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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

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Rita Blanco: "Fui muitas vezes fanfarrona, a querer dizer a verdade. Qual verdade? Há mil verdades"

Ser mãe, envelhecer enquanto atriz, ter famílias cinematográficas. Um filme queimado e outro — "Mal Viver" — prestes a estrear-se. E um documentário a caminho. Grande entrevista à atriz Rita Blanco.

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Estamos em Colares, Sintra, à mesa. Aproxima-se a hora de almoçar e Rita Blanco vai petiscando ao longo da conversa, com uma pausa para um shot de gengibre que lhe provoca uma careta quase tão torcida como a que fez quando viu uma publicação sobre si escrita há uns dias. “Já pararam a minha mãe na rua para lhe perguntar: então a sua filha trabalha agora num restaurante?”, conta. Como o gengibre queima só a garganta, para outros males outros remédios. “É tudo para processar.”

A música de fundo serve de embalo, com Nancy Sinatra e a sua “Bang Bang” sobreposta com as gargalhadas da atriz, que aos 60 anos continua a levar-se muito pouco a sério. “Há uma coisa que eu sei. Hoje em dia sou muito mais atriz do que era. Quanto mais velha fico mais preenchida estou e tenho mais bagagem para ser atriz.”

Numa longa entrevista ao Observador, Rita Blanco explica, entre outras coisas, porque é que não sai da televisão portuguesa, porque nunca ambicionou a internacionalização, como fez as pazes com o teatro depois do fecho da Cornucópia e levanta o véu sobre a sua estreia na realização, com um documentário que talvez se mostre ainda este ano. Fala, também, sobre a matriarca que interpreta no novo filme de João Canijo, “Mal Viver”, que se estreia esta quinta-feira, 11 de maio, depois de conquistar um urso de prata Berlim. É um filme sobre “a incapacidade, a impossibilidade de se ser mãe”, diz sobre a obra. É por aí que começa a entrevista com a atriz.

[o trailer de “Mal Viver”:]

Os atores normalmente defendem as suas personagens. Como é que se defende esta mãe, a Sara?
Não tenho que a defender, ela está defendida no próprio ecrã. O que é defender? Fingir que ela é boazinha? Não, não tenho nenhuma pretensão. Quis fazê-la assim precisamente para abranger o maior número possível de possibilidades relativas às mães, que também elas com certeza tiveram imensas dificuldades nas suas próprias infâncias, tiveram modelos certamente complicadíssimos, um passado muito mau, para depois se tornarem naquelas mães incapazes. Este filme fala sobre isso, sobre a incapacidade, a impossibilidade de se ser mãe.

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“Mal Viver” é sobre isso?
É. Fala na incapacidade de se tornar mãe, de deixar de ser filha para se tornar mãe. Mas isso é porque já teve imensas dificuldades, porque o seu passado foi dolorosíssimo. Portanto, depois torna-se incapaz de lidar com a maternidade.

No filme não nos é explicada a origem da personagem.
Mas eu conheço.

Daí ser mais fácil defender alguém que na tela vemos como uma mãe…
Horrível, megera. Aquela mãe é uma mãe altamente manipuladora, fecha as filhas naquele hotel e manipula-as ao ponto de elas acharem que não há a menor hipótese de saírem dali. É como se fosse uma prisão, mas ela não tem que as prender. Prende-as por manipulação. Obviamente, esta mulher tem que ter tido um passado muito duro, muito mau. Com certeza que o modelo dela de mãe não pode ter sido extraordinário. Obviamente quando faço uma personagem conheço o passado dela.

Conhece de que forma?
Construo. Para dar aquele resultado que me pedem de alguma forma. Nos filmes com o João [Canijo] sou eu que construo quase tudo, integramo-nos num formato que o João quer e fazemos a nossa construção para que aquilo funcione e cheguemos ao ponto que interessa ao João. Mas ainda assim somos nós [atrizes] que construímos as nossas personagens, que fazemos as escolhas de como é que elas serão e como é que elas se vão movimentar e quais são as atitudes que vão ter.

Quais foram as referências? Sendo mãe pode-se imputar uma experiência na personagem…
Com certeza.

"Nunca vou gostar muito do que fiz, mas há uma coisa que eu sei: hoje em dia sou muito mais atriz do que era. Quanto mais velha fico mais preenchida estou e tenho mais bagagem para ser atriz."

Há um desfasamento entre aquilo que deve ser uma mãe e o que está na personagem Sara.
Para já não há um modelo de mãe e as mães são muitas coisas e eu já conheci muitas mães. O facto de ter 60 anos faz com que seja cada vez maior o meu leque do conhecimento das pessoas. Vamos buscar as coisas que nos interessam. No fundo é: como é que eu, Rita, seria nestas condições? Nas condições que construo para a minha personagem. Se tivesse tido uma mãe assim, assado, cozido e frito, tivesse um pai que não sei quê, se tivesse nascido naquele sítio, com aquelas condições, eu era esta mãe.

O filme induz essa reflexão a quem o vê?
Acredito que todos nós nos vemos em coisas daquele filme, apesar de tudo. As mães não são só um mar de rosas, e as mães já foram filhas. A questão é essa. Nós somos sempre fruto de uma construção e daquilo que fizeram connosco. Há aquela frase que é: “eu não quero ser aquilo que fizeram comigo, quero ser aquilo que eu fiz com o que fizeram comigo”. Seremos sempre o fruto disso, daquilo que fizeram connosco. E aquilo que fizeram connosco não foram só coisas boas, isso não existe. Há mães manipuladoras, outras menos. Há mães que são mais protetoras, outras menos. Há mães que tiveram um passado horrível e que não foram capazes de dar a volta e que projetam isso nos filhos. É muito difícil não projetarmos o que somos nos nossos filhos.

Faz esse esforço?
Claro.

Apanha-se a cair nesse erro?
Apanho-me muitas vezes.

Porque está muito auto consciente desse perigo.
Sim, até porque como sou atriz e vivo de tentar reconhecer as pessoas, isso para mim é muito importante. Além de que também já tive uma mãe e nós não queremos nunca repetir as coisas com as quais não concordamos ou de que não gostámos. Estou sempre alerta e às vezes percebo: “ui, lá vou eu, olha o que estás aqui a fazer à tua filha, isso não se faz”. Depois, como li muito sobre pedagogia, estou consciente de algumas coisas. Outras não estou e muitas estou consciente e não consigo mudá-las. Claro que esta mãe é a exacerbação de uma série de coisas para chegar àquela, porque o João queria que estas pessoas ficassem fechadas naquele hotel e que daquelas filhas uma delas acabasse da forma que acaba. Sabia que tinha de ser uma mãe altamente manipuladora, castradora, muito torta e com um passado horrível para ser assim. Para não ser capaz de amar. As pessoas que não sabem amar é porque não foram amadas. Isto vem tudo de trás.

Nas entrevistas que foi dando ao longo do tempo foi-lhe imposto muitas vezes o título de enfant terrible.
Não sei porquê. Para já, porque agora será vieux terrible, porque já não sou enfant.

Enquanto filha já era assim, reivindicativa, propensa a questionar aquilo com o qual não concordava, punha a sua mãe em causa, por exemplo?
Punha, punha.

"Se eu não aprendesse nada com o que vou passando, a minha vida estava ainda pior, era ainda mais terrível do que sou. Mas depois desaprendo imediatamente"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Aprendeu com isso?
Com certeza. Se eu não aprendesse nada com o que vou passando, a minha vida estava ainda pior, era ainda mais terrível do que sou. Mas depois desaprendo imediatamente. Com o tempo — usando uma palavra que antigamente não se usava nada, mas que agora se usa imenso — a minha resiliência tem vindo a crescer. Primeiro, vamos percebendo que não podemos mudar o mundo. Segundo, somos tão frágeis quanto aqueles que criticamos. Portanto, temos que ter alguma capacidade de recuo para perceber, para já, onde é que vale a pena. Às vezes vale a pena lutar por uma coisa, mas quando não vale é só fanfarronice. E eu fui muitas vezes muito fanfarrona, a querer dizer a verdade. Qual verdade? Há mil verdades.

Hoje é mais compreensiva com quem discorda?
Sou menos estúpida, diria. Mas tenho muito que aprender ainda. Temos todos sempre a aprender.

Ser mãe mudou-a enquanto atriz?
Mudou porque aumentou o meu leque de capacidade para entender uma série de coisas. Claro que não temos de matar uma pessoa para podermos fazer um criminoso, mas ter sido mãe ajudou-me a perceber algumas coisas que provavelmente eram mais longínquas para mim. Assim ficaram mais inscritas aqui na carninha. Fez-me perceber que aquilo era o amor mais doloroso, mais visceral que se podia ter. Quando eu estava perfeitamente convencida que conhecia perfeitamente o amor. Só que não.

“Se estivéssemos todos sempre muito contentes não creio que as coisas evoluíssem”

Falando da família, agora da cinematográfica, que foi criando com o João Canijo, a Anabela Moreira, a Cleia Almeida, a Vera Barreto, e onde me parece ter entrado, com este filme, a Madalena Almeida?
Sim, entrou, entrou.

O que é que define a entrada neste clã?
Para já, quem define é o Canijo. E o que define é a capacidade de interação entre nós. É isso que nos torna uma família: como resolvemos as questões entre nós e se isso se torna produtivo e criativo. É entre nós e o João. Não é uma família que nós temos, é uma família que nós escolhemos.

Isso descobre-se logo ou leva tempo?
Não, não é logo no casting. É no processo, e muitas vezes não é na primeira vez que se trabalha.

No caso da Madalena [que em “Mal Viver” interpreta Salomé, neta de Sara] foi a primeira vez.
Foi.

Bem, não com a Rita.
Exatamente. Eu já conhecia a Madalena e sabia ao que ia quando falei na Madalena ao João. Trabalho com o João desde os 18 anos, também já o reconheço em muitas coisas. Eventualmente posso perceber que esta pessoa pode fazer parte da nossa família e depois o João trabalha e decide se sim ou não.

"As pessoas não têm de ser muito amiguinhas, mas há uma cumplicidade de trabalho e um conhecimento de causa diferente que nos leva a evoluir para outros sítios. Isso ajuda muito. Se ainda por cima conseguirmos ser amigas, bem, isso então..."

O que é que se ganha artisticamente na continuidade das relações a cada projeto?
Para já, criar uma família artística é uma coisa mesmo boa. Não gosto muito de trabalhar sem prazer. Mesmo que muitas vezes seja doloroso. Este filme, por exemplo, para mim foi muito pesado de fazer.

Mais doloroso do que o “Fátima” (2017)?
Muito mais. Nem tem comparação. Conseguimos evoluir mais. Porque nos conhecemos todas umas às outras, já estamos no processo, já sabemos que isto já fizemos, podemos subir mais um degrau. Há uma cumplicidade de trabalho. As pessoas não têm de ser muito amiguinhas, mas há uma cumplicidade de trabalho e um conhecimento de causa diferente que nos leva a evoluir para outros sítios. Isso ajuda muito. Se ainda por cima conseguirmos ser amigas, bem, isso então…

Conhecer a contracena, antecipar a reação, essa previsibilidade ajuda uma atriz a ultrapassar-se?
Com certeza. Quanto mais trabalhamos, mais nos obrigamos a ultrapassarmo-nos. Já fizemos, já percebemos, como é que conseguimos ir mais longe? Isso faz uma grande diferença, é mesmo bom. Nas alturas, às vezes, não é, mas depois torna-se.

Quando não é é porquê?
Porque o João, que como em qualquer família há um chefe, é muito manipulador.

Esta família não é um matriarcado?
Não. Quer dizer, é, depois a gente domina-o. Mas até o dominarmos… E além disso há aqui uma hierarquia real que é: ele é o realizador e ele é que decide.

É curioso porque nas entrevistas o João Canijo exalta e coloca sempre o ónus nas atrizes.
Pois, é muito esperto. Ele deixa-nos fazer tudo, até um certo ponto.

Já tiveram uma discussão mais acesa?
Não, já tivemos para aí duzentas. Temos muitas discussões. Mas isso também faz parte das famílias, não faz? Se desde os 18 anos que o conheço ainda estou aqui, por alguma coisa será. As famílias às vezes zangam-se, às vezes têm questões. Isso também é bom, se estivéssemos todos sempre muito contentes não creio que as coisas evoluíssem. A discussão não tem de ser à batatada. A discussão faz-nos evoluir. Discutirmos os assuntos, ouvirmos as opiniões dos outros é fundamental.

Houve discussões sobre esta mãe? Ou quando diz que foi um processo doloroso foi na tentativa de chegar à personagem?
Era uma mulher muito magoada, mesmo, muito dura, muito zangada consigo própria, com os outros, uma pessoa incapaz de amar. Ao chegar a esse sítio fica-se zangada. Se calhar há pessoas que conseguem não fazer isso. Mas eu não consegui. Neste filme estava mesmo perturbada. E depois o João é um manipulador da pior espécie e põe-nos em determinadas situações e manipula as coisas para irmos mais longe. Nós vamos, mas às vezes é muito doloroso. Pelo menos para mim é.

Manipula de que forma?
Não sei dar exemplos, não é nada objetivo. É uma forma. Porque se não, também não conseguimos fazer estes filmes tão profundos.

A atriz em "Mal Viver": "Este filme, por exemplo, para mim foi muito pesado de fazer"

Aparenta ser uma atriz muito implicada no processo criativo, na construção da personagem…
Em todos os trabalhos que fiz. É como perguntar a um carpinteiro se para fazer uma obra não se implica, se não a madeira continuava lá e não aconteciam coisas.

Há projetos que exigem mais essa participação dos atores, às vezes na própria conceção do guião. Sabemos que é esse o método nos filmes do João Canijo, por exemplo. Qual o seu modelo preferencial: ter já um guião pronto ou trabalhar sobre ele?
É o que houver. Se houvesse só um modelo matava-me, era uma desgraça, uma chatice do caraças. Quanto mais processos criativos houver, mais interessante, mais rica se fica e mais se consegue procurar maneiras de dar. Não há só uma maneira. Há mil maneiras e todas são boas desde que resultem. Até se me disser “há um ator que não trabalha nada, chega ali e faz”. É bom? Ótimo, está feito está morto, não se fala mais nisso. Não me interessa. Os processos que as pessoas têm são me indiferentes.

Os atores em palco que têm um aparelho auditivo para lhes dizer as falas é um processo perfeitamente legítimo, por exemplo?
Claro. Eu já usei! Para mim é muito difícil, porque normalmente eu até sabia o texto e ouvir alguém dava-me cabo dos nervos. Tentava ir mais depressa para ir antes da pessoa. Claro que depois me perdia.

Experimentou em que caso?
Não digo, não digo. Se não depois percebem que eu estava muito acelerada por causa disso [risos]. Mas [usar] não tem problema nenhum.

“Quanto mais velha fico mais preenchida estou e tenho mais bagagem para ser atriz”

O João Canijo disse que este é “de longe” o seu melhor filme. Este é o seu melhor filme?
Não.

Qual é então?
Não sei. Acho que há filmes que foram mais fáceis de fazer. Um filme que foi muito gratificante de fazer foi “A Gaiola Dourada” [2013]. Foi a uma dada altura muito importante para os emigrantes, nomeadamente os franceses e isso para mim é muito gratificante porque o meu trabalho pode de alguma forma ter servido para alguma coisa. Isso é a gratificação do pós. O durante é outra coisa. A minha gratificação pessoal é muito pouco importante quando comparada com o efeito que possa provocar nos outros. Adorei fazer o “Ganhar a Vida” (2001), do João. Foi muito importante por várias razões, inclusive porque eu ainda estava com a minha filha pequenina. Foi o tal filme que fiz antes de parar de trabalhar porque já era um compromisso que tinha. Tinha acabado de ter uma filha e o filme fala da morte de um filho. Foi assim… Foi mesmo gratificante a um determinado nível. Trabalhar com o João Botelho, não um filme especificamente, mas trabalhar com ele ensinou-me muitas vezes a poder lidar com qualquer situação. Ele é tão específico e tão rigoroso, como também é o Manoel de Oliveira. A luz, a maneira como se diz o texto, como se virar, tudo isso são ajudas para estar cada vez mais à vontade no trabalho. Não que eu fique alguma vez à vontade no trabalho. Estou muito à vontade com a câmara, mas isso também me pode fazer perder a noção de outras coisas. Nunca estamos no sítio certo.

Perder a noção de quê?
Da contenção, de exatamente qual é o objeto que se está a trabalhar. Do sítio em que se está, no meio de quem. Tudo nos pode fazer tropeçar. Mas isso é porque eu sou muito rigorosa e ainda bem que sou.

Aos 60 anos sente-se no auge das suas capacidades enquanto atriz?
Sinto, sinto.

"As famílias às vezes zangam-se, às vezes têm questões. Isso também é bom, se nós estivéssemos todos sempre muito contentes não creio que as coisas evoluíssem. A discussão não tem de ser à batatada. A discussão faz-nos evoluir. Discutirmos os assuntos, ouvirmos as opiniões dos outros é fundamental."

Mas quando lhe perguntei qual era o seu melhor filme mencionou algo lá atrás.
Quando vejo este último filme do João encontro uma maturidade cinematográfica que não tinha. Gosto muito também. Mas ainda não tenho distância daquele filme para poder falar sobre ele. Estou muito próxima desse filme. A verdade é que nunca vou gostar muito do que fiz, mas há uma coisa que eu sei: hoje em dia sou muito mais atriz do que era. Quanto mais velhos ficamos — e velhos não é uma coisa má, é uma realidade, uma constatação —, quanto mais velha fico mais preenchida estou e tenho mais bagagem para ser atriz.

Essa bagagem toda…
O que li, o que vi, tudo isso faz parte da minha bagagem.

Quanta bagagem, de personagens, de angústias, se leva para casa?
Não levo, mas vou para casa pensar sobre as personagens quando estamos a trabalhar. Essa coisa de levar ou não levar… Claro que vou para casa e vou pensar no assunto. Mas isso não me angustia. Angustia-me por não estar ainda no sítio, mas é outro tipo de angústia. A angústia da personagem é dela, não é minha, vamos lá ver.

Separa esses dois mundos facilmente?
Acho que sim. Embora este filme tenha sido muito duro para mim. Mas foi porque a personagem, aquilo tudo era tão agressivo que quando se está a preparar e a trabalhar sobre aquilo é-se influenciado por aquilo quando se está a filmar.

Além desta, alguma outra personagem a perturbou assim?
Miserere [um espectáculo de Gil Vicente com a Cornucópia no Teatro Nacional D. Maria II, em que Rita Blanco fez o papel da protagonista].

Foi em 2010, dessa há um grande distanciamento.
Há.

Consegue identificar porquê?
Foi difícil chegar àquele sítio, muito difícil. Aquilo era tudo uma imaginação. Ela, a Alma. Era o “Auto da Alma”, do Gil Vicente, depois transformado pelo Luís Miguel Cintra. A Alma era em branco, ou seja, não havia nenhuns pressupostos, nenhum julgamento. Ela estava totalmente… era pura. Chegar a esse sítio para mim foi muito difícil. Não posso falar muito dessa personagem [emociona-se].

Porque era difícil ser assim…
Ninguém é assim. Isso não existe. Era uma alma em estado puro ainda. Antes de passar pelo mundo. Era isso a personagem. Alguém acabada de chegar ao mundo e à realidade, e a ter de lidar com as pessoas.

Qual foi o universo referencial para lá chegar?
É para isso que a gente trabalha, para ter imaginação. “Imaginem como seria”, já dizia o Dino D’Santiago.

"Tenho tido alguma oportunidade de escolher. Mas sobretudo fui escolhida e tive muita sorte, desde o primeiro dia"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Não se revendo, imaginando…
Revendo-me sempre. Sou eu a fazer. não há maneira de escapar a mim. Sou eu naquela situação sempre, mas foi mesmo difícil. Depois inspirei-me, coisa que nunca faço, numa pessoa que estava à época viva, a Amy Winehouse. Que foi para mim um processo completamente diferente daquele que alguma vez tinha tido, e também para o Luis Miguel.

Foi a única vez que se inspirou em alguém em concreto para uma personagem?
Sim. Como é evidente, estou sempre a inspirar-me nas pessoas. Mas uma pessoa concreta, reconhecida por mim, não. Disse ao Luís Miguel: vou inspirar-me na Amy. E ele estranhamente disse: é isso mesmo. A partir daí foi toda uma construção. Claro que eu não imitei nada a Amy, imaginei que ela era tão frágil, que não sabia lidar com o mundo, que é o que esta Alma não sabia.

Nessa altura, a Amy Winehouse era viva, apesar de já estar em alguma decadência.
Vivíssima. Tanto que eu já tinha acabado a peça e passado muito tempo estava até de férias e liga-me a Cristina Reis, que era a cenógrafa dessa peça. Disse: a Amy morreu. Eu fiquei [a voz fica embargada]… Desfeita. Sempre que me lembro desta personagem comovo-me. Eu amava essa personagem.

Alguma vez teve outra personagem que a levasse a esse lugar?
Não.

Acha que um dia vai voltar a ter?
Não. Nunca mais vou fazer isso. Não há quase pessoas assim. É muito engraçado, quando fomos para a parte da roupa, da construção exterior, a Cristina disse: “Vais ter um cabelo parecido com ela”. Fiquei mesmo feliz. Quase foi para mim uma homenagem à alma da Amy. Foi um jogo bonito de se fazer.

“Na Cornucópia fui a sítios onde nunca tinha conseguido ir”

Quando em 2016 fechou a Cornucópia…
Ia morrendo.

E decidiu que não faria mais teatro.
Não valia a pena mais trabalhar. Fazer teatro. Na Cornucópia fui a sítios onde nunca tinha conseguido ir. Por exemplo, nos “Desastres do Amor” (2012), aquilo levou me para sítios que eu não sabia que existiam em mim, que eu seria capaz de chegar aí. Bom, menos do que isso não quero. Já tive o melhor, vou fazer o quê? Agora já não posso mais, já não quero. Foi um luto muito doloroso. Houve propostas e eu achava sempre que não. Não era que as pessoas fossem piores, mas eu não era capaz. Às vezes os lutos levam-nos a não querer voltar a certa zona por um tempo. Eu fiz esse luto. E depois…

Aconteceu o Pedro Penim.
O Penim ligou-me e eu achei: eles são tão novos e o que eles querem fazer é tão desconhecido para mim.

Abordou-a para a peça “Pais & Filhos” [2021], a partir do clássico russo escrito em 1862 por Ivan Turgueniev.
Sim. A maneira como ele falou comigo deu-me a perceber: tu não sabes nada sobre isso, só tens a aprender, eles são novos e parecem tão bons, bora lá. Foi a melhor coisa que eu podia ter feito. Tenho tido muita sorte.

"O Emídio [Rangel] dizia-me sempre: 'nunca saias da televisão, tu tens mesmo de fazer televisão'. Para mim foi muito importante ter começado no teatro e ter feito cinema e não ter ganho vícios de uma determinada forma de trabalhar."

Além da sorte, tem tido a oportunidade de escolher projetos?
Tenho tido alguma oportunidade de escolher. Mas sobretudo fui escolhida e tive muita sorte, desde o primeiro dia.

Foi sempre mais longe no teatro?
Não, no teatro e no cinema. A televisão é um projeto diferente. Apesar de ter adorado fazer o “Conta-me Como Foi”.

Reconciliada com o teatro, prepara-se para fazer “A Farsa de Inês Pereira”, a partir de Gil Vicente. Como está a correr?
Só fizemos leitura encenada. Agora o Penim vai para casinha e vai transformar aquilo tudo na sua peça. Já não é só do Gil Vicente, é do Penim.

Neste momento, o que está a fazer?
Agora estou a fazer uma telenovela. A seguir à peça é que penso que iremos para o próximo filme do Canijo.

Disse o realizador numa entrevista ao Público que era num “teatrinho”.
É num teatro, sim.

E que mais?
Eu? O João Canijo torturava-me.

Mas é no teatro.
Sim, a base é os bastidores de uma peça de teatro com uma atriz a envelhecer. Mas ainda vou fazer a peça até para o ano e só depois o filme do Canijo, que vamos ainda preparar. Demora meses e só depois é que iremos filmar. Eventualmente nem sequer é para o ano, será talvez no outro.

É uma vida organizada com muita antecedência.
Determinados projetos são assim, sim.

O que é que a motiva a aceitar um projeto? Com 40 anos de carreira já se devem fazer balanços e ponderar bem onde se gasta o tempo.
Há muitas premissas. Ganhar dinheiro, gostar das pessoas, sentir-me confortável…

Rita Blanco em "Fátima" e "Sangue do Meu Sangue", mais dois filmes realizados por João Canijo

Isto é por ordem?
Não, e as premissas são variáveis conforme o próprio produto. Gostar das pessoas, ser escolhidas pelas pessoas e querer muito fazer com elas. Quero muito trabalhar com o João, com o Penim. E o João não implica só o João nem o Penim o Penim. São trupes, são duas famílias distintas com as quais eu me sinto integrada. Faço parte das duas. Trabalhar em televisão faz muito parte da ordem natural das coisas para mim, também, quer por que é um projeto para eu ganhar a vida, quer porque são pessoas com quem eu trabalho há muitos anos, a SIC, a SP. Estou já em sítios que não me são estranhos. Claro que estou sempre aberta. Por exemplo, agora vou fazer duas curtas-metragens de miúdos novos.

Há pouco perguntei-lhe pelos melhores momentos, mas não sobre os piores.
Os que gostei mais não quer dizer que tenha feito bem, gostei foi de os fazer. Arrependi-me uma vez de um projeto, era uma espécie de concurso. Fiquei horrorizada, estava a odiar fazer aquilo, senti-me muito desconfortável. Fui ter com o Emídio Rangel, que à época era o diretor da estação, e disse a chorar: não posso fazer mais isto. Ele era impecável e tirou-me dali.

Que concurso era?
Não me lembro do nome.

Mas qual era o seu papel?
Era uma espécie de apresentadora. Mas fazia aquilo muito mal, não achava graça nenhuma àquilo, estava muito constrangida.

Isso foi antes ou depois de “A Noite da Má Língua” [1994-1997, SIC]?
Foi antes. “Partir o Côco” [1994]. Chamava-se assim. Não tinha jeito e fazia aquilo muito mal. Estava constrangidíssima. Queria estar muito entusiasmada, mas não estava. Foram épocas diferentes. Adorei fazer a “Má Língua”, mas ao princípio foi terrível. Andávamos sempre ali à luta.

“Cresce-se sempre a fazer cada filme. Depois encolhe-se”

Disse numa entrevista que a “Má Língua” lhe “pôs um carimbo” e que só recuperou o amor do público com a série da RTP “Conta-me como Foi” [2007-2019].
Verdade, verdade. Não foi só a “Má Língua”, foram personagens que eu fazia.

Gosta de trabalhar com pessoas que conhece e de quem gosta, mas também parece atraída pelo experimentalismo dos projetos, para o desconhecido.
Nem é só gosto, a vida foi-me dando isso. O homem e a sua circunstância? É isso, eu tive sorte e consegui. O Emídio dizia-me sempre: “Nunca saias da televisão, tens mesmo de fazer televisão”. Não vou dizer mais o que ele me dizia. Mas ele dizia: “Não saias”. E o facto de eu não ter saído… Eu não podia ter começado pela televisão, para mim foi muito importante ter começado no teatro e ter feito cinema e não ter ganhado vícios de uma determinada forma de trabalhar.

Ganha-se vícios ao começar na televisão?
Quando se é muito novo pode-se ficar muito ligado a uma determinada linguagem, a uma maneira de estar, que depois se torna mais difícil chegar às outras. Mas se se fizer ao contrário pode-se usar a televisão da melhor maneira. Já fiz coisas tão diferentes, o que é que eu ainda não fiz? Cheguei a fazer espetáculos com o Nicolau Breyner e toda uma trupe em que ensaiávamos uma peça de teatro por semana, e depois em direto fazíamos a peça nos vários teatros por esse país fora em tourné. Não era pêra doce. Tudo isto vai-nos dando vários olhares, várias maneiras de fazer. Não vale a pena levarmo-nos a sério.

Repetindo a expressão que usou antes de começar a entrevista, somos só um periquito.
Com muito respeito pelos periquitos. Por exemplo, nunca tive atração de ir trabalhar lá para fora, confesso, até por várias razões, inclusive logísticas. Então quando tive uma filha, não tinha interesse nenhum em pirar-me, depois tenho muitos cães, muitos gatos, muitos bichos, muito para tratar, não dá.

"Somos tão frágeis quanto aqueles que criticamos. Portanto temos que ter alguma capacidade de recuo para perceber onde é que vale a pena. Às vezes vale a pena lutar por uma coisa, mas quando não vale é só fanfarronice."

Sentiu essa pressão em Portugal, de querem muito que brilhasse lá fora?
Sentia um bocadinho. “Então mas não queres?” Recusei alguns projetos. As pessoas também pensam que lá fora se ganha muito dinheiro. Mas vamos a ver e a montanha pariu um rato. Foi muito giro fazer algumas coisas, fazer uma pequena participação no “Amour” (2012), do Michael Haneke, e pensar assim: “Olha, já entrei num filme que ganhou um Óscar ou a Palma de Ouro”. Mas já tinha ido tantas vezes a Cannes… Parece uma arrogância, mas não é. Faz parte da vida. Se gostava de fazer mais filmes lá fora? Talvez um filme a fazer de portuguesa, ou então um filme de aventuras, também achava uma certa graça. Partia-me toda se fizesse agora, morria logo no primeiro dia de filmagens.

Já disse que gostava de realizar um filme com base no livro O Retorno, da Dulce Maria Cardoso.
Sim, mas já percebi que devo ter de fazer primeiro uma curta metragem para eles, se não correr muito mal, me deixarem fazer uma longa.

Então porquê?
Porque as pessoas devem achar que não sei fazer, nunca mostrei.

O que a faz achar isso?
Já falámos com produtores, inclusive fui com a Dulce. Vamos ver o que acontece. É preciso ter subsídio, não posso fazer uma longa metragem sem subsídio. Andam aí pessoas a dizer que se pode fazer, mas não se deve. Porquê? Porque o trabalho que a gente faz é para ser pago. Nós, equipas, toda a gente. Quando as pessoas se vêm vangloriar que fizeram coisas sem gastar dinheiro, com certeza que se calhar a primeira curta metragem que faça se não houver dinheiro vou buscar os meus amigos e vamos trabalhar juntos, mas isso não é razão para nos vangloriarmos. Deve ser pago. É um direito e é uma obrigação. Nao devemos fazer disso uma bandeira, pelo contrário.

Então está a repensar O Retorno enquanto curta-metragem, é isso?
Não, não, esse projeto tem que ser uma longa. Posso é ter de fazer um trabalho mais curto antes. Entretanto, a minha filha [Alice Nascimento] e eu já começámos, com o Vasco Viana, diretor de fotografia, e com o Rafael no som, a fazer um documentário sobre o João Canijo. Está quase no fim.

Estão a filmar?
Estamos. Vou tentar arranjar algum apoio para o conseguir acabar. Quem o produziu foi o Pedro Borges, da Midas [Filmes]. Mas ainda falta filmar duas ou três coisas.

Quem está a realizar?
A minha filha e eu.

"Pela experiência que tenho tido na vida, aprende-se mais com o que é doloroso e até com o que é mau do que com o que é bom"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

E como está a ser esse processo?
Muito engraçado, mas agora tivemos de parar. Tenho sempre imensas coisas para fazer, o Vasco Viana também tem, a minha filha também tem. Ainda nos falta uma entrevista grande com o João, mas está quase.

Estreia-se para o ano?
Espero que sim, talvez ainda este ano, vamos ver.

Como é que nasceu essa vontade de filmar o João?
Os processos do João são particulares e achei que era bom. O filme ainda não tinha começado sequer, não tinha começado a rodagem.

Este, o “Mal Viver”?
Sim.

O documentário acompanha este processo de criação do filme?
Acompanha.

Lembra “Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor” [2011], documentário sobre a criação de “Sangue do Meu Sangue” [2011].
Vou dizer a verdade, acho que nunca vi isso inteiro.

Está no Filmin.
Tenho o DVD. Acho que até fui à apresentação quando isso saiu, mas não devo ter visto ou já não me lembro. É bom para as pessoas conhecerem o João e o processo dele e os nossos processos. Estou desde o primeiro dia com o João porque nós começámos juntos, mesmo. Ele tem uma curta metragem que queimou, connosco. Foi a primeira coisa que fiz com ele. O primeiro trabalho que ele fez na vida.

Espere, queimou o filme?
Queimou. Quando já era realizador disse: “eu não quero mostrar isto a ninguém”.

Não existe mais nenhuma cópia?
Não.

Era sobre o quê?
Era sobre relações entre um homem e duas mulheres, era assim uma coisa.

E quem protagonizou: a Rita e…?
Já não me lembro [sorri].

Lembra-se, sim.
Não vou falar mais sobre isso se não sou morta [risos]. Esse foi o primeiro trabalho e depois continuamos sempre a trabalhar juntos. Ele usou esta matéria, de uma atriz, e eu usei a matéria do realizador para crescermos a par e passo.

Cresce-se sempre a cada filme?
Cresce. Depois encolhe-se.

Volta-se atrás?
Não, vamos sempre para a frente, mas, às vezes, com as piores coisas, aliás, pela experiência que tenho tido na vida, aprende-se mais com o que é doloroso e até com o que é mau do que com o que é bom.

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