também saiu vitoriosa.