Por causa da cólera, no século XIX, Londres investiu na construção de um sistema moderno de esgotos e saneamento. Preocupações com a saúde levaram Nova Iorque a limpar as ruas da baixa de Manhattan para que a água pudesse drenar com mais eficiência. Em Lisboa, as crises epidémicas de cólera e febre amarela provocaram, entre 1856 e 1857, a morte a seis mil pessoas, levando à transformação urbana da capital em prol do novo conceito de saúde pública — e que passou pela melhoria das infraestruturas de saneamento, da manutenção das condições de higiene ou da vigilância das atividades poluentes.
O que acontecerá agora que, por todo o mundo, a Covid-19 obrigou ao confinamento de milhões de pessoas e a uma mudança radical dos hábitos de vida?
Responder a essa pergunta pode parecer antecipar hipóteses pouco concretas, mas a pandemia já está a mudar cidades em vários países e dificilmente será diferente em Portugal. Isto porque a doença molda as cidades. E, mais do que a doença, o medo é a maior “arma” de intervenção urbanística, diz Joana Cunha Leal, professora do Departamento de História da Arte da Nova FCSH, ao Observador. “Se as pessoas acham que têm a sua vida ameaçada, permitem coisas impensáveis noutras condições. Muito mais em crises como esta, que tocam todos os estratos sociais, ainda que toquem mais duramente aos mais pobres, para quem o confinamento é uma miragem”.
Em países tão diferentes como a Colômbia e a Alemanha, a necessidade de espaço para manter o distanciamento social está a levar ao alargamento de passeios e ao aproveitamento de estruturas, como parques de estacionamento, para atividades ao ar livre. Muitos optam por afastar os carros, mas há mudanças que podem esbarrar no equilíbrio entre o deve e o haver: as cidades mais populosas são terreno fértil para as pandemias, mas, em contrapartida, são também mais eficientes, por exemplo, em termos energéticos.
O medo do espaço público e a vida invertida
Num curto espaço de tempo, o novo coronavírus espalhou-se rapidamente pelo mundo inteiro e alterou por completo a vida nas metrópoles, promovendo a segurança dentro das quatro paredes e a desconfiança do espaço público. Com a pandemia, e a consequente declaração do estado de emergência, decretado a 18 de Março, só os trabalhadores de serviços essenciais, as forças de segurança ou os profissionais de saúde foram autorizados a deslocar-se, com moderação, para o exterior. A todos os outros portugueses, muitos em teletrabalho ou em aulas à distância, foi-lhes pedido que encolhessem a vida que tinham lá fora para o tamanho das suas casas.
Com o desconfinamento gradual, que arrancou a 4 de maio, as cidades voltam a ser postas à prova, depois de terem visto ruas desertas, como se de uma narrativa pós-apocalíptica se tratasse. Há uma pergunta que se impõe: quando é que as pessoas vão voltar a sentir-se seguras fora de casa? Ou serão as grandes metrópoles, projetadas para resistir às mudanças e responder a um estilo de vida frenético, incompatíveis com as regras do distanciamento social? Qualquer que seja a resposta, vem carregada de interrogações e receios. E vai exigir esforços de todas áreas do saber, em especial da arquitetura e urbanismo.
O que antes da pandemia fazia sentido, como ir de transportes públicos para o trabalho, deixar as crianças brincar em parques infantis, passear nos becos e vielas dos centros históricos ou conviver nos bares e restaurantes que ocupam ruas estreitas e travessas, parece estar a um mundo de distância. A Covid-19 comprometeu o funcionamento das cidades porque o que dá sentido à sua existência é seu movimento constante. Este “modo de vida invertido”, como lhe chamou Lydia Kallipoliti, professora de Arquitetura da Cooper Union, (uma universidade privada em Nova Iorque) já transformou uma das metrópoles mais vibrantes do mundo, numa “desorganizada variedade de quartos e estúdios desconectados”.
É aqui que entra o fator resiliência. Tal como as pessoas, também há cidades com maior capacidade de reagir às dificuldades, sem nunca perderem o equilíbrio. Como Nova Iorque — apesar de contabilizar mais de 20 mil mortes desde o início do surto. O isolamento necessário ao combate à Covid-19 chegou à Big Apple a 16 de março e vai prolongar-se até 13 de junho. Por ser uma das metrópoles mais densamente povoadas do mundo (com mais de 8 milhões de habitantes), foi uma das primeiras a fechar ruas para que os pedestres e ciclistas pudessem praticar exercício físico com o devido distanciamento, assim que os grandes espaços verdes como o Central Park, em Manhattan ou o Prospect Park, em Brooklyn, se revelaram insuficientes.
Lisboa alarga passeios e expande ciclovias
Numa primeira fase, o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, autorizou o fecho das estradas apenas por 11 dias, mas essa apropriação das ruas vazias como espaços públicos fez escola em todo o mundo. De Calgary, no Canadá, a Colónia, na Alemanha. À medida que o desconfinamento se estende a vários países, aumenta a procura por espaços amplos onde as regras do distanciamento social se possam ajustar à prática de atividades ao ar livre. Foi o que fez Berlim, ao converter parques de estacionamento em ciclovias. Em Paris acelera-se para modernizar e expandir a rede de ciclismo. Milão arrancou com a construção de 50 km de ciclovias, e quer inaugurá-las antes do verão. Marco Granelli, vereador da mobilidade, explicou à agência de notícias EFE a motivação do plano: “O transporte público não vai conseguir dar resposta ao mesmo número de pessoas e, se todas as viagens forem feitas de carro, prevê-se um grave problema ambiental”. Também em Bogotá, na Colômbia, o governo agiu rapidamente e expandiu as ciclovias da cidade em 76 quilómetros para reduzir a aglomeração nos transportes públicos.
Com a subida da temperatura, o mayor de Nova Iorque, Bill de Blasio, ofereceu à cidade 64 km de “ruas abertas” e novas ciclovias junto aos parques. O plano é chegar aos 160 km. E pode incluir o uso de barricadas para expandir temporariamente os passeios. “À medida que o clima fica agradável, e esta crise sem precedentes se prolonga no tempo, precisamos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos mantermos seguros e saudáveis”, afirmou Bill de Blasio à CNBC.
Nesta fase inicial, de aperto financeiro, a solução pode passar pela “utilização temporária” dos espaços públicos ou de “edificado desocupado”, explicou o designer urbano, Daniel Casas Valle, numa das “Conferências #emlinha”, transmitidas pelo Facebook, dedicada ao tema de “A Cidade depois do Covid”.
E dá como exemplo o Porto, a cidade que escolheu para viver, onde nas ruas vazias de turistas e de automóveis podiam, agora, brincar as crianças. “Nos próximos meses, porque ainda não sabemos onde estamos nesta tormenta, têm de ser dados passos dentro da crise que estamos a viver. É aqui que os “usos temporários” podem ser muito interessantes. Depois, numa segunda fase, fará sentido falar em redesenhar o espaço público ou em mudar o paradigma dos carros nas cidades”, explicou o sócio da Urban Dynamics.
Na Área Metropolitana do Porto, aos fins de semana, algumas mudanças são já visíveis. A circulação automóvel nas marginais do Porto, de Matosinhos e de Leça da Palmeira está, agora, condicionada. A medida pretende assegurar que o alargamento da zona pedonal à faixa de rodagem aumente o distanciamento físico entre pessoas, dado que a frente atlântica da cidade do Porto é uma zona com “grande atratividade e potencial foco de concentração de pessoas e de veículos”, segundo o comunicado divulgado pela Câmara do Porto. As restrições, que têm como objetivo reduzir a propagação da Covid-19, aplicam-se entre as 14 e as 19 horas de sábado e entre as 9 e as 19 horas de domingo.
Além disso, a Câmara do Porto já autorizou mais de 120 esplanadas a aumentar o espaço para fazer face ao distanciamento social aconselhado pelo Governo devido à Covid-19. O crescimento vai acontecer principalmente no centro histórico e na Baixa da cidade. Outros municípios, como Faro, Coimbra, Mafra, Caminha ou Aveiro, também têm incentivado a ampliação de esplanadas de forma a garantir o usufruto do espaço público em condições de segurança e saúde pública. Uma medida que se tem vindo a espalhar um pouco por toda a Europa e que arrancou na capital lituana, Vilnius, a primeira cidade a avançar com o projeto que serve, agora, de inspiração: a abertura de todos os espaços públicos da cidade às esplanadas dos cafés e restaurantes (sem qualquer taxa ou licença) desde que cumpram as regras de segurança.
Lisboa vai seguir a tendência europeia da utilização “temporária” dos espaços públicos. Fonte da Câmara Municipal confirmou ao Observador que no plano de mobilidade da autarquia pós-Covid-19, que está a ser delineado por um grupo de trabalho específico, constam medidas semelhantes às que já estão a ser implementadas em outras cidades, como seja o alargamento dos passeios e da área das esplanadas para permitir maior distanciamento social, assim como novas ciclovias. Com objetivo de “diminuir a pressão nos transportes públicos”, vão ser inauguradas mais cedo que o previsto as ciclovias da Avenida Almirante Reis e da Rua Castilho.
Essa nova forma de olhar para os espaços públicos também já está a ser equacionada em Leiria. O presidente da câmara, Gonçalo Lopes, escreveu no Facebook que a pandemia fará com que não só seja repensada a arquitetura das casas, “que passarão a incluir espaços para três gerações” — de forma a proteger grupos de risco, como os mais velhos —, mas a arquitetura das cidades também “irá mudar”. “Cada prédio passará a viver em comunidade e com espaços comunitários, como por exemplo as hortas do próprio prédio”, segundo Gonçalo Lopes, antecipando o debate que as autarquias terão de fazer nos próximos tempos.
Para Johan Woltjer, professor de Infraestruturas Urbanas na Universidade de Westminster, as cidades devem, agora, ter como prioridade “a capacidade de criarem estruturas rápidas e temporárias” e que possam rapidamente ser adaptados a momentos pandémicos. E dá como exemplo o Hospital Nightingale, em Londres. Um antigo centro de conferências gigante que se converteu, em duas semanas, num espaço preparado para acomodar quatro mil pacientes infetados com o novo coronavírus. A solução passa pelos materiais sustentáveis, como a madeira, porque permitem uma edificação rápida, mas é possível que nos próximos tempos se vejam mais estruturas feitas a partir de “contentores modulares”.
Pelo mundo inteiro, o que não faltam são exemplos de ideias simples que estão a ser postas em prática para um desconfinamento com regras. A revista Intelligencer, esta semana, sugeriu repensar o espaço público com rolos de fita sinalizadora. “A fita tornou-se uma arma low-tech no urbanismo pós-pandemia”, porque graças à sua flexibilidade tanto serve para medir a distância das pessoas na fila para o supermercado, como para impedir que se sentem nos bancos de jardim. “Sabemos onde ficar e porquê, agradecidos por esses fragmentos de orientação e, ao mesmo tempo, ressentidos com a necessária regulamentação”, pode ler-se no artigo. Na ausência de fita, o papel principal vai para os cones de trânsito ou a tinta em spray.
Também as varandas adquiriram relevância com a Covid-19. Durante o confinamento, foram os “novos bares e cafés”, porque se encheram de palmas e cânticos em tempos de incerteza. Foi à varanda que se assistiu à vida lá fora, sem sair de casa, e os vizinhos se voltaram a reencontrar. Entre os arquitetos, já se assume que este é o momento oportuno para requalificar essas áreas. “As duas coisas mais óbvias que esta pandemia revelou, se olharmos para os pequenos detalhes da vida na cidade, foram a largura dos passeios e a profundidade das varandas”, disse, ao site CityLab, o designer urbano Brent Toderian, responsável pela gestão urbanística de Vancouver entre 2006 e 2012, quando a cidade sofreu várias transformações para receber os Jogos Olímpicos de Inverno 2010.
O mesmo se passa com a valorização dos espaços verdes. Uma necessidade que, segundo Teresa Calix, vice-diretora da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), já tinha sido identificada antes da Covid-19: “A intenção de aumentar os espaços verdes nas cidades antecede a pandemia e espero verdadeiramente que a suceda”. A professora da FAUP acrescenta ainda que “quanto maiores forem os parques existentes maior será a segurança em que se impõe o distanciamento social”.
No Domino Park, em Williamsburg, Brooklyn, numa tentativa de marcar lugares para que os visitantes possam desfrutar do parque mantendo o distanciamento social, foram desenhados círculos na relva. As pessoas podem assim descansar, fazer exercício e ler, cada uma dentro de seu próprio círculo individual no relvado. As circunferências, que medem um metro e meio de diâmetro, foram pintadas com giz branco, depois do parque ter ficado sobrelotado durante um fim de semana de calor.
They’ve made little round human parking spots in Domino Park in Brooklyn! (This park is often the poster child for social distancing fácil). pic.twitter.com/VJzZ0WAdeT
— Jennifer 8. Lee (@jenny8lee) May 15, 2020
Outro exemplo é o Parc de la Distance, um enorme labirinto inspirado numa impressão digital humana para representar aquilo de que as pessoas mais falta sentem: o toque humano. Para ajudar os residentes de Viena a aproveitar o ar livre em segurança, o arquiteto Chris Precht projetou o primeiro parque a pensar no distanciamento social. “Tal como uma impressão digital, as linhas paralelas guiam os visitantes pela paisagem ondulada. Cada caminho tem um portão à entrada e à saída, que indica se está ocupado ou livre”, explicou. Apesar de estarem visualmente separados, as pessoas conseguem ouvir os passos dos vizinhos, no chão de granito, para não se sentirem isoladas. O projeto está feito, só falta agora quem nele queira investir.
O espaço público como “extensão da nossa casa”
O transporte público, outrora aclamado como a melhor solução ambiental para combater a poluição causada pelo uso do carro, acarreta riscos numa situação de pandemia. Esta semana, a Direção-Geral da Saúde publicou as orientações para os autocarros, metros, comboios e táxis em contexto da pandemia. O documento indica que a limpeza e desinfeção das superfícies tem de ser reforçada e devem ser respeitados os limites à capacidade dos espaços. O uso obrigatório de máscara não se aplica só aos passageiros, também os funcionários têm de usar proteção sempre que estejam em contacto com outras pessoas. As recomendações da DGS apontam também para que sejam criados circuitos para reduzir contactos e para a renovação do ar nos veículos, idealmente com a abertura das janelas.
Além da questão da lotação, o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, adianta que “a grande chave do regresso em segurança” ao transporte público será o desfasamento de horários. Para Philip Yang, um dos maiores especialistas em urbanismo no Brasil, essa é a “solução ideal” a curto prazo porque passa por combinar “medidas de redução e distribuição da procura” (que evitam a sobrelotação nas horas de ponta) com “regras claras” no uso de equipamento de proteção, explicou ao Observador.
Uma outra alternativa poderia ser a “promoção intensiva” do uso de bicicletas junto da população ativa. “Essa política poderia ser implementada através de medidas de apoio financeiro à aquisição das bicicletas de forma a ampliar os serviços de bikesharing”, admite Yang, que já viveu em Pequim, Genebra e Washington, mas foi em São Paulo, onde está agora, que fundou o URBEM – Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole.
Como fez Itália. O decreto-lei, aprovado a 17 de maio pelo Conselho de Ministros, concede um cheque até 500 euros para ajudar os moradores de cidades com mais de 50 mil habitantes a comprarem uma bicicleta – ou hoverboards e segways. A medida deverá custar ao Estado mais de 120 milhões de euros. A ideia é reduzir o uso de transporte público e evitar aglomerações.
Segundo os dados ‘pré-crise’ disponíveis, os autocarros da Carris têm uma taxa de ocupação média de 20%, oscilando entre os 100% nas horas de ponta. Números que dão razão à engenheira civil Paula Teles, para quem este é o “momento certo” para colocar o tema do planeamento da mobilidade urbana em cima da mesa das autarquias. Mas com os cortes que terão de ser aplicados do lado da despesa pública, antecipa outras medidas financeiramente mais equilibradas que tornam o espaço público na “extensão da nossa casa”: como seja, abrir os passeios, estendê-los 3 a 4 metros (e não 40 cm, como é comum), fazer corredores sanitários para ciclistas e pedestres ou fechar ruas para diminuir as pequenas deslocações de carro.
Foi o que já fizeram outras cidades europeias. Em Copenhaga, depois de um mês de confinamento, os alunos dos jardins de infância e da primária regressaram às salas de aula a 15 de abril (o ensino básico e secundário recomeçou a 10 de maio) e aperceberam-se logo da mudança: os pátios da escolas deixaram de ser áreas fechadas. Foram transformados em praças públicas que, além dos alunos, toda a comunidade pode utilizar.
Outra solução a que a capital dinamarquesa recorreu foi a de abrir as áreas ajardinadas dos condomínios privados em praças semi-públicas, com acesso mais restrito mas ainda assim de uso comum. Soluções que talvez só sejam viáveis em países com os índices de desenvolvimento da Dinamarca, mas que refletem o movimento de apropriação do espaço público que nasceu em resposta às restrições causadas pela Covid-19.
Na Bélgica, que iniciou a 4 de maio um processo gradual de desconfinamento, as escolas e os parques infantis permaneceram fechados até 18 de maio. As crianças só podiam sair acompanhadas por adultos e respeitando a distância física. A brincadeira da “caça ao urso” foi uma forma encontrada pelas autarquias de colmatar a falta que os mais novos sentem do espaço público e das áreas verdes, ao estimulá-las a procurar o autocolante de um urso, escondido entre o mobiliário urbano, enquanto passeavam pela cidade.
“Se eu fosse presidente da Câmara, aproveitava o facto de as estradas estarem vazias para criar corredores seguros para ciclistas com recurso a cones de plástico ou sinaléticas. As cidades têm de deixar de ser monofuncionais. Quero sair de casa e encontrar espaços de caminhabilidade ou de estadia, mas também de brincadeira para as crianças, declarou Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, na conferência “A Cidade depois do Covid”.
No que se refere à habitação, Teresa Calix admite que poderão aumentar as exigências relativamente às características dos espaços interiores, tendo em vista a “reprodução de condições que sirvam o teletrabalho”, mas também a pertinência das varandas ou dos terraços. No entanto, a vice-diretora da FAUP faz uma ressalva: “Não estou certa de que esta nova consciência da plurifuncionalidade da habitação tenha uma repercussão direta nas políticas públicas”.
O “ideal da cidade compacta”
Segundo dados divulgados pela ONU, 68% da população mundial estará a viver em cidades até 2050, (o que significa um aumento de quase 2,5 mil milhões de pessoas face aos habitantes urbanos atuais). Os especialistas contactados pelo Observador dizem que o foco tem de estar na prevenção de novas pandemias antes de se começar a pensar em projetar novas cidades. Isto porque não são todas iguais. Compare-se Copenhaga ou Berlim com Bangladesh ou Nova Déli. É nas duas metrópoles mais poluídas do mundo, com águas impróprias para banho ou consumo, que as epidemias têm mais potencial para começar e se espalhar.
Em março de 2003, na megacidade de Hong Kong, o Departamento de Saúde isolou, durante 10 dias, um edifício de apartamentos com 107 pessoas infetadas numa tentativa de travar a disseminação da síndrome respiratória aguda grave (SARS). O Bloco E era um de dez prédios de 35 andares do complexo Amoy Garden que, segundo a OMS, esteve no centro do surto de Sars. Hong Kong tem um dos mais altos índices de densidade populacional no mundo: mais de seis mil pessoas por km2. Mas nenhum surto fez com que se pensasse em reduzir essa densidade.
E hoje, em plena pandemia da Covid-19, volta-se a falar da influência da densidade populacional na disseminação de doenças infecciosas. E não se chega conclusão nenhuma. Tanto os arquitetos como os engenheiros alertam para o facto de as cidades mais compactas serem também as mais eficientes em termos energéticos. Quanto mais dispersa é a população, maior o consumo de energia.
O urbanista Philip Yang assume que a Covid-19 nos leva a dizer que “aglomerar é perigoso”. No entanto, “desaglomerar”, a longo prazo, “traz inúmeros riscos ambientais”. E volta ao caso de Hong Kong para explicar que, mesmo depois da SARS, a região administrativa chinesa deu continuidade ao processo de “adensamento”. Ou seja, não travou o crescimento populacional ou construtivo. Limitou-se, sim, a impor “regras mais restritivas relativas a parâmetros de ventilação, insonorização e segurança“. Medidas para ajudar a travar a síndrome do “edifício doente” (Sick Building Syndrome ) e que a Organização Mundial de Saúde definiu como “um conjunto de doenças causadas ou estimuladas pela poluição do ar em espaços fechados”.
Em vez de descompactar, que se prevê irrealista, o que estas megacidades precisam é de criar pequenas “unidades nucleares”. Como “a cidade 20 minutos”, um conceito que já estava a ser testado em Melbourne, na Austrália, antes do surto. Na “cidade 20 minutos”, quase tudo o que um cidadão precisa, desde as compras aos serviços de saúde, passando pelo ginásio ou o trabalho, fica a 20 minutos a pé ou de bicicleta. Também em Paris, no início deste ano, estudava-se a possibilidade de criar os “bairros 15 minutos”, onde se pretendia retirar área da cidade às faixas de carros e reaproveitá-la para espaços comunitários.
O trauma da epidemia SARS não colocou em risco o “ideal da cidade compacta”. Pode este caso servir de exemplo para o que vai acontecer às cidades pós Covid-19?