Mostrando estar atento ao crescente número de jovens criadores que trabalham em artes gráficas e edição artesanal e tipo-gráfica, não digital, ou mesmo antidigital, boa parte deles com uma vocação política intensa e específica — há toda uma vaga internacional que já ganhou considerável impulso e eco no nosso país: v. a recentíssima Feira Gráfica, no Mercado de Santa Clara, em Lisboa —, o Museu Gulbenkian abre na sua galeria temporária “Call to Action | Abril em Portugal”.
Trata-se de uma exposição dedicada ao inglês Robin Fior (1935-2012), com particular incidência num primeiro período — ainda pouco conhecido, apesar do livro-tese de Maria João Bom (A Práxis no Design Gráfico de Robin Fior e contextos, Caleidoscópio, 2015, 510 pp.) — em que ele colaborou com a Amnistia Internacional e foi activista do pacifismo antinuclear e de jornais e editoras de “esquerda humanizada” na Londres dos anos 1960, conjugando modernidade visual e tecnologias e formatos de custo reduzido, e num segundo período, os dos primeiros anos da sua vida em Portugal, desde que veio a Lisboa para um semestre de aulas à cooperativa de publicidade e comunicação Práxis, e se tornou pouco depois (1973), com Manuel Costa Cabral e outros, um dos pioneiros da escola Ar.Co e do ensino da sua especialidade. Mas também um dos fundadores da Associação Portuguesa de Designers — e, claro está, com a efeverscência revolucionária de 1974, a correspondente intervenção de propaganda política, criando o logótipo e o jornal do Movimento de Esquerda Socialista, de Nuno Teotónio Pereira, José Manuel Galvão Teles e César Oliveira, entre outros.
O designer e professor Francisco Providência escreveu com propriedade, em 2015, que “Robin Fior beneficiou muito Portugal, não só pelo trabalho aqui desenvolvido, como pela contribuição no ensino do design, mas sobretudo pela acção crítica que directa e indirectamente terá trazido à comunidade cultural do design”. Não é pouco, de facto; e esta exposição — não antológica nem biográfica — ajuda a recolocar em cena, e com grande acuidade e abrindo para novas recepções, a obra de Robin Fior e a sua defesa do “trabalho lento”.
Para um ciclo expositivo sugestivamente denominado “Conversas”, a escolha de Robin Fior não podia ser mais certeira e não apenas pelo evidente interesse do diálogo intercultural envolvido, num tempo histórico de grande viragem para o Ocidente e o nosso país. O homem adorava conversar, e pode mesmo dizer-se que para ele tudo não terá passado duma longa e inesgotável conversa sobre a arte e o humano, do antigo ao moderno, a todo o tempo entrecortada por derivações, sugestões, transbordos, dúvidas e cintilações. Diria até que o trabalho, qualquer trabalho, era para ele sobretudo o pretexto duma conversa que lhe interessava ter. A conversa era o seu trabalho verdadeiro.
A curadora Ana Baliza, também ela designer, aproveitou o espólio do inglês recentemente doado à Biblioteca de Arte da Fundação, e pôde contar ainda — e é, quase certamente, um ainda no limite — com empréstimos valiosíssimos, memorialismo e crítica de velhos e antigos colegas do jovem estudante de língua e literatura em Oxford dobrado em artista autodidacta que se distinguiu por uma penetrante erudição poliédrica, que acumulou até ao fim, creio que por muito intrincado hábito judaico (a avô, Rachel Leonora Thierer, descendia duma dinastia rabínica chassídica; e o avô, Joseph Hirsch Fior, foi secretário de ilustre rabino em Londres). O pai, advogado, fê-lo estudar no Harrow, um dos mais reputados colégios internos ingleses, de 1948 a 1953, onde aulas de composição tipográfica manual e caligrafia foram determinantes para tornar estas disciplinas artísticas dois dos seus máximos interesses (a epigrafia também).
Aos 16 anos assinava a revista Typographica, com informação internacional privilegiada. Aos 21 trabalhava para Desmond Jeffrey, tipógrafo, designer e impressor anarquista — muito inspirado por William Morris, que importava tipos de fundições continentais e guiou as leituras profissionais do jovem e míope Fior —, que em 1958 o convidou para dar algumas aulas na London School of Printing. No ano seguinte, Robin foi à Holanda para conhecer Willem Sandberg e à Suíça por Siegfried Odermatt, dois designers em grande evidência — e tão autodidactas e “tipocondríacos” quanto ele. Aderindo à estética do Estilo Tipográfico Internacional, dele diriam ser “mais suíço do que os suíços” que o haviam criado…
A capa do livro Out of Apathy de Stuart Hall e camaradas políticos da New Left, datada de 1960 (tinha então 25 anos), é um dos seus primeiros trabalhos — e já de altíssima qualidade. Tempos antes, desenhara o cartaz para uma das famosas marchas antinucleares entre Aldermaston e Londres (27-20 de Março de 1959), que Maria João Bom não localizou, mas Ana Baliza conseguiu trazer até nós. Outro cartaz tipográfico, para um sit-down contra submarinos nucleares em Trafalgar Square, com o grande historiador de arte Herbert Read, foi feito em Fevereiro de 1961, ao mesmo tempo que Call to action!, um cartaz a azul e preto sobre papel kraft, integralmente em tipos de madeira, para uma manifestação nesse mesmo dia 18, com o filósofo Bertrand Russell à cabeça — e prova tão cabal, quer do seu envolvimento cívico, quer do “conservadorismo” da sua preferência técnica que foi adoptada como meio-título desta exposição. Em Junho de 1963, assina novo cartaz, para uma vigília de mulheres pacifistas diante da base militar de Newbury. Em 1965, a actriz Vanessa Redgrave pede-lhe que fizesse o design dum anúncio-manifesto para uma página inteira do The Times contra a Guerra do Vietname. O seu protagonismo no cerne destes activismos políticos não pode ser subavaliado, nem a sua vinda e fixação em Portugal entendida como coisa de somenos, no quadro geral da presença de estrangeiros estimáveis no nosso pequeno e periférico país.
Robin Fior lecciona entre 1964 e 1972 em várias escolas londrinas, faz duas dezenas de capas para a revista International Socialism, uma mão-cheia delas para a New Society, concorre a uma reconfiguração gráfica da velha New Statement em 1965, fê-la até, por convite, para secção importante do The Guardian em 1968, e concebe o inteiro grafismo de jornais políticos como Peace News e The Black Dwarf, ou Cabs News (dirigido a taxistas sindicalizados). Foi também director gráfico da Pluto Press — com um logótipo em forma de seta aguçada — e desenhou a capa e o cartaz promocional dum livro sobre a activista negra norte-americana Angela Davis (1971).
Contudo, o seu design gráfico não foi apenas intensamente político — seguindo o bruaá fervilhante do tempo —, foi também cultural, com desdobráveis para actividades teatrais promovidas pela Embaixada norte-americana, impressos para galerias de arte, capas para a Penguin-Pelican, o catálogo duma mostra desenvolvida pela Fundação Gulbenkian na Tate Gallery, 1954-64: Painting & Sculpture of a Decade (1964), uma parceria com Edward Wright, ou no mesmo ano o catálogo e o convite de uma exposição de antiguidades da Anatólia, no Arts Council. Robin Fior ainda fez uma incursão em livros didácticos escolares, como director criativo da editora Thomas Nelson & Sons.
É já de uma redobrada maturidade a capa de 1972 para Preparing for Power de J. T. Murphy, um dos livros patente na exposição, com uma cascata de linhas sobre fotografia que é lícito ver citada cinco anos depois — em homenagem — pelo seu grande amigo português Sebastião Rodrigues (1929-97) na capa do volume A Poesia Portuguesa Contemporânea de Adolfo Casais Monteiro (ed. Sá da Costa, 1977).
A vinda para Portugal de Robin Fior nasceu — segundo parece — de um alvitre de José Brandão, bolseiro da Gulbenkian na Ravensbourne College of Art & Design, para que um designer inglês de prestígio fosse contratado para uma temporada de aulas em Lisboa. E o facto de ele ver vindo — em segunda escolha… — directamente para a “cooperativa” Práxis, instalada na Vila Sousa, à Graça, onde já entrara Sena da Silva, dá-nos também a medida de pulso do desenvolvimento rápido que as coisas do design — e da indústria gráfica propriamente dita — estavam a ganhar no país em finais da década de 60 e inícios da 70, com exposições, revistas e livros estrangeiros acessíveis, novas escolas e cursos, empresas de bom nível e artistas de talento, onde realmente se destacava Sebastião Rodrigues — tão autodidacta como o próprio Robin Fior, e como ele inesgotável de interesses estéticos e de cruzamentos artísticos. O cartaz e o catálogo da exposição “Para uma ‘Visão’ Táctil”, no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, ou os cartazes e programa do Ciclo de Teatro Popular Tradicional, na Gulbenkian — ambos precisamente no ano 1973 em que o inglês cá chegou — podem e devem ser vistos como poderosos pontos de afinidade imediata entre ambos, além do lirismo melancólico e do humor latente.
Quando, mais de duas décadas depois, Manuel Costa Cabral encomendou a Robin Fior o design de Sebastião Rodrigues Designer (Gulbenkian, 1995), o inglês dedicou a primeira página desse livro há muito esgotado a uma réplica ao Papel Selado de má memória, colocando a impressão digital do amigo no lugar do escudo nacional e convidando-nos a ler as iniciais do seu nome como Serviço da República — e mais adiante faz do seu “Glifo, signo, assinatura, design” o ensaio mais importante dessa publicação. Esse encontro tão marcante levá-lo-ia de volta à academia, apresentando à University of Reading (Reino Unido) — aos 70 anos! — a tese de doutoramento Sebastião Rodrigues and the development of Modern Graphic Design in Portugal, sob orientação de Chris Burke e Paul Stiff, um estudo ainda sem editor português que nele repare e o mereça.
Fellow da Typographic Society em 1991, Robin Fior assistiu a uma mudança tecnológica que não quis nem conseguiria acompanhar, e ao despontar de novas gerações de designers portugueses que com talento ou ambição conquistaram boa parte do mercado de trabalho que também poderia ter sido seu. Ainda assim, deixou-nos peças adoráveis, quase históricas, como o catálogo-desdobrável Vasos e Desenhos de Betty Woodman, Gulbenkian, 1997, mas foi como crítico e historiador do design que Robin Fior se reinventou e também merece ser lembrado. (O signatário destas linhas tem muito gosto em lembrar-se de ter sido quem o convidou a escrever n’O Independente, dando início a tudo isso ao propor-lhe uma recensão a Arte Primitiva de Franz Boas.) Mas isso é já outra “conversa”…
Exposição patente até 3 de Fevereiro de 2020, completada por visitas guiadas e mesas-redondas com Robin Kinross, Richard Hills e Maria João Bom. Encerra às terças-feiras.