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Nunca achou que a sua vida desse um filme, antes um bom intervalo. Com mais de 40 anos de carreira, Rogério Samora foi sempre um pouco de tudo: o seu próprio secretário, agente e advogado. Mas, em primeiro lugar, ator. Nos palcos das salas de teatro, nos filmes de conceituados realizadores portugueses e no pequeno ecrã que o popularizou ainda mais.
Ao Observador, o cineasta António-Pedro Vasconcelos chegou a descrevê-lo como um dos “três atores de cinema” que conhecia em Portugal, a colega e amiga Carla Andrino chegou a lembrar uma “contracena ótima” e o também ator José Fidalgo recordou mesmo o dia em que rumaram a Nova Iorque à procura de um Emmy. “Vivi mais tempo a representar e a ser outros do que comigo [mesmo]. Sou ator há 41 anos, sempre a trabalhar”, diria Samora numa entrevista de 2019, conduzida na SIC por Júlia Pinheiro, com quem antes chegou a apresentar um programa.
Aos 62 anos, o ator sentiu-se mal durante as gravações da sua mais recente novela, “Amor, Amor” e sofreu uma paragem cardiorrespiratória, numa situação com ecos do passado, a fazer lembrar o caso de Maria João Abreu, que morreu em maio. O ator foi transportado para o Hospital Amadora Sintra, onde esteve internado nos cuidados intensivos, “estável” mas com um prognóstico reservado e “grave”. Morreu esta quarta-feira, com 63 anos.
A avó boémia e a infância na Graça
José Rogério Filipe Samora nasceu a 28 de outubro de 1958 em casa, eram 8h15. Foi assistido por uma parteira e veio ao mundo na Amadora. Com horas de vida é “levado de táxi para a Graça”, onde foi registado e onde vive até aos sete anos em casa da avó materna, tal como contou ao programa do Canal Q “Baseado Numa História Verídica”.
Boémia, divertida e até maluca eram adjetivos que Samora ia usando em diferentes contextos para falar da avó que, de certa forma, alargou-lhe a veia artística. “No fundo, eu era o neto do hall ou do cinema.” De todas as vezes que a avó ia ao Casino Estoril tomar café, o neto ficava no hall, mas também no já extinto Royal Cine, na Rua da Graça, quando Maria de Lurdes ia tratar de recados ou — porque não? — namorar. “Durante 30 anos teve um amante às quartas-feiras. Chamava-se Rogério e chamo-me Rogério por causa dele.” À quarta-feira, ou ia para a vizinha de cima ou para o cinema.
O primeiro filme que se lembrava de ter visto no grande ecrã foi “O Destino Marca a Hora”, de 1970, a preto e branco, protagonizado por Tony de Matos. Para a memória ficar-lhe-ia para sempre a personagem grávida da atriz Anabela Gonçalves Ramos “a cair escadas abaixo” e a “combinação de Isabel de Castro com a alça caída — era o que a censura permitia — com uma chaleira a apitar com água quente”, recordaria já em conversa com Aurélio Gomes. Já o segundo filme, num registo muito diferente, foi “Música no Coração”, de 1965. O Royal Cine era uma espécie de babysitter: as sessões eram das 15h às 19h, com direito a dois filmes, fossem eles comédias ou romances, entre outros géneros. Aos seis anos, o hábito da grande tela estava enraizado, incluindo os filmes que não eram para a sua idade.
Era uma criança protegida. Brincava pouco na rua por causa dos muitos carros que ali passavam. E, fora dos corredores do cinema ou do casino, passava os domingos a bordo do famoso elétrico 28, sempre em loop. Era o passeio de fim de semana com a avó, uma mulher que o marcou muito — dada aos cafés, às esplanadas, à praia e às danças de salão —, mas que nunca o ia ver ao teatro. Não que isso o incomodasse, afinal, “ela conhecia o original” (que morreu aos 86 anos). Ainda assim, foi quem o levou por diversas vezes a ver as estreias da Revista no Parque Mayer “às escondidas no casaco”. E quem ia propositadamente beber café naquele recinto de teatros de revista para ver as estrelas passar.
A vida de Rogério mudou dramaticamente aos 7 anos, quando foi levado pelos pais da casa da avó. A forma como as coisas foram conduzidas deixou mágoa, mas a experiência e os anos atenuaram eventuais rancores. “Acho que uma criança não é um objeto… Ser levado da casa de alguém que te criou até essa idade. Que te criou para te ajudar, que quis que tu nascesses”, contou na entrevista do Canal Q.
O que custou foi ser “roubado” do conforto de Maria de Lurdes. “Tenho memória do adeus e da canadiana que tinha vestida, em tons de caramelo”, dizia sobre esse dia. “E de ser levado entre… garrafas, pratos, vizinhos, vassouras…” Samora foi “proibido” de falar com a avó durante um período de tempo, recordando-se até do dia em que levou “um belo estalo” por, a certa altura, lhe dizer adeus num café. As fricções em família seriam de um tempo anterior. “[Os pais] Não queriam que eu nascesse, não havia dinheiro. Estavam a construir a vida. A minha avó é que fez finca-pé.” Durante algum tempo, escapulia-se e ia vendo Maria de Lurdes “às escondidas”. “A PIDE era o meu pai”, brinca.
Dos filmes de Manoel de Oliveira à voz de Scar
Passou-lhe pela cabeça ser médico, arquiteto e até professor primário. No fundo, “algo em que pudesse ajudar os outros”. Na escola, gostava de físico-química — tantos anos depois conseguiu adivinhar, no “5 para a Meia-Noite”, o símbolo químico do gadolínio. O pai, que era preparador de medicamentos, gostava que o filho tivesse estudado Farmácia. Mas nada disso estava nas cartas para o homem que passaria mais de quatro décadas a representar.
Recordava-se de com seis anos pisar o palco, provavelmente numa peça da escola. Fez teatro na Sociedade Cultural Recreativa de Rio de Mouro e no Liceu de Queluz. Chegou a estudar à noite no Conservatório Nacional, entre 1977 e 1979. Durante um ano, vendeu eletrodomésticos para a casa Triângulo Vermelho, na Avenida Almirante Reis, para ajudar com as despesas (ganhava quatro contos ao mês e, não raras vezes, dava por si a carregar frigoríficos às costas, subindo a quartos e quintos andares dos apartamentos tipicamente apertados de Lisboa). “Despedi-me quando o senhor Varela disse que o que fazia falta aqui era o Salazar. No dia seguinte não fui trabalhar.” Tinha 18 anos e estava outra vez a viver com a avó. Tinha lata para vender, garantia, e era muito bem recebido em casa das senhoras.
A primeira vez que foi pago por um trabalho na área de eleição recebeu 500 escudos — fez de figurante no filme “Entre Giestas”, de 1980, na companhia da atriz Florbela Queirós. Nesse mesmo ano começa a trabalhar com o encenador e dramaturgo Filipe La Féria na Casa da Comédia, onde passa os cinco anos seguintes (a estreia aconteceu com “A Paixão Segundo Pier Paolo Pasolini”, de René Kalisky, que lhe valeu o prémio de Ator Revelação, em 1981). Um período muito importante na vida e um local e ambiente onde existe consciência de grupo, como mais tarde recordaria.
“Lembro-me de vender bilhetes, de ter sido empregado do bar, de ter sido arrumador [de carros], de ter sido ator, assistente de produção e de encenação, pintor de paredes e maquilhador. Foi uma excelente escola”, disse em entrevista ao Alta Definição, em 2012 — até esse ano já tinha dado vida a mais de 160 personagens no cinema, na televisão e no teatro, mesmo que tivesse escolhido a profissão “porque gostava de dormir de manhã”. Trabalhou ainda com encenadores como Fernanda Lapa e Carlos Avilez.
Na icónica telenovela portuguesa Vila Faia, de 1982, faz de jornalista do Correio da Manhã num dos 100 episódios. Seria o primeiro passo. Ao longo da extensa carreira participaria em inúmeras telenovelas, tornando-se presença assídua no pequeno ecrã. “A Banqueira do Povo”, de 1993, e “A Grande Aposta”, de 1997, são exemplos emitidos na RTP, e “Fúria de Viver”, “O jogo” ou “Jura”, na SIC, marcam o arranque dos anos 2000 — Samora chegou ainda a participar em séries alemãs nos anos 1990 e faz as vezes de apresentador (“Número Um” na SIC e “Cluedo” na TVI, entre 1995 e 1996).
Antes de se mudar para a estação de Carnaxide, protagonizou várias novelas e séries da TVI, como “Destino Imortal”, “Flor do Mal”, “Equador”, “Casos da Vida” ou “Fascínios”. “Rosa Fogo”, já na estação de Carnaxide, acabou por ser nomeada para um Emmy Internacional na categoria de melhor telenovela (juntamente com “Remédio Santo”, da TVI).
“Lembro-me de o júri dizer que ficou muito indeciso e da festa que fiz com o Rogério só por eles estarem indecisos”, chegou a recordar ao Observador o ator José Fidalgo, também ele protagonista desta história. A celebração em Nova Iorque incluiu jantar, copos e dança na companhia de uma comitiva composta por menos de 10 pessoas. Sobre a foto dos três na passadeira vermelha — Samora, Fidalgo e Cláudia Vieira -— referia: “Esse dia foi muito importante para nós. Representar um país é um peso muito grande”.
A personagem de José da Maia, em “Rosa Fogo”, foi o primeiro trabalho após a rescisão de contrato com a TVI, da qual era exclusivo, dizendo à data ser “a melhor personagem que me ofereceram em televisão”. Sobre a decisão de deixar a estação de Queluz de Baixo afirmou o seguinte ao Correio da Manhã: “Ao fim de 34 anos de profissão acho que me faltaram um pouco ao respeito e vi que caras estavam por trás das máscaras”. O ator rescindiu em dezembro de 2010 e assinou pela SIC no mesmo mês. O caso foi a tribunal e acabou por pagar uma indemnização à TVI, num acordo extrajudicial.
Já na SIC seguiram-se os projetos “Mar Salgado”, “Sol de Inverno”, Golpe de Sorte”, que também contou com a participação de Maria João Abreu, e “Nazaré”, onde fez de pai de Carolina Loureiro. Mais recente é o projeto “Amor, Amor”, novela exibida desde janeiro de 2021, onde interpretou a personagem Cajó, para a qual sofreu uma drástica transformação: rapou o cabelo e deixou ficar o bigode farfalhudo.
O teatro e a televisão podem ter ajudado a alavancar a fama do ator, mas os passos na sétima arte não merecem menos crédito, com o primeiro trabalho enquanto protagonista a ser a longa-metragem “Matar Saudades”, de Fernando Lopes — “O Delfim”, do mesmo cineasta, valeu-lhe o reconhecimento do público e da crítica, sendo nomeado para Melhor Ator nos Globo de Ouro de 2003. Samora colaborou com conceituados realizadores portugueses. São disso exemplo João Botelho (“O Fatalista”), António-Pedro Vasconcelos (de que é exemplo “Os Imortais”), Maria de Medeiros (“Capitães de Abril”), José Fonseca e Costa (“Viúva Rica Solteira Não Fica”) ou Raúl Ruiz.
O primeiro filme que Samora fez com António-Pedro Vasconcelos foi uma produção luso-franco-espanhola, uma longa-metragem histórica em que fazia de oficial, colega do também histórico Mouzinho de Albuquerque. Foi um papel “relativamente importante” que simbolizou um antes e um depois. “Foi aí que comecei a perceber o ator que ele era.”
Durante muito tempo, António-Pedro Vasconcelos pensou e disse frequentemente que conhecia três atores de cinema em Portugal. Samora era um deles. “Ajuda imenso trabalhar com alguém que sabe o que é filmar para o cinema”, chegou a dizer o realizador. Seguiu-se um curto papel em “Jaime”, de 1999, e “Os Imortais”, de 2003. “A partir do momento em que o conheci, nunca mais o dispensei. Depois de “Os Imortais” não voltei a filmar por desacordo entre ele e o produtor ou por ele não ter disponibilidade, por fazer muita novela. Ele é um daqueles atores com o qual gostaria de contar sempre”, garantia o cineasta. Ator dedicado “sem ser pesado”, Rogério Samora era um profissional que, em set, não fazia muitas perguntas e entrava rapidamente no personagem. “É um ator fantástico”, chegou a resumir.
Sobre Manoel de Oliveira, Samora descreveu-o, aquando da sua morte aos 106 anos, como “uma criança sábia; muito divertido, com sentido de humor, libidinoso, pecador e muito católico”. O primeiro grande trabalho foi com ele, quando Samora integrou o elenco do filme “Os Canibais“, de 1988, um filme-ópera adaptado do conto gótico de Álvaro do Carvalhal. Mais trabalhos com este cineasta haveriam de surgir, como “A Caixa”, “Palavra e Utopia”, “Porto da Minha Infância” e “O Quinto Império – Ontem como Hoje”.
Em “Party” contracenava com os atores Michel Piccoli e Irene Papas, ele francês e ela grega. Mais recente foi a participação em “O Filme do Bruno Aleixo”, de 2020. Frequentemente convidado para dobragens de cinema de animação, talvez a interpretação mais conhecida seja a personagem de Scar em “O Rei Leão” — deu voz tanto nos diálogos como nas canções da versão portuguesa que ajudou a marcar uma geração.
A depressão e a ajuda dos amigos
“Tenho tido várias vidas dentro da minha própria vida, são vidas emprestadas”, chegou a dizer. Mais de uma centena de personagens passaram pelo crivo e criação do ator de 62 anos, mas uma delas deixou mais mossa do que as outras. A maldade de José da Maia em “Rosa Fogo” afetou-o e apanhou-o desprevenido num momento mais frágil da vida. O vilão da história protagonizada por Cláudia Vieira, Ângelo Rodrigues e José Fidalgo era “um manipulador, mentiroso, um sangue-frio, um crápula”. Talvez sem aviso, “houve um período de saturação”, contou ao Alta Definição. “É verdade que andei a tomar medicamentos com aconselhamento médico. Se não consegues dormir, se não consegues acordar…”
Da vida privada pouco se conhecia. A mãe e avó já morreram, “antes do prazo, antes do tempo”. Teria uma relação mais complicada com o pai e com o irmão. Samora esteve casado durante 13 anos, sem nunca ter tido filhos — casou aos 19 com uma mulher dez anos mais velha. Findo o casamento, ficou a amizade. Os grandes amigos, esses, eram poucos, menos do que os dedos de uma mão. Talvez fosse por não confiar muito nas pessoas. À conversa com Daniel Oliveira, Samora dizia que podia estar 10 meses sem lhes atender o telefone sem que isso afetasse a relação. A solidão que lhe fazia “bem” devia-se, em parte, à profissão exigente, mas quando se apaixonava era “devastador”, um “tudo ou nada”. “Às vezes esqueço-me que o pavio acaba.”
Foi a amiga e colega de profissão Alexandra Lencastre — com quem já contracenou diversas vezes — que aconselhou o nome do primeiro psicólogo que consultou. A segunda volta à terapia foi já com a referência da também atriz Carla Andrino.
Apesar de se conhecerem há muitos anos, Andrino e Samora contracenaram juntos pela primeira vez na novela “Nazaré”. “Só trabalhámos juntos na Nazaré, onde fez de meu marido. Foi uma experiência interessante, uma contracena ótima”, chegou a dizer Andrino ao Observador, assegurando a existência de “muita empatia” e garantindo que ficaram amigos para a vida. Sobre o aconselhamento psicológico, afirmava que, como amigos, falaram e desabafaram. “Houve ali uma altura que me relatou de facto essa vontade e eu recomendei uma colega e ele gostou e tem feito a terapia. Fiz só como amiga.” Parca nas palavras, fez mesmo um acrescento final: “Ele sabe o quanto gosto dele”.
“Houve ali um período em que não estava bem”, chegou a dizer Samora sobre a depressão que alguns meios apontam ter ocorrido por volta de 2012. “Acho que quando precisamos de auxílio devemos procurar um técnico. Não são os ansióliticos, o enfiarmo-nos nos na cama e o odiarmos estar vivos. A vida é para se viver. Quando chegar ao fim, chegou.”
A vontade de abandonar a “profissão desgastante e louca”
Anos depois da depressão, Samora fez correr muita tinta ao anunciar, no programa “Queridas Manhãs” da SIC, que ia reformar-se. Pretendia deixar a representação e seguir em frente com a vida depois de décadas em palcos, em grandes telas e em ecrãs mais pequenos. Depois de anos junto do público, a ser uma companhia constante. “Vou deixar de ser ator não tarda muito. Aproveitem que são mais três anos, até acabar o contrato”, disse, justificando que era preciso “ter noção quando algo não nos faz completamente felizes” e caracterizando a profissão como “muito desgastante e muito louca”. A polémica afirmação coincidiu com a abertura de um hotel no Porto — Golden Holidays by Rogério Samora.
Samora voltou naturalmente atrás com a palavra, tanto que ao Jornal de Notícias comentaria mais tarde que se deixasse a representação “deixaria de ser feliz”. O projeto seguinte materializou-se no primeiro episódio de “Golpe de Sorte” e depois na novela “Nazaré”, projeto sobre o qual, em agosto de 2020 e em declarações à TV Guia, teceu duras críticas. “Disseram-me que íamos ter mais tempo e que ia ser tudo mais lento mas, ao fim de um mês, esquecemos isso tudo porque era preciso acabar [de gravar] por causa de estruturas e financiamentos. Houve mais pressão por parte da produção e dos assistentes de realização para que o trabalho se fizesse e a pressão não é boa para quem trabalha com emoções. Aliás, não é boa em lado nenhum. Deixamos de ser seres humanos e passamos a ser máquinas. Senti-me como um cavalo a ser chicoteado.”
Todos os trabalhos de representação o obrigaram, em parte, a “uma anulação” de si próprio, já antes disse referindo-se às múltiplas vidas que deu em diferentes ambientes, do palco ao pequeno ecrã. E, sem desprimor das outras plataformas, não tinha pudor em dizer que gostava muito de televisão, mesmo que em Portugal existisse o preconceito de que é uma arte menor. Sobre isso, Samora não tinha dúvidas: “Sou colega da Scarlett Johansson, do Sean Penn e do Clint Eastwood”.