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Richard Zenith: "Fernando Pessoa era como um cientista, sempre a fazer experiências sobre o seu próprio ser"

Foram precisos 12 anos para que Zenith sentisse que tinha a biografia de Pessoa que queria fazer. Hoje sabe que o conhece melhor, mas continua sem o conseguir explicar: isso "seria uma contradição".

Escrever sobre quem foi Fernando Pessoa não é fácil. Figura reservada, enigmática e fugidia, tentar desenhar-lhe os traços e compor-lhe a vida pode ser uma tarefa “insana” que nunca dará os frutos desejados. Richard Zenith, que há mais de dez anos decidiu mergulhar nesse mar pessoano, chegou a acreditar nisso. Nunca seria capaz de escapar do labirinto e a biografia, que se tinha proposto escrever por sugestão do seu agente em Nova Iorque, nunca sairia. Os amigos, menos crentes do que ele, diziam-lhe isso mesmo, que não queria pôr um ponto final na história, que não era capaz. Foi só há dois três anos que o investigador norte-americano há vários anos a residir em Portugal conseguiu afastar de vez as dúvidas: sentiu que era capaz de escrever a biografia que queria escrever.

Essa biografia, Pessoa: An Experimental Life na edição britânica, saiu em inglês no final de julho, no Reino Unido e também nos Estados Unidos da América. Uma edição em português já está prometida, mas só deverá ser publicada no final do primeiro semestre de 2022. Com mais de mil páginas (que poderiam ser muitas mais, já que cerca de 15% do texto original foi cortado durante a edição), que incluem mapas, cronologia, uma árvore da família do escritor e várias fotografias, Pessoa é a primeira grande biografia desde a de João Gaspar Simões, editada em 1950. Fruto de um intenso trabalho de investigação, percorre cronologicamente a vida do poeta nascido em 1888 e falecido em 1935 em Lisboa, revelando pormenores desconhecidos e deitando por terra mitos que trabalhos anteriores perpetuaram.

A viagem foi longa e Richard Zenith admite que aprendeu muito pelo caminho. Conhece melhor Fernando Pessoa do que conhecia há 12 ou 13 anos, mas continua sem o conseguir explicar. Fazê-lo, acredita, seria uma contradição. “Acho que ele não se explica”, disse durante uma entrevista com o Observador, em que se falou do processo de escrever Pessoa e da dificuldade de chegar ao poeta, sempre instável, sempre em movimento. “Explicar Fernando Pessoa seria uma contradição, se admitirmos, como eu admito, que ele estava continuamente em fluxo, sempre a mudar. Não há um explicar, um definir, mas há um acompanhar, um sentir, um conhecer. Foi isso que tentei fazer.”

A edição britânica de Pessoa, publicada pela Allen Lane, uma chancela da Penguin. O livro foi publicado no final de julho

Trabalhou nesta biografia durante mais de dez anos. Como é que tudo começou?
Acho que quem me empurrou mesmo foi o meu agente. Tenho um agente literário em Nova Iorque por causa das minhas traduções de Pessoa. Ele achava que era bom montar um projeto, uma proposta de biografia. Estava ocupado a fazer outras coisas, a traduzir Camões, outros projetos, mas fiz a proposta e houve logo interesse da parte de várias editoras. E assim foi. Agora, a verdade é que o meu percurso nas edições e nos estudos levava a isso. Em 2003, publiquei Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, textos autobiográficos. Já estava a nadar nessas águas. Interessava-me muito a pessoa que era Fernando Pessoa. Também tinha, em parceria com Joaquim Vieira, publicado uma fotobiografia. Foi a segunda. A primeira, como sabemos, saiu há muitos anos. A de Maria José de Lencastre, que parece que inventou o próprio conceito de fotobiografia. Parece que a primeira de todas foi a de Pessoa feita por ela. A nossa era diferente, porque houve um texto. Tinha uma biografia resumida de Fernando Pessoa, que foi da minha responsabilidade. Tudo isso levava a que escrevesse uma biografia como deve ser, digamos.

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Era então inevitável?
Parece que sim [risos].

Fernando Pessoa não é um biografado qualquer. É um biografado particularmente difícil.
Incrivelmente difícil. Muito mais do que imaginava.

Mais ainda?
Sim, porque ingenuamente pensei que isto me ia levar dois, três anos de trabalho e, na verdade, foram 12, 13 anos de trabalho. O problema é que Pessoa era uma pessoa social, tinha os seus encontros com os amigos nos cafés, tinha um bom sentido de humor, mas era extremamente reservado e por isso é difícil chegar a quem era Fernando Pessoa. A uma certa altura, no início, comecei a escrever na primeira pessoa. Era uma tentativa de chegar a este ser. Vi rapidamente que não era possível, só com muita ficção, o que não era o meu propósito. O que não disse ainda é que se revelam muitos aspetos do seu ser na literatura. No Livro do Desassossego, na poesia… E no espólio, misturados com esses textos obviamente literários, há muitos apontamentos autobiográficos. Todo esse material é muito útil, é fundamental para escrever sobre Pessoa.

“Pessoa tinha o dom de acreditar em coisas em que não acreditava realmente, como as crianças. As crianças sabem perfeitamente que o boneco não é real, mas podem agir como se fosse. Pessoa não perdeu essa capacidade.”
Richard Zenith

Partir da literatura pode ser perigoso. 
A literatura é sempre complicada. A literatura de Pessoa é muito autobiográfica, mas de um modo distorcido. Não podemos pegar numa frase qualquer de um poema ou do Livro do Desassossego e dizer que isso é como era Pessoa. Também porque Pessoa, e isso é um dos problemas de escrever uma biografia, era um ser constantemente instável. Estava sempre a mudar. Não era o mesmo há um ano ou mesmo há um mês. Temos de estar atentos a esse mudar-se contínuo.

Até os textos que são obviamente biográficos podem ser problemáticos. Conta na biografia que  encontrou uma carta, da altura em que Pessoa mostrou no seu diário ter vontade de mudar-se para Londres, que supostamente tinha sido escrita por um amigo de Pessoa nessa cidade mas que afinal tinha sido escrita pelo próprio Pessoa.
Essa carta foi um dos momentos mais estranhos [risos]. Era uma carta que não era conhecida, que estava com a família e que agora está na Biblioteca Nacional. Penso que ainda não está disponível para consulta, mas vai estar. É difícil de decifrar, começa “My dear P.”, em inglês, “Meu querido Pessoa”. São várias páginas de alguém de Durban [na África do Sul], recebidas poucos meses depois de Pessoa ter viajado pela última vez para Portugal. Foi no outono de 1905 que voltou para Portugal e no início de 1906 supostamente recebeu essa carta, que fala dos amigos em comum em Durban. Fiquei muito surpreendido, porque percebia-se também que Pessoa era um membro-chave desse grupo, que era uma espécie de líder. A carta falava de vários rapazes, um que tinha ido a Washington D.C., outro que tinha feito isto, outro que fez aquilo. Esse amigo estava em Londres. Finalmente consegui decifrar a assinatura e vi que era “G. Nabo”, Gaudêncio Nabos, um heterónimo que Pessoa criou em Durban. Essa carta é espantosa, porque debate-se muito o que é que é a heteronímia e o que era para Fernando Pessoa. Há alguns estudiosos que mais ou menos a desprezam, [dizem que] a heteronímia não é muito importante. O que é que significa Pessoa, com quase 18 anos, ter escrito uma carta de quatro, cinco páginas, para si próprio em nome de um heterónimo? Isso é realmente misterioso, o que é que passou pela cabeça de Pessoa quando fez isso. Então, e como digo na biografia, depois dessa carta, tudo parece possível [risos].

Isso pode levar a questionar tudo, até as coisas mais óbvias.
Exato. E também o significado da heteronímia. Claro que Pessoa sabia que era tudo ficção, ficção que ele criou, mas é uma ficção que viveu. Não era só uma brincadeira literária. Era uma brincadeira, sim, mas era uma brincadeira de grande importância, que o fez vibrar. Isso é um pouco difícil de compreender. Acho que Pessoa tinha o dom de acreditar em coisas em que não acreditava realmente, como as crianças. As crianças sabem perfeitamente que o boneco não é real, mas podem agir como se fosse. Pessoa não perdeu essa capacidade. De certo modo, ficou sempre criança, com essa capacidade de agir como se alguma coisa fosse real mesmo não sendo.

Fernando Pessoa com seis, dez e 19 anos. Em baixo à direita, em Durban, na África do Sul, com a mãe, o padrasto e os irmãos, numa fotografia tirada em 1904, quando Pessoa teria 16 anos

Casa Fernando Pessoa - Facebook

É como se nunca tivesse perdido a capacidade de acreditar no Pai Natal?
Sim, é isso mesmo. Quando era pequeno, se calhar num primeiro momento acreditava mesmo no Pai Natal, mas depois soube que não era real, mas ao mesmo tempo era. Para mim, era as duas coisas ao mesmo tempo. Pessoa tinha sido. Falei nos heterónimos mas, por exemplo, a astrologia. Há pessoas que estão convencidas de que Pessoa acreditava piamente na astrologia e questionam-se como é que é possível que gastasse horas e horas a construir todas aquelas cartas astrológicas. Para alguns, é uma evidência de que realmente acreditava. Sim, acreditava, mas, contemporaneamente, era uma brincadeira. O facto de ele gastar tantas horas [numa coisa] não é garantia de nada. Não podemos dizer que Pessoa realmente acreditava [na astrologia]. Há um poema em que diz que às vezes fica envergonhado por poder acreditar tanto nas coisas em que não acredita. Acho que temos sempre de nos lembrar de que ele estava sempre em movimento, em fluxo, e que não o podemos captar e dizer “isto é o que Pessoa era” ou “isto é o que Pessoa acreditava”. Por isso também o título da biografia na edição inglesa, Pessoa: An Experimental Life. Pessoa era como um cientista, sempre a fazer experiências sobre o seu próprio ser e sobre muitas outras coisas também.

Como é que lidou com essa dificuldade de escrever sobre alguém que nunca era nada em definitivo, que estava sempre em movimento?
Para mim, era viajar. Fazer a biografia era viajar na vida de Pessoa e com Pessoa, para poder acompanhá-lo, senti-lo e depois transmiti-lo. Houve um crítico que disse que a biografia era “gloriosamente labiríntica”. Fiquei aliviado. Sei que realmente é labiríntica e ele achou que o era “gloriosamente”. “Labiríntico” pode ser o contrário, confuso e Deus nos livre! Todos os temas, os interesses que Pessoa tinha, tinha-os desde o início, desde que era jovem. Já tinha nessa altura esse interesse por coisas espirituais, por política, pela problemática da sexualidade. Tudo isso começou muito cedo e continuou durante o resto da vida. Queria mostrar como tudo estava relacionado também. Para tentar transmitir isso, abordei a biografia um pouco como uma fuga musical. Vários temas que depois se entrelaçam em diferentes versões ao longo da composição musical. Foi isso que tentei fazer, seguir esses vários fios da vida de Pessoa e mostrar como se entrelaçaram ao longo da vida toda.

“Acho que temos sempre de nos lembrar de que ele estava sempre em movimento, em fluxo, e que não o podemos captar (...). Por isso também o título da biografia na edição inglesa, 'Pessoa: An Experimental Life'. Pessoa era como um cientista, sempre a fazer experiências sobre o seu próprio ser e sobre muitas outras coisas também.”
Richard Zenith

Disse que procurou viajar com Pessoa. Essa viagem não foi apenas com ele, mas também ao tempo dele. Esta biografia tem muito contexto — histórico, social, político. 
Desde o início que achei que era importante contextualizar bastante Pessoa, porque o espaço e o tempo ocupado por uma pessoa inevitavelmente define até certo ponto essa pessoa. Achava que isso poderia ser também uma maneira de chegar a Fernando Pessoa, a essa pessoa tão difícil de conhecer. Escrevi a biografia em inglês e parecia-me também fundamental mostrar aos leitores que não são portugueses ficassem a saber como era Portugal e a África do Sul naqueles tempos. Isso também é importante, sobretudo para Pessoa, que estava sempre interessado na política. Mas penso que esta contextualização também serve para os leitores portugueses. Esses tempos são um bocado remotos para nós. Sabemos assim por alto [o que aconteceu], mas não sabemos os pormenores, que são importantes. E talvez isso seja uma vantagem para este livro — eram tempos fascinantes! Foi o tempo da Guerra dos Boéres na África do Sul, foi lá que Gandhi [que esteve em Durban quando Pessoa lá vivia] começou a sua luta pelos direitos dos indianos; em Portugal, da transição da monarquia para a república disléxica e depois para a ditadura e o Estado Novo. Foram tempos muito conturbados e que, em si, mesmo sem a vida de Pessoa, são extremamente interessantes.

Uma das fontes a que recorreu foi o testemunho das pessoas que conheceram Fernando Pessoa, os amigos e os familiares. No prólogo, diz que quem lhe era próximo tinha muito pouco para dizer sobre ele. Como é que isso é possível?
A irmã [Madalena Henriqueta, conhecida por Teca], que tinha mais coisas a dizer do que os outros, não sabia nada em relação à Ofélia. Só depois da morte de Fernando Pessoa é que descobriu que ele teve essa relação. Como é que é possível, não é? Mas Pessoa era assim. Não gostava de se revelar, não dessa maneira. Reservava isso, curiosamente, para a sua escrita literária.

"Não há um explicar Pessoa, um definir, mas há um acompanhar, um sentir, um conhecer. Foi isso que tentei fazer", disse-nos Richard Zenith

© Hanmin Kim

Consultou a correspondência pessoal de alguns membros da família, nomeadamente as cartas da sua mãe para a irmã e mãe nos Açores, que forneceram dados muito interessantes sobre a infância do poeta em Lisboa. Descobriu alguma coisa nessas cartas que o surpreendeu particularmente?
Não sei se houve uma coisa em particular, mas essas cartas revelaram muitos pormenores sobre a relação da mãe de Pessoa com o primeiro marido, Joaquim de Seabra Pessoa, pai de Pessoa. Por exemplo, sabemos através de uma carta da avó materna [Ana Maria Xavier] para a mãe de Pessoa que ela foi feliz durante o primeiro ano do casamento e que depois começou a ter problemas e a sentir-se aflita devido à situação com a avó Dionísia, mãe de seu marido, e a sua demência que sempre piorava. E depois, claro, a tuberculose do marido. Foram tempos difíceis para ela e também para o Fernando. Nessas cartas há também muitos dados sobre o namoro da mãe de Pessoa com João Miguel Rosa, que seria o seu segundo marido. Para mim, é evidente que o grande amor dela foi esse segundo marido, ainda mais do que o primeiro.

Porque é que acha isso?
Porque vemos que esse encontro com João Miguel Rosa foi fulgurante. Era uma grande, grande paixão. Com certeza ela amava o primeiro marido, o pai de Pessoa, mas não sei… Penso que [no primeiro casamento] talvez houvesse um desejo de ser independente, de criar a sua própria família. Com certeza que havia amor também. Ela escreveu muitos poemas sobre essa paixão pelo segundo marido. Sobre o primeiro, não. Pelo menos nada que tenha ficado. Também nessas cartas vamos sabendo pormenores sobre a relação do Fernando com a tia-avó Maria e o seu marido, o tio Cunha, que eram como uns segundos pais para ele. Soube pelas cartas que o Fernando passava fins de semana em Pedrouços, onde moravam.

E onde Pessoa tinha um quarto
Um quarto só para ele, cheio de brinquedos. O tio Cunho e a tia Maria não tinham filhos e Fernando era como o filho que não tinham tido. Há uma menção numa carta de o tio o ter levado a uma ópera no Coliseu [de Lisboa], o que é muito interessante. Quando tinha uns seis anos, o Fernando já ia à ópera com este tio. Há uma referência às lições que Pessoa recebia, ou seja, ele já estudava antes de ir para Durban. Se esses estudos foram em casa ou numa escola, isso não sabemos, mas já estudava.

“A irmã [Madalena Henriqueta, conhecida por Teca], que tinha mais coisas a dizer do que os outros, não sabia nada em relação à Ofélia. Só depois da morte de Fernando Pessoa é que descobriu que ele teve essa relação. Como é que é possível, não é? Mas Pessoa era assim. Não gostava de se revelar.”
Richard Zenith

Falou na avó Dionísia. É interessante não só o que as cartas revelam sobre a relação da mãe de Pessoa com a sogra, da qual se tornou responsável após a morte do marido, mas também do próprio Pessoa, que convivia diariamente com a avó e assistia aos seus delírios. Porque viveram todos juntos, no Largo de São Carlos, onde Pessoa nasceu e passou os primeiros anos. 
Exato. Também nunca tinha refletido sobre isso, só quando estava a escrever a biografia, em como isso era também importante para o Pessoa. A ideia de um ser uno e coeso, estável, era uma ficção para Pessoa. Penso que ele começou a perceber isso em criança, em parte por causa da avó Dionísia. Não é muito claro como era a sua demência. Falava-se de uma “demência rotativa”. Não era Alzheimer, não era bem isso, era uma espécie de perturbação mental, com fases. Às vezes estava normal, depois noutras fases, quando batia essa demência de uma maneira mais forte, podia ser fechada em si, sem falar muito, ou ao contrário, muito violenta, a insultar, a dizer mal de tudo. E mesmo fisicamente violenta. Quem era D. Dionísia? Quem era essa avó? Onde estava nisto tudo? Isso para uma pequena criança, Fernando neste caso, tem de fazer uma impressão muito grande. E também o comportamento da mãe. Tinham passado apenas seis meses da morte do marido quando conheceu aquele que viria a ser o segundo marido, e como disse, foi um amor fortíssimo, uma paixão muito grande. Onde estava o luto? Seis meses depois, quando uma pessoa está apaixonadíssima, mesmo tendo sofrido grandes tristezas e dor, esquece tudo. Acho que tudo isso são pontos fundamentais na formação de Fernando Pessoa. Aliás, dei bastante espaço à infância de Pessoa, mais do que é habitual numa biografia, porque acho que é lá que ele se formou, se criou. Contrariamente ao que muitas vezes acontece, a infância de Pessoa foi talvez o período mais dramático. A morte do pai, essa avó demente, o segundo amor da mãe, as viagens para Durban… As biografias normalmente dedicam poucas páginas à infância, até porque não acontece muito, e depois vão logo para a vida adulta. Mas Pessoa teve realmente essa infância muito cheia, muito rica, com tantos sentimentos e coisas que aconteceram.

O período em Durban também foi importante. Foi aí que Fernando Pessoa recebeu a sua formação britânica e teve contacto com a literatura inglesa, muito importante para a sua obra.
Sim, essa influência é fundamental para como escreveu, incluindo em português. Costumo dizer que a melhor poesia inglesa de Pessoa foi aquela que ele escreveu em português [risos]. Era aí que a influência [inglesa] tinha melhores resultados. O Alberto Caeiro e o Álvaro de Campos são nitidamente influenciados por certos autores que leu em inglês. Mas a influência portuguesa também é muito forte em toda a escrita de Pessoa e também a literatura de outros países, de outras culturas, como a francesa. Pessoa era voraz nas suas leituras e no desejo de conhecer.

Fernando Pessoa era um assíduo frequentador de cafés. Em cima à esquerda, no Martinho da Arcada, acompanhado por vários amigos, incluindo António Botto. Ao lado, também no Martino, com Costa Brochado

Arquivo DN

Lia um pouco de tudo, não era?
Sim. Lia muito e houve um projeto programático de ler, por exemplo, os grandes filósofos, os românticos ingleses, a literatura portuguesa em todas as suas fases. Ao mesmo tempo, a sua biblioteca [hoje guardada na Casa Fernando Pessoa] é muito excêntrica. Há certos temas ou autores que lhe chegaram por acaso. Houve também um grande acaso na sua formação intelectual. Há áreas da literatura mais ou menos brancas, isto é, que não conhecia bem, por exemplo, a literatura russa. Conhecia os nomes, falou de Dostoiévski num poema, mas não parece que tenha realmente lido Dostoiévski. Ou se leu, não deixou traços ou comentários sobre a leitura que fez.

Que coisas improváveis existem na biblioteca de Pessoa?
Há alguns romances mais ou menos do tempo de Pessoa, algumas coisas curiosas que não são grande literatura, digamos. O que é interessante também é que ele era uma máquina que conseguia ingerir tudo e depois tirar proveito do que ingeria para produzir obras geniais. As influências eram de Shakespeare, Milton, os românticos ingleses, Cesário Verde, Antero de Quental, por aí fora, mas também eram de coisas completamente “insignificantes”, banais, das quais poderia tirar uma imagem, uma ideia. Na biografia, falo de um poema, um poema fragmentário do tempo em que era adolescente em Durban, chamado “Ode to the Storm”, “Ode à Tempestade”, em que podemos ver uma clara influência de Milton. Pessoa imitou uma estrofe muito complicada em termos de rima — copiou essa fórmula miltónica –, mas o título e o conteúdo foram “roubados” de um poema publicado no jornal de Durban, o The Natal Mercury, pelo seu professor de francês. Era um poema pouco interessante. Esse professor não era um grande poeta, antes pelo contrário, mas Pessoa “roubou” do poema ideias que combinou com a grande capacidade e técnica que aprendeu com Milton. Ele fez esse tipo de coisas nas suas criações literárias.

"Ele era uma máquina que conseguia ingerir tudo e depois tirar proveito do que ingeria para produzir obras geniais. As influências eram de Shakespeare, Milton, os românticos ingleses, Cesário Verde, Antero de Quental, por aí fora, mas também eram de coisas completamente "insignificantes", banais."
Richard Zenith

Existem muitos mitos em relação à vida de Fernando Pessoa, muitos deles perpetuados por João Gaspar Simões, autor da primeira biografia. Um desses mitos tem a ver com a sexualidade e a virgindade de Pessoa. É uma questão que aborda e esclarece.
Há apontamentos de Pessoa, perto do fim da vida, que indicam que era virgem. Na escrita automática ou mediúnica, da qual publiquei uma grande primeira amostra no livro Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, vemos que a grande preocupação era a sua virgindade. Os espíritos astrais diziam que tinha de perder a virgindade, era uma preocupação que Pessoa tinha. Quando começou essa escrita mediúnica, tinha 28 anos. Era virgem e isso era um problema. Uma das coisas que fui percebendo ao escrever a biografia, e isso é fascinante, foi que a preocupação se tornou, antes pelo contrário, uma vantagem, uma virtude no seu caminho espiritual. Ele converteu esse “problema” numa vantagem. A sexualidade e a busca espiritual em Pessoa casaram-se. Aquele encontro com Aleister Crowley era muito importante, Fernando Pessoa falou muito disso, mas enquanto Pessoa entendia Crowley como o mestre da magia negra, ele era, pelo contrário, mestre da magia branca. Crowley fazia rituais de magia sexual. Pessoa não queria nada disso, mas foi vivendo a sexualidade na escrita. Isso é um bocado complicado de descrever em poucas palavras, mas tento mostrar isso [na biografia]. Não era que Pessoa fosse virgem por incapacidade ou falha, acho que era uma escolha. Pelo menos ele apresentou isso assim. Acho que a palavra “castidade” é melhor do que “virgindade” [para se referir a Pessoa]. E ele usa essa palavra, “castidade”. Então, não era uma sexualidade branca, inexistente, era uma sexualidade que tomou a forma de castidade. O que quero dizer é que Pessoa não era assexual. Era um ser sexual, mas tinha a sua maneira muito particular de viver essa sexualidade, que era através da castidade.

Referiu Crowley, há pouco falou da astrologia. Como é que se explica que um ser que era tão racional tivesse um interesse tão grande e tão profundo por algo que não pertence ao racional?
Penso que por ser tão racional e ter essa mente viciada na lógica facilmente desconstruía tudo racionalmente. Parece contraditório, mas acho que era por isso mesmo que ele se sentia atraído por ritos de iniciação, por caminhos espirituais não racionais, porque, à partida, nessas correntes, o caminho não se faz pela razão, faz-se pela experiência, pelo conhecimento ou gnose. Pela convivência, pela grande tradição que está por trás destes movimentos, como o rosa-cruz, a maçonaria e outros. Pessoa sentia-se atraído porque não eram caminhos racionais e não os conseguia desconstruir. Era mais uma questão de fé, se quisermos. E Pessoa tinha uma espécie de fé, sempre acompanhada da dúvida. Lá está, Pessoa acreditava em tudo até certo ponto e não acreditava em nada.

Certamente que quando começou a escrever esta biografia tinha uma série de perguntas que gostava de ver respondidas. Conseguiu responder a essas questões? 
Para dizer a verdade, não cheguei à biografia com uma lista de perguntas para as quais procurava respostas. Queria mais simplesmente, mas não é nada simples, chegar perto da figura de Pessoa, conhecê-lo.

"Sinto que não consigo explicar Pessoa, acho que ele não se explica. O que tentei fazer foi sentir Pessoa, conviver com essa pessoa e conhecê-la. Explicar Fernando Pessoa seria uma contradição."
Richard Zenith

Sente que o conhece melhor agora?
Sim, isso acho que sim. Não queria e não comecei a biografia com ideias pré-definidas, queria ver até onde conseguia chegar. Eu, pelo menos, aprendi muito nesta viagem. Vamos ver se os leitores também acham que aprendem com o que escrevi. Sinto que não consigo explicar Pessoa, acho que ele não se explica. O que tentei fazer foi sentir Pessoa, conviver com essa pessoa e conhecê-la. Explicar Fernando Pessoa seria uma contradição se admitirmos, como eu admito, que estava continuamente em fluxo, sempre a mudar. Não há um explicar, um definir, mas há um acompanhar, um sentir, um conhecer. Foi isso que tentei fazer.

Esta é a primeira grande biografia desde a de João Gaspar Simões, publicada em 1950. Foram publicados outros trabalhos de teor biográfico ao longo dos anos, mas nenhum com essa profundidade e dimensão. Porque é que acha que isso aconteceu?
Sim, é curioso. Houve outras tentativas de biografar Pessoa, mas não foram assim muitas, sobretudo em Portugal. Há várias razões. Devo dizer que esta biografia foi possível graças aos trabalhos feitos por muitos outros ao longo das últimas décadas. Todo esse trabalho prévio, nomeadamente de desencantar os inéditos do espólio, foi fundamental. Sem isso, não podia ter escrito a biografia que escrevi. Depois também é um trabalho insano [risos] e confesso que tive grandes dúvidas ao longo desses anos todos. Questionava se não era boa ideia [risos]. Tive dúvidas se seria um trabalho minimamente coincidente com o que esperava e o que pretendia. Só há poucos anos, talvez dois ou três, é que senti que tinha escrito o livro que queria e podia escrever. Mas estava cheio de dúvidas até essa altura.

Foi um alívio ter chegado ao fim?
Ah, isso, sim. Confesso que foi um peso em cima de mim durante todos estes anos. Alguns amigos diziam-me: “Não queres terminar. Esse é o teu filho e quando acabares não vais saber o que fazer, vais ficar deprimido”. Não, nada mais falso [risos]. Foi um sentimento de libertação.

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