Já sabia na primeira pessoa o que era a depressão, mas nada fazia prever que voltasse a passar por isso depois do nascimento da Rosa. Bastaram apenas duas semanas após de ter sido mãe para Rita Redshoes ter sido apanhada desprevenida.
O choro do bebé foi o primeiro sinal, o seguinte foi nunca querer ficar sozinha com a filha. Chegou a estabelecer horários com o namorado e a mãe para escapar aos momentos de “inferno”.
Numa entrevista da série “Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental”, uma parceria do Observador e da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento, a cantora e autora conta que deixou cair o sonho de ter três filhos e se emociona sempre que vê uma grávida ou uma mãe sozinha com um bebé. “Só passando pela situação se pode compreender”.
Ouça aqui a entrevista.
Chegou a ir às urgências com um ataque de ansiedade onde lhe recomendaram chá de tília. Só com ajuda especializada conseguiu sair da “fossa”. Não se esquece do dia em que comeu um croissant com fios de ovos, tomou um banho de vinte de minutos a ouvir a música preferida e recuperou a vida antiga. A depressão pós parto é muito mais do que o baby blues ou as hormonas à procura de um equilíbrio.
Rita Redshoes continua a recorrer à terapia, mas diz que já construiu a relação com a filha com que sempre sonhou.
[Veja aqui a entrevista completa a Rita Redshoes:]
Foi depois do nascimento da sua filha que teve pela primeira vez a sensação de que não se sentia bem? Foi só a partir daí?
Em relação à depressão pós-parto, sim, foi mais ou menos umas duas semanas depois do nascimento. Mas eu não era uma novata no historial da depressão. Já vem de há muito tempo. Mas por razões diferentes, piorou depois do nascimento da minha filha.
Quer dizer que a gravidez foi feliz, normal e saudável e nada fazia crer, mesmo com esse historial, esse passado e outras experiências, que alguma coisa podia correr mal…
Não. Tive uma gravidez santa. Fiquei muito feliz por estar grávida. Era um desejo grande. E finalmente estava a concretizá-lo. Sempre quis quis ser mãe. Aliás achava que ia ser mãe de três, coisa que já não vai acontecer à partida, e portanto em nenhuma altura previ ou pressenti que poderia acontecer isto comigo. Daí que fui um bocadinho apanhada desprevenida. Em muitas coisas, mas também nessa.
O que se passou então duas semanas depois de ser mãe? Como é que começou a acontecer?
Conscientemente, aquilo que dei mais conta no momento, é que mesmo não sendo depressão pós-parto há o que se chama o baby blues, que acontece pouco dias depois do nascimento do bebé, em que a mulher tem as hormonas todas viradas do avesso. Emocionalmente é um momento muito intenso. Há uma recuperação física do parto, da gravidez e passamos de filhas para mães de um dia para o outro. Não há curso pré-parto nem de preparação para o parto que prepare o que quer que seja a esse nível. Só passando por isso, só vivendo. E apesar de na altura me sentir um bocadinho perdida, tentei pensar aquelas coisas, ‘bolas, mas isto é a coisa mais antiga da humanidade!’, ‘eles criam-se em situações e contextos muito mais complexos’, ‘porque é que eu não estou a conseguir?’. Basicamente o que sentia era um sentimento de impotência, de medo, de ansiedade. Muita, muita ansiedade. Aliás, tive alguns ataques de pânico que me levaram a ir ao hospital, em episódios infelizes na verdade. Porque há muito desconhecimento também, de médicos não especializados, em relação ao que se pode fazer a uma mãe que por exemplo esteja a amamentar, como era o meu caso, e que passe por isto.
Portanto, diz medos. Tinha medo de quê? De estar com a bebé? De não conseguir estar à altura daquilo que a bebé precisava?
Racionalmente tinha grande dificuldade em perceber o que era. Hoje em dia, sim. Acho que pus um grande peso no que era ser mãe e no que era cuidar de uma criança. Portanto, talvez tenha idealizado demais. O que se calhar acontece a qualquer mãe. É mais que humano e saudável, diria. Esse peso de repente caiu sobre mim e sentia-me muito angustiada. Muitas das vezes, e isto é aquilo que é menos dito normalmente porque não é bonito, porque não é suposto, mas pensava muitas vezes: mas não era isto que eu queria afinal? Não era bem.
Arrependeu-se?
Em certos momentos era um sentimento de arrependimento. Porque naqueles dias — e parecem todos iguais e grandes — e são todos à volta do bebé, de mudar fraldas, de dar o banho, a amamentação, etc, os dias pareciam-me todos iguais. E portanto a sensação é: não quero esta vida, não é esta vida que quero para mim. Onde é que está a minha vida? Onde é que estou eu? Não há tempo para a mãe. É ridículo às vezes pensar-se que não há tempo para tomar banho. Mas pode acontecer. É tudo tão intenso que é normal que a mulher se perca no processo.
Diz que teve ataques de ansiedade que a levaram ao hospital. O que é que se passava?
Fisicamente, e se calhar é bom para as pessoas que passarem por isto perceberem, não conseguia respirar normalmente, que é típico de um ataque de pânico. Os pensamentos entram em loop e portanto não há a capacidade de me acalmar, de pensar racionalmente: ok, a bebé está bem, está tudo bem, tens uma família, não há fome, não há frio, todas as condições estão reunidas. Todo este tipo de pensamentos não fazem sentido. Há uma aflição, uma angústia profunda no meu caso e de perda de controlo emocional e racional. Sentia: preciso que alguém me pegue ao colo! Que me dê colo! Porque estou cheia de medo e porque não era isto que achei que ia viver.
Havia um gatilho para essas situações? Acontecia alguma coisa que lhe provocava essa sensação?
Em parte o choro. E a minha bebé não chorava quase nada. Mas o choro é uma coisa muito aflitiva. Precisamente porque os bebés só sabem chorar, é a maneira que têm de comunicar. Mas para mim aquilo era o choro e eu não conseguir acalmar. Aquilo para mim era aterrador. Lembro-me de ter tido um bocadinho uma recuperação depois daquelas duas semanas antes de pedir ajuda. Mas depois houve uma tarde em que até me senti uma super mãe, até fui à rua com a minha filha no canguru, pensei ‘uau, já aprendi como é que isto se faz’, e chego a casa e ela esteve a chorar três horas seguidas. E eu cantei, fui para a bola de Pilates, apaguei luz, acendi luz, sei lá o que fiz. Estava sozinha com ela e pensei: não consigo ser mãe. Não consigo acalmar a minha bebé. E se eu que sou a mãe não consigo, como é que é possível fazer isto? Ao fim de três horas ela acalmou-se. Eu sentei-me no sofá. Entretanto o meu namorado chegou, olhou para mim e pareceu-me que me tinha passado um camião por cima. E tinha, na verdade. A partir daí, a coisa intensificou-se. O meu sentimento de incapacidade ficou exponenciado por aquele episódio e o meu maior medo era ficar sozinha com a minha bebé.
Fugia de ficar sozinha com ela?
Eu pedia. Cheguei a fazer horários semanais com o meu namorado e com a minha mãe, de forma a que não ficasse sozinha com ela. Porque tinha, não era medo de ter delírios de fazer mal à bebé, não era nesse género de situação, mas era medo da minha incapacidade de se ela chorasse não a conseguir acalmar e de estar sozinha.
Isso acontece quando? Começa a ter sinais duas semanas após o parto. Até chegar a este ponto de precisar pedir ajuda e reconhecer que não consegue estar sozinha com a sua filha quanto tempo passou? Já estávamos em que fase?
Penso que ela teria umas quatro semanas, talvez.
Estamos a falar ainda assim de um período muito curto, mas com uma intensidade de sentimentos sempre em crescendo?
Sim, sempre em crescendo. Aliás, estava a ter uma memória da noite em que de repente me apercebi: não estou muito bem. Não se terá passado nada de extraordinário. Apenas – e isto acho que é importante dizer – um cansaço extremo. E isso não ajuda. A privação do sono é outra coisa que também não ajuda. Comecei a ter pânico das noites, de saber que já não ia dormir. E isso também me criava ansiedade, o saber que não ia descansar. Uma das noites, lembro-me de chegar à cama, de ficar com a bebé ao lado e até de ligar a televisão para ver se me distraía e pensar, mas eu não vou dormir. Vou dormir um bocadinho mas já não vou dormir mais. E começar a entrar em loop com isto. E pronto, aí sim, uma pessoa perde o controlo de conseguir acalmar-se e de conseguir racionalizar.
Antes de perceber que aquilo não era só baby blues, disse que teve de ir ao hospital, teve de pedir ajuda urgente. O que é que lhe disseram no hospital? Chamaram-lhe a atenção que podia estar a passar por uma situação de depressão pós-parto?
Não. Eu fui às urgências de um hospital.
A dizer que não se sentia bem? Que estava angustiada?
Um parêntesis: sou licenciada em Psicologia Clínica, portanto sabia os sintomas e sabia explicar-me muito bem. Cheguei lá com uma explicação e o meu estado era notório. Tinha muita dificuldade em respirar e estava mesmo muito alterada.Tinha tido facilidade em amamentar e não queria deixar de amamentar, era um ponto, por isso qualquer medicação que me pudessem dar não podia alterar o leite. Este era o maior desejo. Mas precisava de ajuda. Então a médica recomendou-me beber chá de tília e de camomila, o que para uma pessoa em pânico é ainda mais assustador porque … é com chá? Isto não vai com chá! Impossível! Vim do hospital bastante preocupada a pensar que não ia conseguir ter ajuda médica. Não queria deixar de amamentar, mas também não podia estar assim, porque não estava disponível para a minha bebé a cem por cento. Isso deixou-me muito triste. Ainda pesou mais a ideia que raio de mãe é que eu sou que até para conseguir ser mãe vou ter de deixar de amamentar, que é uma coisa que algumas mães não conseguem e queriam tanto. Fui toda uma carrasca para mim mesma.
Quem estava à sua volta, o namorado, a mãe que teve de ajudar e acompanhá-la nessas situações em que não queria estar sozinha ou não conseguia estar sozinha com a bebé, perceberam o nível de sofrimento que estava a atravessar?
Foram sensíveis a isso. Perceber, acho que só passando pela situação. Também há muitas depressões pós-parto nos pais, uma coisa ainda menos falada do que a depressão pós-parto das mães, os pais demoram um bocadinho mais de tempo a serem pais e portanto isso às vezes só se revela meses depois. Mas isso é para outra conversa… A minha mãe não se lembra de ter passado por isto, por isso imagino que não tenha tido. Lembra-se obviamente da dificuldade que é ter um bebé pequenino e todas as ‘represálias’ que vêm daí para a mulher, para a sua estabilidade e para o seu dia a dia, mas só mesmo passando por um processo assim é que se consegue compreender. E não é por mal e é compreensível que pessoas que não tenham passado por isto não entendam na sua profundidade. Porque são sentimentos muito específicos, são dilemas muito internos que mexem com muita coisa. É difícil compreender. Agora, o apoio foi total.
Mas havia a ideia de que eram as hormonas, o baby blues, a privação de sono?. E, mesmo com formação em Psicologia Clínica, andou sempre a achar que ia passar com o tempo? Ou era perseguida com a ideia de que era uma má mãe?
Às tantas percebi. Isto não vai passar com o tempo. Tenho de tomar uma decisão. Tenho de pedir ajuda a alguém especializado. Percebi de facto que teria de ser medicada. Já há muitos anos que tenho de ser medicada porque os meus níveis de serotonina são sempre abaixo de cão e não é possível alguém funcionar e não estar deprimido se os níveis de serotonina não estiverem regulares. Durante a gravidez tomei medicação, diferente mas tomei, tinha falado logo com a obstetra sobre isso, mas que naquele momento claramente percebi que não era suficiente. Acho também que o meu corpo se desequilibrou. Aliás, cheguei a fazer umas análises à serotonina quando fui pedir ajuda especializada e acho que o mínimo que devemos ter é quarenta e tal e eu tinha sete.
Estava portanto mesmo no limite. Ainda antes de decidir pedir ajuda — e a decisão foi sua, já percebemos isso — estava ao mesmo tempo a trabalhar. Tinha um disco para fazer, canções para escrever e compôr. Foi tudo em simultâneo?
Foi. Algumas canções tinha escrito ainda durante o processo de gravidez, portanto feliz. E outras foram escritas nesse período pós-parto, em depressão. Algumas das canções foram escritas com a minha bebé. A fazer a Avenida da República vezes sem conta para ela dormir e com o telemóvel a escrever letras. Uma espécie de catarse. Houve muitas canções que foram sobre isso. Foi a maneira que tive de me auto-ajudar, naquilo que conseguia. Não é possível, estando num processo destes, sozinha. É muito difícil sair de lá. Por isso é que há mães que estão em depressão pós-parto durante anos. Se isto não for resolvido, não for tratado, pode ser muito prejudicial para a mulher. Eu às tantas percebi que isto não ia lá…
Esse lado criativo — que é o trabalho de uma mãe que trabalha — ajudou? Era o seu momento de fuga ou sentia que era mais difícil ser a Rita Redshoes autora e a mãe ao mesmo tempo?
Eu sentia-me uma espécie de nódoa. Acho que não me sentia sequer autora na altura, nem compositora, nem cantora. Sentia-me sim uma mãe fracassada. Uma mãe incapaz. Aliás, o tipo de pensamentos que tinha eram muito à volta disso: que era muito fraquinha como mãe e como pessoa. Depois isto alastra e fica ali um pântano. Apesar de pensar estas coisas todas, o meu núcleo saudável ainda me empurrava para reagir de alguma maneira. E a minha reação era na escrita. Escrevia umas canções ou apenas textos. Uma forma que arranjei de organizar o meu pensamento minimamente ou pelo menos de pôr cá para fora o tipo de coisas que ia sentindo. Porque tinha muita vergonha de as verbalizar e escrito ficava ali comigo, ficava entre mim e o meu telefone. Lembro-me também de fazer muitas pesquisas sobre o assunto. De ler blogues de mães que tinham passado por isto e que me ajudaram. Outras que me assustaram imenso. Fiquei até hoje com uma profunda empatia com esse processo, imaginar-me a passar isto sozinha. Eu e a minha bebé, só, se não tivesse a minha mãe e o meu namorado por perto. Sei que há mães a passarem por isso mais do que o que se imagina e é muito duro.
Ainda antes de pedir ajuda técnica e especializada, andou à procura de ajuda também na internet. E dizia que tinha vergonha de assumir o que sentia?
Tinha, porque também tinha medo que me dissessem, sim tu como mãe estás a falhar. Claro que ninguém me disse isso, aliás, diziam-me o contrário, mas não queria essa confirmação externa. Já bastava a minha. Mas ajudou-me no sentido em que não me senti tão sozinha no processo. E ajudaram-me duas amigas, duas conhecidas. Criamos uma intimidade maior porque também tinham sido mães há pouquíssimo tempo, quase seguidas, e às tantas houve um dia que o meu humor estava um pouco melhor e mandei mensagem a uma delas a dizer: isto é assim tão mau quanto me parece? Estou sozinha nisto? E do lado de lá veio uma resposta: Não, isto é horrível! E nesse dia, apesar do mal todo, vi assim um como que um ‘espera, pelo menos não sou só eu com isto’. E ajudou-me ter essa partilha com essas duas amigas, diária quase. Às vezes era eu que perguntava, outras vezes eram elas, e eram muito semelhantes o tipo de pensamentos que tínhamos. Era menos mau. Uma pessoa ia partilhando, ok, sou terrível mas não sou a única.
Ainda assim isso não chegou. Quando é que percebeu que só essa partilha não chegava? Que nem assim, nem partilhando na internet e percebendo que havia histórias muito parecidas com a sua, nem esses desabafos mais íntimos com mães que estavam na mesma situação, chegava?
Porque quando se entra num buraco, apesar de haver alturas e dias em que se consegue começar a trepar para vir ver a luz do dia outra vez, um buraco é um buraco. E é muito difícil se não tivermos uma corda, se não tivermos alguém lá a puxar. Estou a falar de um buraco profundo, porque a depressão pós-parto é uma coisa grave. Havia dias em que estava um bocadinho melhor, em que conseguia pensar um bocadinho mais racionalmente, mas depois havia muitos momentos — e eram muitos — em que era um autêntico inferno para mim. Eu só chorava. E passar dias e dias assim, a minha sensação de que não estava disponível para a minha filha, assombrava-me. Porque era o que menos queria. Queria estar disponível, queria quase deixar de existir para só existir como mãe, para estar disponível para ela. Às tantas não estava nem para mim, nem para ela.
Deixe-me fazer-lhe uma pergunta horrível. Chegou a não gostar da sua filha? De olhar para ela e ela não lhe suscitar amor?
Senti isso um dia. Aliás, foi duro, não só porque é um sentimento horrível de se ter, mas porque o meu namorado apercebeu-se disso. Ou seja, estava um bocadinho em negação de estar com ela. Ele chamou-me a atenção para isso e foi horrível. Mas não era ela, depois percebi. Não era ela, era a situação. Era não estar a conseguir lidar com aquilo. Claro que quando temos uma coisa destas à frente, queremos tirar o problema. Portanto houve um dia assim, mas foi bom ao mesmo tempo encarar com aquilo de frente porque pensei, não, isto não. Não quero isto, não quero entrar por aí sequer. Foi momentâneo, mas normalmente as depressões pós-parto têm muito disso, o rejeitar o bebé. E é legítimo, só que é terrível para a mãe.
Quando é que teve o clique para pedir a tal corda para sair do buraco? Ou foi empurrada para essa situação?
Queria muito encontrar alguém que me ajudasse e tive a sorte de uma destas minhas amigas com quem trocava mensagens me falar de um livro. Achei, oh agora um livro sobre bebés… técnicas sobre bebés e mães.. não estás a perceber. Estou mesmo mal! Mas de facto esse livro mudou bastante o percurso da minha história. O livro é da Constança Cordeiro Ferreira e chama-se ‘Os Bebés Também Querem Dormir’. E pareceu-me ok… se eles também querem dormir, ótimo, vou descobrir como. Além do livro ser bastante bom com explicações muito interessantes sobre a ligação mãe-bebé, coisas ancestrais e tudo, aquilo que mais me tocou foi o prefácio dela, em que falava deste tipo de coisas. Quando foi mãe pela primeira vez — e a Constança é mãe de três — a filha chorava imenso e ela não conseguia acalmá-la. Passava noites em claro, sozinha, a olhar pela janela e às vezes tinha de a pôr no berço porque já não aguentava o choro. E a pensar como é que dou a volta a isto? Como é ser mãe? Ninguém lhe ensinou esta parte. Aquilo tocou-me profundamente e então aí fui explorar. Existem mais, mas recomendo sempre o Centro do Bebé, que é onde a Constança trabalha, que tem uma equipa especializada no pré-parto e no pós-parto e que dão primazia ao bem estar da mãe. Não tanto do bebé. Falei com ela ao telefone e ela disse-me: ‘primeiro vamos tratar de ti. A Rosa está bem: está a comer, dorme quando pode, está tudo a funcionar bem, o pediatra diz que ela está bem, então quem precisa de ser cuidado é tu’. Essa equipa ajudou-me imenso. A equipa tem psiquiatra, tem psicólogos que acompanham tanto mães como pais. Tinha a Constança que me dava muitas dicas de como lidar com algumas destas questões.
Avisou lá em casa: vou pedir ajuda porque não estou a aguentar mais?
Sim, sim. ‘Preciso de ajuda, isto não vai lá assim’. O meu namorado foi comigo à primeira consulta com a psiquiatra para também perceber do que estávamos ali a falar. Isso era muito importante.
E ele nunca lhe disse, que disparate, isto acontece e vai passar?
Ele dizia-me que achava que eu tinha todas as capacidades e mais algumas para ser uma mãe incrível e que isto seria um período de adaptação. Mas não era só um período de adaptação.
E então tem esse primeiro contacto. Não sei se lhe chame consulta? Um primeiro encontro?
Foi por telefone. Eu estava muito aflita, muito angustiada. Falei com a senhora da receção, a Paula. Disse-lhe, não está a perceber, mas estou mesmo aflita e estava a chorar. Ela do lado de lá percebeu que estava ali uma mãe em aflição e então pôs-me em contacto com a Constança, que me disse que era eu que primeiro precisava de ajuda. Pôs-me a falar com a psicóloga que me tem acompanhado até hoje e que me ajudou logo bastante naquele primeiro telefonema. Pediu-me uma coisa muito simples e que me pareceu — ‘ah, que bom’: vá comer qualquer coisa da qual goste muito e vá tomar um banho. Peça para ficarem com a sua filha e vá tomar um banho a ouvir a música de que mais gosta. E aquilo, no meio do caos que é para uma mãe, foi tão reconfortante para mim. Dizer assim, pois é, também tenho direito. Eu fazia estas coisas antes. Preciso de um bocadinho de colo para mim.
O que é que comeu e o que é que ouviu? Lembra-se?
Comi um croissant com doce de ovos que adoro e fui tomar um banho que durou para aí vinte minutos a ouvir uma playlist das músicas que prefiro. E aquilo soube-me pela vida. Cheguei à sala, ok, já estou um bocadinho melhor. Sabia porém que tinha um longo processo pela frente, mas só o facto de ter alguém que compreendeu o que se estava a passar comigo e que me deu ali duas coisas: faz isto e isto. É mesmo muito útil alguém de repente olhar para nós e dizer, é isso, já percebemos que estamos aqui neste sítio, vamos fazer isto e isto, vamos fazer um plano para sair daqui e vamos sair. E vamos começar com coisas muito simples. Aquilo deu-me esperança. Depois dessa consulta com a psicóloga fui então rapidamente vista pela psiquiatra do Centro do Bebé. Ajudou-me, ouviu-me, fez-me muitas perguntas. Estamos a falar de pessoas especializadas que quase todos os dias lidam com mães muito aflitas e famílias e que me alterou a medicação. Disse, tem de dormir. Tem de descansar senão não se consegue sair deste ciclo. Ajudou-me muito o facto de alterar a medicação e poder continuar a amamentar a Rosa, sem que houvesse repercussões para ela. Isso tirou-me um peso enorme de cima e a verdade é que com a medicação e com a psicoterapia, falar sobre o assunto, tive ainda um mês e meio ou mais assim na fossa, mas depois comecei a conseguir respirar e a usufruir da Rosa, que era o meu grande desejo.
E ouviu o diagnóstico? Está a sofrer de depressão pós-parto?
Sim, de uma forma muito natural. A depressão para mim não era uma novidade, era uma novidade naquele contexto. Mas o tipo de sentimentos que tinha muitas das vezes eram semelhantes àquilo que também já conhecia. É capaz de ser bastante mais assustador para uma mãe que nunca tenha passado por um processo depressivo, de repente, entrar num filme destes. No meu caso havia muitas coisas que conseguia nomear, e portanto não tive esse choque de ouvir, ok, está com uma depressão pós-parto. Até porque já desconfiava que fosse assim. Mas mais do que o diagnóstico em si, é o desmistificar isso e tirar o peso de cima da mãe de que não é por passar por uma depressão pós-parto que se é pior mãe. De todo.
Houve momentos em que pensou isso?
Sim, sim.
Mesmo depois de diagnosticado? Se estou nisto é porque não fui desenhada para ser mãe?
Dizia muitas vezes na terapia que o sentimento de culpabilidade que tinha era esse, de deixar marcas na Rosa de uma mãe ausente, de uma mãe que de alguma forma ela pressentisse que não era desejada, porque me tinha deixado naquele estado. Essa foi a minha maior batalha, mesmo em terapia foi ultrapassar isso. Hoje em dia não sinto isso. Isso é o bom. E não sinto que a Rosa tenha ficado “traumatizada” com o meu processo. Porque na verdade, apesar de se poder passar por estes processos — e há processos mais complicados do que o meu foi — mas o amor está lá e a relação está a ser construída. Não é uma ausência de relação. Pode não ter corrido logo às mil maravilhas, mas não há ausência de relação e o bebé sente isso. Se calhar até tem o que precisa naquele momento que é comida, colo e não precisa de muito mais.
Essa terapia foi de um mês e meio?
Não, essa terapia dura até hoje. A Rosa tem três anos.
No primeiro impacto descobriu que podia ter tempo para si e ter o tal colo. O que é que mudou mais? O que é que aprendeu a fazer?
Uma depressão pós-parto tem a questão de todas as alterações hormonais e que se podem dar também a outros níveis. Creio que em parte não acontece a toda a gente e provavelmente há um motivo para isso. Acho que pode ter a ver com o peso que a mãe pode dar a este papel. Pode ter que ver com o mergulho profundo interno que se faz depois de se ser mãe e que mexe com uma data de coisas, nomeadamente com a nossa infância, com a relação que tivemos com as nossas mães, pais ou educadores, tudo. E de repente, numa terapia, em que se vai com este foco, vai-se tratar a Rita pequenina. Muitas das vezes o que aprendi a fazer foi ouvir, dar atenção à Rita pequenina, para ela não me incomodar mais, porque agora já não sou pequenina, apesar de gostar muito de colo na mesma. Mas foi ouvir-me de forma a deixar essas questões resolvidas na minha infância e de agora ser mãe. E de saber que as histórias não se repetem e a Rosa é diferente de mim e vai ter uma história diferente. Porque vou ser uma mãe diferente, porque todas as dinâmicas à volta são diferentes. Isso é um tesouro neste processo, que é o encontro connosco mesmas, com o respeito que ganhamos e todos esses fantasmas, empecilhos e dúvidas de que de facto fomos amados incondicionalmente quando éramos pequeninos e essas coisas todas que são fulcrais no nosso crescimento. Pensar, ter tempo para pensar sobre isso, ir lá a esse sítio onde fomos bebés. Também pode ser doloroso resolvermo-nos enquanto crianças.
Quando é que dispensou a avó e o pai de estarem consigo e com a sua filha?
Demorou, ainda demorou algum tempo. E tenho de admitir que ainda hoje se sei que vou ficar sozinha com a minha filha durante muito tempo, passar dois, três dias, ainda penso nesses dias. Será que vou ser capaz? Mas já não é uma coisa aflitiva. Qualquer pessoa pensa, será que vou resistir a uma criança de três anos que não pára durante dois dias? Mas a dada altura, e passaram ainda uns meses, consegui fazer uma coisa muito importante para mim, que foi dizer à minha mãe, quando a Rosa fez seis meses, preciso de trabalhar e então tenho uma proposta: em vez de vires tu cá para casa, porque se não a Rosa está sempre a querer maminha e a estar comigo, eu vou deixá-la a tua casa e venho para casa trabalhar e depois vou buscá-la. E assim foi. E isso ajudou-me muito, voltar um bocadinho à minha rotina, àquilo que eu também sou enquanto pessoa, enquanto adulta e mulher. E dar esse passo. Ter-me-ia custado muito ter de deixar a Rosa aos seis meses num infantário. Deve ser muito duro para as mães. Foi menos mal porque ficou com a minha mãe, mas foi importante para as duas começar a viver a vida como ela era, e é, e vai ter de ser, porque tenho de trabalhar. Mas agora com a Rosa.
É como se as duas tivessem já o lugar certo, o espaço certo?
Sim. Trata-se mesmo de negociação de espaço e de encontrarmos o espaço e o tempo para podermos ter tempo para nós para depois sermos melhores mães. Lembro-me da minha terapeuta me dizer muitas vezes que seria melhor mãe se continuasse a ser artista do que se desistisse para ficar só com a Rosa. Isso tocou-me muito.
Porque chegou a considerar isso, à procura de ser essa mãe perfeita?
Passou-me pela cabeça. Sabia que não ia aguentar isso durante muito tempo, mas passou-me pela cabeça de repente estar só disponível para a minha filha. E também porque me sentia fragilizada e portanto ir dar concertos com aquele peso da depressão era duro.
Isso chegou a acontecer? Ter de subir ao palco com esse sofrimento todo atrás?
Chegou. Agora e há muitos anos também. Mas fez-me sempre melhor do que pior. O palco e a música têm esse poder: é um confronto comigo mesma, ao mesmo tempo partilhado com outras pessoas. E portanto há uma luta interna na qual sinto que venci no final, mas onde não estou sozinha. Tenho os músicos, tenho a música, tenho o público.
Mas está sempre a desafiar-se quando passa por isso?
Sim. É um desafio que sei que vou ter para o resto da minha vida. Mas também sentia isso: quando voltava para casa depois dos concertos para a Rosa estava mais inteira. Não estava tão despedaçada, porque tinha ido cumprir uma das partes que é uma missão da minha vida também, além da de ser mãe.
Diz que ainda está a fazer terapia. E quando um dia lhe disserem, podes ir, já não precisas das rodinhas?
Agora faço pontualmente, já não é uma coisa semanal. A dada altura, quando arrumei a minha Rita pequenina, a minha terapeuta disse, agora está na altura de ir à vida… e foi um processo importante. É um desmame. Hoje em dia tenho pontualmente momentos em que já não se prende propriamente com a questão da maternidade, mas com outras questões internas, e que algumas ainda vêm da infância, e recorro à terapia. É sempre um bom momento porque uma pessoa entra em contacto consigo mesma. E às vezes, quando estamos sozinhos, fugimos um bocadinho disso. Acho que é importante para qualquer mãe que passe por isso, sem dúvida, além da medicação, uma terapia. Sem dúvida.
E manter esse laço, essa ponte. Já disse que a ideia de ficar dois, três dias com a Rosa pode ser desafiante. As crianças fazem birras, não fazem sempre o que queremos. Sente que há momentos em que recorda essa fase difícil ou já está noutro plano completamente diferente?
Estamos noutro plano, mas uma vez passando por ali não é possível esquecer. Tenho muitas memórias daquele tempo em que estive profundamente deprimida e em que a Rosa era muito pequenina. Não acho que me vá esquecer disso. Aliás, pergunto-me muita vez se quero voltar a ser mãe.
Era a minha próxima pergunta…
E vem esse fantasma, como é óbvio. Vou passar pela mesma coisa? Pela mesma não seria, mas não vou dizer que não tenho esse medo. Tenho.
Não acha que adquiriu os instrumentos, as estratégias para conseguir lidar com esse buraco que já conheceu tão bem? Não tem a garantia de que possa voltar a recorrer à estratégia que usou com a Rosa numa eventual próxima maternidade?
Sei que tenho a ajuda e sei onde procurar e tenho ferramentas. Se vou conseguir ultrapassar isso de forma airosa, não tenho a certeza. Não tenho garantia disso nem acho que se possa ter.
Porque é que as mulheres não contam estas coisas umas às outras?
Isso era o que eu me perguntava muitas vezes. Mas que raio de coisa, isto não é só lacinhos e cheiro a bebé. Não, isto é uma dureza. Acho que há um bocadinho de pudor. Agora a minha cunhada está grávida, deve estar a nascer o bebé [a entrevista foi gravada em dezembro], e evito ter este tipo de conversas com ela porque não a quero assustar, obviamente. Não sei se é essa a questão que não leva as mulheres a falarem disso no pré, antes do bebé nascer, não sei se será. Será um instinto de sobrevivência que as mulheres têm e não vamos dizer que isto é assim tão mau porque se não, de repente, não há mais crianças no mundo. Mas é muitas vezes um tabu, porque também tem a ver com o papel da mulher na sociedade e com a mulher a ter de ser mãe, como se fosse um dado adquirido: nascem para ser mães e para cuidar da família, portanto isto é uma coisa que não se tem de saber. As mulheres são isso, vêm com isso, com essa programação por cumprir. Só que não é assim. Não é de todo assim. E os pais também não, só que os pais durante muito tempo e em muitas sociedades ainda hoje se demitem muito de algumas tarefas e do que é passar um dia com um bebé recém nascido em casa. É muito duro. Tem momentos muito bonitos, mas os bebés — falando agora com um bocadinho de humor — só começam a ter alguma piada aos quatro meses. Porque até lá, não se passa grande coisa. Uma pessoa fala para o ar, imagina que o bebé ouve e que entende alguma coisa. Não dá para brincar. Por muitas coisas que eu imaginasse, por exemplo, fazer umas atividades, não há reação. Tudo isso é muito frustrante. Porque não há um retorno direto. Só há trabalho. Então esse lado é que ninguém nos diz: olha, ao início isto é uma chatice terrível.
Mas está a evitar dizer isso à sua cunhada.
É verdade. Vou dizendo, vou dizendo às vezes umas coisas assim um bocadinho horríveis, mas vou tentando precaver. E já lhe disse, olha eu estou cá. O meu telefone vai estar 24 horas ligado, tu, o que for, diz. E já tive uma amiga que foi mãe depois de eu já ter passado por isto tudo e creio que a ajudei com as minhas partilhas. Porque há um lado que só quando se tem ali o bebé é que se percebe. Há coisas se eu disser a alguém que ainda não é mãe, que não tem um bebé, parecem um bocadinho esotéricas, não fazem sentido. Mas acho que se deve falar socialmente, sem particularizar, acho que devia ser muito mais falado, muito mais conversado. Sobretudo tirar o peso de cima das mães.
A sua relação com a Rosa nesta altura é perfeita?
Eu acho que sim. Sou muito orgulhosa da relação que tenho com a minha filha. E sou muito orgulhosa da minha filha. Acho que temos uma ligação muito forte. Se ela me vai odiar daqui a uns anos, é provável, faz parte e até é saudável. Mas não sinto que a Rosa, que era também um medo meu, se sinta insegura comigo. Que não sou um porto seguro. Não. Qualquer coisa: ‘Mãe!’ Então, acho que represento qualquer coisa suficientemente consistente. Qualquer perigo é para a mãe que vai a correr. Isso é um sinal bom. Ao mesmo tempo é super autónoma, que também é outro sinal ótimo. Também não quero que a minha filha seja dependente de mim. Tem a sua autonomia mas se houver um perigo ou um desconhecido: ‘Mãe!’ Ok, está tudo certo.
Quando olha para trás, o que é que sente? O que é que pensa?
Hoje em dia já não penso tanto naquilo que passei, mas fico muito atenta e sensibilizada quando vejo alguém grávida, quando vejo uma mãe sozinha com um bebé num carrinho. Sensibiliza-me muito. E aquela mãe pode estar impecável e não ter passado nada e ser completamente feliz naquele contexto, mas é inevitável que eu regresse às minhas memórias nessa altura e é inevitável que me sinta automaticamente alerta e disponível para alguém que passe por esse momento. Acho que é isso que guardo mais de toda a experiência que tive. E também dizer que ter sido mãe foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. E agora vou tentar não me emocionar nesta parte: faria tudo outra vez, passaria tudo para chegar aqui.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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