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TOMÁS SILVA/OBERVADOR

TOMÁS SILVA/OBERVADOR

Rita Canas Mendes assumiu, "em voz alta", que queria ser escritora. Agora pergunta: de quantas catástrofes é feita a vida de uma mulher?

"Teoria das Catástrofes Elementares" é um dos romances portugueses mais sérios e divertidos em muito tempo, retrato trágico, cómico e vivido da geração de 90 na alta-burguesia. Falámos com a autora.

Na etimologia da palavra catástrofe encontra-se a ideia de mudança de sentido, desenlace, solução. Mas é uma ideia que tende a desaparecer à medida que a palavra se torna sinónimo de tragédia e nela assomam toda a espécie de acidentes, cataclismos, terramotos que vêm destruir o conceito de “segurança”, um dos alicerces das sociedades modernas. E no entanto o que somos nós senão filhos da catástrofe, de mutações cósmicas, eras geológicas, dilúvios, degelos, mutações celulares?

A própria matemática criou uma coisa chamada “Teoria das Catástrofes Elementares”, que defende que uma grande catástrofe é, na verdade, a consequência de várias pequenas catástrofes. Rita Canas Mendes encontrou nessa teoria o coração do o seu primeiro romance: a história de uma mulher, desde a infância até à meia idade, contada como uma sucessão de pequenas tragédias, mas onde não se perde de vista a ideia de que cada tragédia pode ser, ao mesmo tempo uma boa comédia.

O livro é também o retrato da geração de 90 e de um país ainda assombrado pelos fantasmas da história colonial, ao mesmo tempo deslumbrado com o consumo, o status, visto a partir, não dos subúrbios, mas do Estoril, de uma família de classe alta, mas falida. Este não é, pois, um museu da inocência, cheio de memórias decorativas, mas é um livro vivo, espirituoso, divertido e com uma falsa leveza que pode enganar os incautos: “cuidado”, diria a protagonista no seu monólogo interior, há aqui muitas histórias duras daquelas que atravessam a condição humana, especialmente a condição das mulheres, como a violência sexual, a violência doméstica, a doença mental, a maternidade vivida a solo, as malhas cheias de nós das relações entre pais e filhos.

Mas, acima de tudo, este é um romance de aprendizagem, contado em 33 capítulos, cada um deles é uma pequena catástrofe, mas também funciona como um conto breve, ou mesmo uma alegoria, porque a cada descalabro segue-se uma qualquer aprendizagem, tão inesperada e excêntrica como a protagonista. Esta rapariga, que só recebe nome no final, é uma anti-heroína na travessia entre a infância e a vida adulta, de uma sociedade tradicional, puritana, para uma sociedade moderna, liberal, tecnológica mas ainda assim cheia de pequenos atavismos, especialmente no que concerne à educação das mulheres. Portanto, um livro que não foi pensado para adolescentes, mas que, diz a autora, “a adolescente que eu fui gostaria de ter lido”.

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[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]

Teoria das Catástrofes Elementares acaba de sair na Elsinore, é um livro singular, de uma escritora também ela singular, ou não fora a sua gargalhada constante, o olhar irónico, sem pose de futura grande escritora, porque acredita que nada é para levar demasiado a sério, nem sequer as catástrofes. Conversámos com ela.

A capa de "Teoria das Catástrofes Elementares", de Rita Canas Mendes, publicado pela Elsinore

Esta é uma história contada como uma constelação onde pensamentos, memórias, acontecimentos e confissões de uma rapariga se cruzam com os mitos, os fantasmas e os delírios de um país. Porque não contá-la de forma linear?
Ninguém se lembra e ninguém recorda o seu passado de forma linear. Todos nos lembramos de vinhetas, de flashes, de episódios marcantes que depois estão ligados a outros, de formas mais ou menos subterrâneas. A nossa história pessoal é feita de ligações inconscientes, subterrâneas, surpreendentes, que às vezes se revelam como um ovo que demora muitos anos a chocar e depois nos aparece como epifania.

De facto, este livro é uma narrativa não linear e, enquanto o escrevia, temi, muito brevemente, mas temi que isso afugentasse o leitor. No primeiro capítulo, a protagonista tem 5 anos. E no último capítulo, ela tem cerca de 40, está casada e com filhos. Então, para todos os efeitos, há uma evolução. Não é linear. É um “coming of age”. Ela vai amadurecendo através destas pequenas catástrofes, algumas pequenas, algumas grandes.

Quando tive reunião com o departamento de comunicação da editora, fiz o resumo do que era o livro e depois disse que é atravessado por alguns temas como violência sexual, doença mental, violência doméstica, mas acrescentei: por favor não se preocupem, não se preocupem porque é tudo contado com muita graça.

Cada capítulo pode ser entendido com um pequeno conto? Em torno da personagem principal abrem-se dezenas de micro-histórias que vão sendo deixadas em suspenso, entregues à duração que cada leitor lhe queira dar.
O vivido e o contado são coisas muito diferentes. Mas a minha família, com todos os seus defeitos e virtudes, é uma família de contadores de histórias. Mesmo que inadvertidamente. Em reuniões familiares, a maneira de comunicarmos uns com os outros. Não se falava de política, não se falava de temas muito menos de natureza emocional ou confessional. O mundo era absolutamente cifrado e transformado em histórias. Histórias de família, coisas que tinham acontecido. Regra geral, coisas que dessem vontade de rir. Histórias que entretivessem, estilo, “vejam só o que é que me aconteceu hoje”. Havia essa capacidade de transformar o mundo em pequenos acontecimentos, em histórias, e isso marcou-me para sempre. E o que se passa neste livro é que a protagonista conta todas as histórias, ela narra as histórias, mas ela é muda em quase todo o livro. Ela é uma ouvinte, está ouvir os adultos falarem, os adultos a lidarem com esse mundo.

Ao contrário de muitos livros, mais ou menos autobiográficos, escritos por mulheres que abundam no mercado, Teoria das Catástrofes Elementares é escrito na primeira pessoa do singular, mas não é autobiográfico, confessional, e a heroína sem qualidades não se perde em auto-complacências. Pelo contrário, ela escolhe a auto-ironia como estratégia de sobrevivência. Porquê?
Ela narra as coisas com perplexidade, está sempre nesse lugar. Acho que é uma expressão natural, é uma extensão natural do olhar que imprimi na personagem. Gosto de olhar para as coisas como ciclo. Acho que os fins são, ao mesmo tempo, o início de qualquer coisa. O primeiro capítulo foi escrito em 2013. Ainda não fazia ideia que daqui ia ter um livro. E foi, curiosamente, o primeiro capítulo. O último capítulo do livro foi o último que escrevi. Todos os outros do meio foram escritos em alturas diferentes. Não percebi logo que era esta a forma que ia tomar. Sou muito diletante na forma de escrever. Escrevo quando me apetece. Escrevo por prazer também, mesmo os capítulos mais sombrios. Todos eles foram, para mim, muito divertidos de escrever. e só escrevia, quando tinha tempo livre dos meus outros afazeres e responsabilidades ou quando estava para aí virada.

Se a verdade com V grande existe, estamos constantemente a afastar-nos dela através dessas construções que são os sonhos, a memória, a linguagem. A palavra já é um afastamento em relação a essa verdade absoluta, que eu duvido um pouco que exista. E a própria memória não é, senão ficção. Quando escrevi este livro, narrado na primeira pessoa e enquanto mulher, que sou, cis-género, sabia que quase automaticamente ia ser muito confrontada com perguntas sobre o que aqui é verdade e o que é ficção. Sabia que o livro podia ser entendido como autobiografia, o que não é de todo verdade, à exceção de que, tal como a personagem, tive um bisavô governador de Moçambique. Essa parte é verdade. E também é verdade que houve uma familiar que fez uma recolha de receitas moçambicanas. Há coisas em que fui valer-me à realidade, o que é normal, todos o escritores o fazem: a figura da avó, por exemplo, tem algumas piscadelas de olho à minha verdadeira avó.

A auto-ficção está na moda, dos relatos mais simplórios como os de Deborah Levy, à reinvenção literária de Annie Ernaux. À primeira vista, é legítimo se este livro for incluído nesta moda?
Eu sabia que me ia ser muito colocada essa questão. Mas é uma coisa que quero desde logo afastar, porque acho absolutamente indiferente, para a minha história, que seja ou não autobiográfica. Ele busca chegar a outras questões. Claro, todos nós temos um bocadinho de porteira, bisbilhoteira dentro de nós, de gostarmos de saber, “ah, será que isso aconteceu mesmo?, Ah, será que ela viveu isso na pele?”. Quando os livros são narrados, na primeira pessoa, e quando há uma correspondência de género entre narrador e escritor, há uma grande tentação de procurar pelo rasto biográfico. É uma coisa humana. Não digo que seja condenável. Mas quero também dizer que muitas vezes essa questão é posta às mulheres como forma de sabotar aquilo que elas fizeram.

"As histórias de mulheres foram silenciadas durante muito tempo. As narrativas sobre as suas vivências emocionais, as suas vivências sexuais, as suas vivências familiares, sobre a maternidade, foram durante tanto tempo silenciadas, e ainda são, de formas mais ou menos subtis, mais ou menos formais… Agora, finalmente, começa a haver espaço portanto é normal que se torne uma torrente."

Com assim?
Então, o Philip Roth faz uma coisa claramente autobiográfica e as pessoas dizem: ah, que interessante! Quando uma mulher, uma escritora, faz qualquer coisa mais autobiográfica, isso é usado para minimizar aquilo que ela fez. A posição passa a ser “aquilo não é bem literatura, porque ela foi buscar tanto à realidade”, procurando assim retirar mérito. Portanto, em resposta à pergunta “o que é que aqui, nesta obra, é autobiográfico?”, volto a dizer: é absolutamente irrelevante. O que não é irrelevante é que o sistema literário em geral use todos os argumentos e mais alguns para minimizar a escrita por parte das mulheres. E a acusação de ser autobiográfica é muitas vezes usada contra a escrita feita por mulheres para desvalorizar o seu trabalho. Que o meu livro sirva para refletirmos um bocadinho sobre isso.

Mas não concorda que escrever a partir de um sítio autobiográfico se tornou uma moda?
É possível. Mas não chamaria tanto de moda, porque acho que veio para ficar. A impressão que tenho é que as histórias de mulheres foram silenciadas durante muito tempo. As narrativas sobre as suas vivências emocionais, as suas vivências sexuais, as suas vivências familiares, sobre a maternidade, foram durante tanto tempo silenciadas, e ainda são, de formas mais ou menos subtis, mais ou menos formais…

Agora, finalmente, começa a haver espaço portanto é normal que se torne uma torrente. Mas não acho que seja uma moda, acho que é fruto daquilo que aconteceu durante milhares de anos na história humana em que só demos primazia às vozes masculinas. Ou melhor: às histórias masculinas, cis, hetero, brancas. As mulheres sempre escreveram, as mulheres sempre tiveram muitas histórias para contar. Mas contavam-nas apenas para elas próprias ou em família. Não as davam a publicar.

Uma das novidades deste livro é o facto de a personagem principal viver num meio privilegiado, crescendo na linha de Cascais, mas que ao longo do tempo se torna auto-consciente de tudo isso. da sua situação de detentora de vários privilégios simbólicos que lhe foram automaticamente concedidos por pertencer à alta burguesia, escolarizada. Podemos dizer que é um romance abertamente político?
Diria que esta história, que é trágica e cómica, tem grandes núcleos que diria que são a saúde mental, questões de género e questões de classe social. E a questão da mulher, como questão central. O lugar que ocupam as mulheres na infância, na adolescência, na chegada à idade adulta, na casa, nesta sociedade, neste país, com esta História que herdámos e temos que integrar na nossa própria história.

Esta família, embora enfrente uma série de dificuldades, é uma família de classe média e com alguma instrução. E, portanto, as diversas catástrofes por que vai passando, apesar de tudo, são amenizadas, porque têm uma certa estrutura que a sua classe social lhes dá para as enfrentar. Uma família de um meio mais desfavorecido, uma família de imigrantes, uma família do meio rural, por exemplo, é normalmente uma família com menos ferramentas para conseguir enfrentar estas barreiras sociais que há em hospitais, em tribunais, etc. Onde, se a pessoa não conhece a linguagem que há de usar para uma carta oficial, se não sabe usar um certo tom de voz no balcão de informações, já não consegue navegar estes labirintos sociais e é tudo muito mais difícil. Ter um sotaque de beta não é só um acaso, é uma coisa que dá privilégios e abre portas, e as betas deviam ter um manual de instruções sobre como usar o seu betismo. Pois, de certa maneira, continuam a ser pessoas que sabem como dirigir-se a outras em certas circunstâncias e que conseguem, muitas vezes, usar o seu vocabulário ou a sua pronúncia como uma ferramenta, se não mesmo, como uma arma.

Outra das questões que aborda, com alguma graça, é também o que é ser mulher dentro da classe alta, onde vigoram certos códigos muito conservadores, que fazem com que, embora tenham mais meios para se libertar, muitas mulheres aceitem ficar presas em situações que por vezes são extremas, de violência, abuso, onde se esconde a doença mental para não quebrar uma certa ideia de “vida perfeita”.
A propósito disso tenho uma história engraçada para contar: depois de terminar o texto deste livro, mostrei o manuscrito à minha mãe, que é uma mulher super cosmopolita e “desempoeirada”, como se diz, e a reação dela, muito curiosa, foi: “Rita, toda a gente vai achar que eu sou esta mãe da tua história”. Ela estava em pânico. “Os meus colegas de trabalho, o que é que vão dizer? A pessoas vão pensar que aquela mãe sou eu, que eu sou assim”. Lá tive de acalmá-la: oh mãe, vamos lá confiar um bocadinho na capacidade dos leitores de se destrinçarem o que é que é uma obra literária, o que é que é a realidade. E se as pessoas não conseguem fazer essa distinção, olha, problema delas. Oh mãe, eu não vou mudar uma vírgula!

Ela disse ainda: “Oh Rita, não fica bem a mulher escrever essas coisas, sobre essas coisas. Não fica bem à mulher”. Ou seja sobre sexo, sobre violência e vivência sexual. E, como digo, ela é super desempoeirada. Mas para todos os efeitos, é uma mulher preocupada com a possibilidade de a filha colocar certas coisas num livro porque sabia que a sociedade iria reagir a isso de uma determinada forma. Ou seja, a pressão para as mulheres se sujeitarem a estas situações atravessa todas as classes sociais.

"Não tenho o objetivo de mudar alguma coisa nas narrativas nacionais, mas, ao contar estas histórias, e ao querer trazê-las à superfície, é também uma maneira de lembrar que ainda temos homens de uma certa idade, uma geração inteira que passou pela vivência da Guerra Colonial, e não falamos disso."

Tendo uma família que em parte é retornada de Moçambique, regressa ao passado de forma bastante irónica, mostrando a mistificação com que quem vinha de Angola, de Moçambique ou da Guiné falava de África.
Um absoluto tabu. E isto foi também uma tentativa minha de agitar um bocadinho os tabus, não só dentro das famílias, porque todas os têm, de uma forma ou de outra, mas também os tabus nacionais. Não tenho o objetivo de mudar alguma coisa nas narrativas nacionais, mas, ao contar estas histórias, e ao querer trazê-las à superfície, é também uma maneira de lembrar que ainda temos homens de uma certa idade, uma geração inteira que passou pela vivência da Guerra Colonial, e não falamos disso no dia-a-dia, nem dentro das famílias, nem socialmente, como país.

O meu livro passa-se em Portugal, no Estoril, mas com muitas memórias de África. A protagonista tem uma família que era colona, em Moçambique. E um pai que é ex-combatente na Guerra Colonial e, portanto, há os dois lados da História: de um lado os que colheram os frutos e viveram as glórias e do outro lado, já em cenário de guerra, os que pagaram o preço dessas glórias. Isso, mesmo que seja um passado agora em ruína, não deixa de ser um ativo.

Quando regressaram, muitos retornados eram chamados de vilões. Alguns seriam, outros não. Eles não se sentiam vilões, mas a verdade é que beneficiavam de um sistema de opressão. E desconstruir isso é muito duro. Desconstruir isso da noite para o dia como aconteceu, é praticamente impossível. As pessoas chegam muito marcadas pela forma como foram arrancadas a uma terra que sempre entenderam como sua. A maioria tem saudades do que viveu, mas compreende que não era sustentável e não gostariam que aquele regime se tivesse perpetuado, reconhecem a insustentabilidade. Mas acho que sofreram muito pela maneira como o processo de descolonização foi conduzido. A protagonista do livro olha com espanto para essas coisas todas também. Aquela confusão das crianças que olham à volta e não percebem que esta minha tia é branca, mas nasceu em África. Como? Quem nasce em África não é negro? Estas grandes confusões na cabeça de uma criança não se tornam necessariamente menos confusas na cabeça dos adultos. Por isso, não me espanta este ressurgir da extrema-direita, sobretudo, entre muitos retornados e também muitos ex-combatentes da guerra colonial. Claro, muitos que também foram maltratados pela esquerda, porque de repente não se podia falar na Guerra Colonial, e ainda hoje é assim…

No retrato tragicómico desta rapariga, da sua família, a querer viver com o status que não tem dinheiro para manter, há também, em contraluz, o retrato de um Portugal deslumbrado com o consumo, ansioso por apagar as memórias de séculos de pobreza através do uso de roupas de marca, carros de luxo, escolas privadas… Há mesmo uma cena muito cómica da protagonista a coser a palavra Benetton no fato-de-banho que tinha sido comprado no hipermercado.
Parece uma coisa tonta de adolescente, mas não é, reflete um Portugal. Um Portugal que é assim, que vive dessas aparências. O que importa não é o que somos, mas a forma como aparecemos. O fato-de-banho tem que ser de uma marca que indica não tanto o bom gosto, mas o bem-estar financeiro. Mais tarde, ela dirá que abomina marcas, retira as etiquetas das roupas e não compra nada que tenha marcas visíveis. E portanto ela quebrou com esse padrão que já não é só da classe alta. Mas quantas pessoas não quebram? E continuam a ser outdoors ambulantes. Que é de um enorme mau gosto, de uma enorme falta de elegância, mas foi o padrão que vingou.

Uma das experiências libertadoras de ter saído da linha de Cascais foi não estar sujeita a esse tipo de pressão. Entro num café e as pessoas olham-me de alto abaixo e fazem a contabilidade do que tenho vestido e calçado quanto é que custou, de que marca são, de que coleção, de que tudo. E, naquela altura, nos anos 90, a linha era toda relativamente homogénea. Claro que havia os muito, muito ricos que viviam nos casarões escondidos, nem os víamos. Mas, no geral, as pessoas de classe média, média-alta, andavam nas escolas públicas e era tudo muito homogéneo. Eu, por exemplo, frequentei sempre a escola pública. Mas quanto mais homogéneo é um grupo, mais importantes são esses marcadores de diferenciação e mais agressiva é essa necessidade de demarcação. Em Lisboa, com uma população muito mais heterogénea, há novos, velhos, ricos, pobres, portugueses, imigrantes, tudo a percorrer as mesmas ruas, porque têm de frequentar os mesmos sítios e ninguém olha duas vezes para ninguém.

Estudar Filosofia é invulgar para uma “beta com sotaque da linha”, como diz?
É invulgar, no mínimo. E posso dizer que fui ostracizada por causa disso, porque as pessoas com quem queria conversar eram gente de esquerda, que olhava para mim com muita desconfiança, porque eu tinha o sotaque e parecia riquinha, embora não fosse. E mesmo profissionalmente, cheguei a ser discriminada pelo sotaque. E costumava dizer que não tinha culpa de ter este sotaque. Mas hoje já me apercebo que não é verdade. Porque não é um sotaque qualquer. Não é um sotaque do Norte, não é um sotaque alentejano. É um símbolo de estatuto e de poder não evidente.

A sua família é de esquerda ou de direita? Qual é o ambiente político-partidário?
É tudo de direita. CDS, mas agora um bocadinho virados para a Iniciativa Liberal, Chega não, porque acham que são uma cambada de palhaços e bandidos e corruptos e disparatados e mais não sei o quê, mas a Iniciativa Liberal é respeitável. E é engraçado porque tenho pessoas da minha família que, se falar com elas sobre certos problemas, a resposta é sempre alinhada com a esquerda. Mas depois, em termos identitários, não se conseguem posicionar à esquerda. Porque durante toda a vida partilharam de um ideário, e até uma estética, que é de direita.

"Comecei a escrever cedo, completamente para a gaveta, cheia de vergonha daquilo que tinha escrito, absolutamente esmagada pelo perfeccionismo"

TOMÁS SILVA/OBERVADOR

Que estética de direita é essa?
A calcinha azul ou a calça verde, a camisinha azul às riscas, o sapato vela, o pólo Ralph Lauren, a carinha barbeada e o cabelo muito penteado de quem vai à missa ao domingo.

Fui-me tornando de esquerda aos poucos, através de leituras que fui fazendo, sobretudo de Filosofia. Quando tinha 13 anos o meu pai ofereceu-me um livro sobre os grandes filósofos e isso pôs-me a pensar nas grandes questões da vida e a procurar o que é que realmente importa neste mundo. Estavam ali as coisas todas de que queria falar. Porque é que as pessoas não falam todas disto? E há um livro de biografias de filósofos.

E quando é que decide que quer escrever?
Não sabia que queria escrever mas sabia que queria trabalhar com livros, então, muito pragmática, pensei, vou tirar um curso de Filosofia e isto do ensino não dá muito dinheiro vou trabalhar em edição, vou trabalhar para uma editora, vou abrir uma editora, não sei, logo vejo. Durante o curso fui logo trabalhar em part-time para uma pequena editora, que era também gráfica e distribuidora, em Lisboa, era perto da faculdade, não dava para conciliar outras coisas. Comecei a escrever cedo, completamente para a gaveta, cheia de vergonha daquilo que tinha escrito, absolutamente esmagada pelo perfeccionismo.

Já tem um longo trabalho em editoras, tens ensaios e livros infanto-juvenis publicados, mas esta é a estreia no romance e conseguiu ser publicada numa editora que quase não publica escritores portugueses. Como é que isso aconteceu?
A Elsinore era a minha editora de sonho, o Diogo Madredeus o meu editor de sonho. Ainda nem acredito que ele gostou do livro e decidiu publicá-lo.

Tenho sete livros publicados até hoje. Este é o oitavo. O primeiro livro foi fruto das minhas experiências no mundo editorial, trabalhei em editoras durante cerca de 10 anos, passei por algumas editoras importantes, como a Antígona. Foi uma passagem breve e posso dizer que, na altura, não foi uma passagem muito feliz. Acabei por sair e fui para o grupo Almedina. Só quando me tornei freelancer é que comecei a escrever e a traduzir. Demorei muito tempo a assumir perante mim própria que queria ser escritora. Acho que tinha um certo pudor em dizer que queria isto. Qualquer homem medíocre escreve umas inanidades nas redes sociais e acha que é escritor. Eu demorei, digamos, 15 anos ou 20 a ultrapassar isso…

Podemos dizer que esta Teoria das Catástrofes Elementares é um livro feminista?
É um livro feminista, mas não panfletário. Não quis imprimir esse cunho e espero que não pareça. Embora considere que as mulheres têm que continuar a resistir porque sempre que há avanço, há um backlash. E agora estamos a sofrer isso. Tivemos o #metoo e agora estamos a sofrer a repressão. Mas as coisas mudaram, já. Hoje as mulheres já esperam dos parceiros que partilhem equitativamente todas as tarefas domésticas, a criação de filhos. Mas ainda há uma agenda muito marcada pelo masculino, onde a voz prevalecente é a do homem. Porque o homem quando faz um discurso mais enfático é carismático mas a mulher se faz um discurso mais enfático é histérica, é louca. E em todo o lado temos as questões do assédio sexual. Porque parece que as mulheres começaram a perceber que certos comportamentos não podem ser aceites e começaram a denunciar.

A verdade é que há muitos feminismos. Há uns feminismos bastante mais superficiais do que outros. Há feminismos que são perversos. Muito perversos. Esses, infelizmente, dão mau nome à causa e fazem a luta retroceder. Não espero que toda e qualquer feminista seja perfeita e completa e venha sem os seus problemas e os seus matizes. Mas quando se é feminista apenas no discurso e depois, na prática, se cala quando lhe é mais conveniente… É muito fácil, claro que é fácil agitar uma bandeira quando ela nos convém, difícil é depois agir em conformidade. Aí é que entra a questão do carácter. Aí é que entra a questão da ética. Aí é que entra a questão da coerência e cada um tem de viver consigo mesmo e deitar-se à noite de consciência tranquila ou não.

A mãe da protagonista diz à protagonista que certas coisas [como a violência sexual] são normais. Sozinha ela vai perceber que não.

"As mães são sempre as vilãs, as culpadas de tudo, já desde há muito tempo. Desde a Eva. A culpa é sempre da mãe. O adolescente faz um tiroteio na escola, é porque a mãe é A, B e C. Confesso que, desde que fui mãe, ganhei uma visão diferente sobre estes mitos."

Algumas personagens conseguem fazer uma evolução no sentido de se tornarem mais livres, mais humanas. Podemos encarar esta como a parte feliz do livro?
Só nos últimos capítulos há diálogos e temos interação e temos as personagens a falarem de si próprias na primeira pessoa, a ganhar em voz e a ganhar em corpo. E percebe-se que houve uma evolução. Tanto do pai como da mãe. O pai com menos flexibilidade, a mãe com mais. Mas houve neles também algum amadurecimento. Percebe-se que não são exatamente as pessoas do primeiro capítulo.

A figura do pai, talvez a mais importante neste livro depois da protagonista, é um homem absolutamente perdido, sem saber como ser marido, como ser pai. Essa perda de identidade masculina é também uma reflexão sobre a masculinidade como algo ao qual os homens estão aprisionados?
Sim, os homens não sabem o que fazer. Porque a masculinidade deles, muito fundada no maltratar o outro, no maltratar o mais fraco, a mulher, os negros, os homossexuais, todos os outros que estão em minoria, está a ser posta em causa. E sem isso eles não sabem o que fazer da sua masculinidade. Costumo dizer isto às minhas amigas: as mulheres já se libertaram, agora faltam libertar os homens. Os homens estão extremamente agrilhoados por preconceitos e expectativas. Isso vem com um custo absolutamente atroz, em que são incentivados à violência, em que não conseguem processar os sentimentos e as suas emoções e os seus impulsos de forma saudável. E foram postos no lugar socialmente, foram pintados como os vilões que efetivamente são, em muitíssimos casos, não há dúvida nenhuma disso. Mas não lhes foi dada, ou eles não souberam encontrar, uma forma de se reinventarem. Ainda não encontraram um novo lugar. E muitos estão perdidos na ideia fácil do “antes é que era bom”. Essa inflexibilidade, essa incapacidade de gerar um novo discurso, de gerar uma nova auto-imagem, vai-nos tramar a todos.

Mas o facto é que as mulheres participam nisto, nomeadamente as mães.
Pois, as mães são sempre as vilãs, as culpadas de tudo, já desde há muito tempo. Desde a Eva. A culpa é sempre da mãe. O adolescente faz um tiroteio na escola, é porque a mãe é A, B e C. Confesso que, desde que fui mãe, ganhei uma visão diferente sobre estes mitos. É verdade, as mulheres são cúmplices. Qualquer sistema de opressão, requer cúmplices. Há o grande opressor e depois há todo um elenco de pessoas à volta que contribuem para sustentar aquele sistema. Muitas mulheres beneficiam do sistema patriarcal, reforçam-no e têm dificuldade em dar um passo atrás e perceber como é que estão a participar neles e como romper com esse ciclo. É verdade que muitas mulheres criam os filhos, sobretudo os rapazes, para terem pequenos tiranetes, parecerem agressores, parecerem eternamente coitadinhos e desculpados. Enfim, a culpa não é só delas e elas fazem-no porque há uma pressão social enorme para o fazerem. É uma grande teia de efeitos dominó e é difícil dizer que há só uma causa.

Algumas das catástrofes da vida desta rapariga são os encontros com homens. São muitas formas amorosas, simultaneamente banais, mas que vão a contrapêlo do sentimentalismo pueril que inunda uma certa literatura que veicula uma ideia de “romantismo” devedora do discurso publicitário, das revistas cor-de-rosa, de idolatria pop.
Sim, uma cultura que impõe, ainda que subtilmente, uma certa ideia de casamento como conto de fadas. Depois é a gravidez. Há a festa do casamento, depois a festa da gravidez. Quer dizer, há aqui um lado de gente que parece muito emancipada, mas que depois veiculam um estilo de vida feito para o conformismo.

As mulheres nunca aceitaram que tivéssemos prazer sem ter que pagar por isso. Seja a nível sexual, seja a qualquer outro nível. É muito difícil para qualquer mulher sentir prazer sem sentir que o chicote está à espreita. E isto aplica-se às coisas mais simples. Como comer um chocolate antes de ir  jantar. Ai, que vou aqui fazer um disparate. Vou aqui fazer uma asneira. Ah, mulher, come o chocolate em paz. Come o chocolate pequena, come o chocolate. É preciso deixar de ter medo do chicote.

Mas creio que esta vaga feminista que hoje temos, esta vaga mais fresca, mais jovem, tem falado muito disso, de como a publicidade, ao mesmo tempo que nos vende um gel de banho muito “empoderador”, como se pudesse descrever tal coisa, está em simultâneo a impor-nos padrões de beleza absolutamente desenhados para agradar o olhar masculino. São ainda os velhos contos de fadas com novas roupagens mais pop. São belas fantasias escapistas para quando alguém quer fugir da realidade. Mas ai de quem toma aquilo como a realidade. Porque vai chocar contra uma parede e vai chorar lágrimas amargas.

E certos meios tornam ainda mais difícil a libertação face a essas funções da mulher tradicional, casar, ter filhos?
Sim, sim, sim. Na adolescência, eu e as minhas amigas já falávamos de quantos filhos iríamos ter. E agora penso: meu Deus, miúda, só tens 16 anos e já estás a falar de quantos filhos é que queres ter? Mas, de facto, já sentíamos aquela imposição de arranjar o namorado, o namorado para a vida. Por isso não leio à minha filha esses contos de fadas muito formatados. Tento contar histórias que ponham em ênfase em certos valores, como a coragem, a esperteza. Contos como o João e o Pé de Feijão ou O Rapaz, o Velho e o Burro. Porque se é para fugir a uma visão formatada da realidade, só nos livros é que existe um lugar. Se queremos encontrar narrativas diferentes que nos libertem, que nos façam pensar, então aí não abrimos o Instagram. Aí temos de abrir um livro. E não um livro qualquer. De preferência um bom livro.

"Traduzir Lydia Davis fez-me marimbar para a forma. A Lucia Berlin deu-me permissão para trazer algumas coisas da realidade biográfica para a escrita. Ler o Ocean Vuong, por exemplo, fez-me sentir que posso escrever fora da linearidade narrativa, essas divagações, bifurcações, que depois são nós que se atam mais à frente."

O facto de ser tradutora, dá-lhe alguma vantagem nesse campo?
Trabalho em tradução para ganhar a vida. Todos os dias sou obrigada a estar em contacto com palavras e a esmerilar frases e a encontrar a palavra certa para o momento certo. Isso é um treino, isso é um músculo que está ali a ser treinado todos os dias. E depois, quando escrevo, já escrevo com esse trabalho de casa feito, com esse trabalho em pano fundo, de alguma forma. Traduzir Lydia Davis fez-me “marimbar” para a forma. A Lucia Berlin deu-me permissão para trazer algumas coisas da realidade biográfica para a escrita, sem sentir que a qualidade literária seria sacrificada  por causa disso, ou menorizada por causa disso. Ler o Ocean Vuong, por exemplo, fez-me sentir que posso escrever fora da linearidade narrativa, essas divagações, bifurcações, que depois são nós que se atam mais à frente. E depois, ler coisas muito boas não me oprimiu, pelo contrário. Inspirou-me. Mas também ter que ler coisas muito más que circulam aí com fartura, ler essas coisas muito más deu-me aquela permissão. Estava nos 40 e, finalmente, assumi em voz alta uma coisa quase inadmissível, queria ser escritora.

E agora… o que é que espera disso?
Há uma frase com a qual me identifico: “Because somewhere out there is someone with a wound in the exact shape of your words”/Porque algures há alguém com uma ferida que tem a forma exata das minhas palavras.

Em breve vais publica também um primeiro livro de poesia numa editora brasileira.
Vai sair pela Urutau. É uma pequena editora independentee que está no Brasil, na Catalunha e em Portugal.  Eles fizeram uma open call, concorri e fui uma das selecionadas. O meu livro de poesia é diferente de todas as outras coisas que eu fiz até agora. É um livro em que a forma também é estilhaçada, não há qualquer tipo de preocupação formal, poema a poema ou até no conjunto, e é um livro que acho muito, muito bem humorado. Chama-se Observatório porque cada poema é um momento de observação do mundo. Até tenho lá um poema sobre a linguagem “La Redoute”.  É uma sátira à linguagem comercial, mas ao mesmo tempo aproveitando a própria linguagem comercial. E o poema está cheio desses momentos em que aproveito o quotidiano e mini-catástrofes ou micro-catástrofes para fazer um retrato da nossa sociedade, vai sair em outubro. E depois, a seguir a esse, o próximo vai ser um infanto-juvenil chamado Uma Casa Portuguesa, que sairá pela imprensa nacional.

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