Quando subiu ao palco para anunciar a sua equipa para a política externa, Joe Biden carregou forte nos lugares-comuns e nos soundbytes. Falou de uma equipa que mantém “o nosso país e o povo seguros” e assegurou que estava “pronto para liderar o mundo em vez de se afastar dele”, voltando a “sentar-se à cabeceira da mesa”. Mais: a América que Joe Biden promete ao mundo é uma que “confronta adversários e não rejeita aliados”. No fundo, tudo isto se resumia a uma frase, que Joe Biden disse com especial ênfase e que fez títulos no mundo inteiro: “A América está de volta”.
Porém, para lá destas palavras, destaca-se uma questão de difícil resposta para Joe Biden e os seus quatro anos na Casa Branca: como vão os seus EUA lidar com os países que desafiam a sua hegemonia? Alguns deles são parte daquilo que George W. Bush chamou, em seu tempo, e com o impulso inicial de John Bolton, “o Eixo do Mal”, como a Coreia do Norte e o Irão. Outros são velhos rivais, com a Rússia no lugar de sempre e a China de Xi Jinping, o maior desafio dos norte-americanos. Depois de quatro anos de Donald Trump, e com uma pandemia em curso, Biden herda uma política externa mais conturbada e improvável. Saberá pô-la em ordem?
China: uma mensagem difusa, entre duas tendências
Em agosto 2001, quando era um senador veterano com experiência em política externa, Joe Biden viajou até à China na qualidade de líder do Comité do Senado para as Relações Internacionais. Ali, não podia ter sido mais otimista quanto à perspetiva de aquele país asiático entrar na Organização Mundial do Comércio. “Os EUA estão recetivos à emergência de uma China próspera e integrada no palco mundial, porque esperamos que a China jogue de acordo com as regras”, disse na altura.
Eram tempos mais simples. Um mês mais tarde, os atentados do 11 de setembro iriam complicar a vida aos EUA no âmbito internacional, precipitando-os para duas dispendiosas e trágicas guerras no Médio Oriente — ambas com o apoio do senador Biden. Enquanto isso, com as portas do comércio mundial abertas, a China ergueu a segunda maior economia do mundo, por força de salários baixos e uma vasta mão-de-obra. Nem sempre o fez jogando pelas regras, como mais tarde viria a ser comprovado por frequentes manobras de desvalorização da moeda e de espionagem industrial, incluindo a empresas norte-americanas.
Agora que chega à Casa Branca na posição de número um, Joe Biden tem na China o seu maior desafio internacional. Por um lado, a ambição de combater tanto as alterações climáticas como a pandemia poderão levá-lo a sentar-se à mesa com Xi Jinping. Por outro, temas como a guerra comercial, as ambições militares e geopolíticas de Pequim e o dossier dos direitos humanos poderão levá-lo a dar um murro nessa mesma mesa.
Em entrevista a Thomas L. Friedman, Biden sublinhou que a China é um assunto que não diz respeito apenas aos EUA — e que, como tal, deve ser abordada lado a lado com os seus aliados naturais. “A melhor estratégia para a China, creio, terá de juntar todos os nossos aliados — ou aqueles que, pelo menos, costumavam ser os nossos aliados — na mesma página”, disse. “Será uma grande prioridade para mim nas primeiras semanas da minha presidência.”
Na mesma entrevista, Joe Biden sugeriu cautela na abordagem à China e também na postura a adotar com o gigante asiático nos primeiros tempos. Isso inclui, para já, a continuação das medidas adotadas pela administração de Donald Trump, que abriu uma guerra comercial com Pequim e, apesar de ter chegado a um acordo, não chegou a baixar tarifas àquilo que corresponde a 370 mil milhões de dólares (306 mil milhões de euros) de importações da China. “Não vou fazer nenhum gesto imediato e isso aplica-se também às tarifas”, disse Joe Biden. “Não vou sugestionar as minhas opções.”
O certo é que, do que se ouviu de Joe Biden até aqui, a sua postura perante a China está longe de estar definida. E as escolhas que até aqui anunciou para a sua equipa dão sinais mistos.
De um lado está Antony Blinken, o próximo chefe da diplomacia norte-americana, que acompanha Joe Biden desde os tempos da administração de Barack Obama. Numa entrevista em julho para o Hudson Institute, não rejeitava a ideia de chamar a China para a mesa, de forma a lidar com problemas a uma escala global. “Os grandes problemas com que nos deparamos enquanto país e no planeta — seja as alterações climáticas, a pandemia ou a proliferação de armas más —, para dizer o óbvio, não se resolvem com soluções unilaterais. Mesmo um país tão poderoso como os EUA não consegue lidar com eles sozinho”, disse. Leia-se: para o próximo Secretário de Estado dos EUA, a China terá de estar sentada à mesa.
Do outro lado está uma das nomeações mais recentes: Katherine Tai, que passará a liderar a política dos EUA para o Comércio. Escolhida para Representante do Comércio, conhece os cantos à casa (trabalhou naquele órgão enquanto advogada) e tem experiência a enfrentar a China, já que foi a responsável por liderar as queixas contra Pequim na Organização Mundial do Comércio entre 2007 e 2014. Como qualidade tem o facto de ser fluente em mandarim. Como característica, a defesa de uma postura assumidamente “agressiva” com a China. Foi isso mesmo que defendeu num painel organizado pelo Center for American Progress em agosto. “Penso que haverá um forte apoio para que sejam dados passos agressivos e ousados no que toca à maneira como competimos com a China”, disse à altura. Referindo então que a postura de Donald Trump perante a China tinha sido “amplamente defensiva”, defendeu uma alternativa oposta. “Jogar ao ataque terá de passar por aquilo que estamos dispostos a fazer para tanto nós, como os nossos trabalhadores, as nossas indústrias e os nossos aliados sermos todos mais rápidos e mais ágeis, de maneira a podermos saltar mais alto, a competirmos com mais força e, no final de contas, defendermos o modo de vida abertamente democrático que temos.”
Não é, pois, certo qual será o caminho de Joe Biden: se a via de Antony Blinken, que chama a China para a mesa; se a via de Katherine Tai, que junta os EUA e os aliados do mesmo lado para, assim, enfrentar a China. Até aqui, Biden já defendeu as duas vias — mas não será fácil conciliá-las.
Os últimos quatro anos foram de grande reviravolta no espaço asiático, com a China a ganhar cada vez mais terreno e influência na região. Paradigmático disso mesmo foi o facto de Barack Obama, quando deixou a Casa Branca, ter deixado tudo pronto para os EUA forma a levar para a frente a Parceria Transpacífica (TPP, na sigla inglesa), tratado de comércio livre que juntava os EUA a países dos dois lados do Oceano Pacífico. A inclusão de países asiáticos como o Vietname, o Japão ou a Malásia, e também a Austrália, era vista como uma garantia de que estes não tenderiam para a órbita de Pequim tão depressa.
Porém, conforme tinha prometido, uma das primeiras ações de Trump como Presidente foi retirar os EUA do TPP e declarar uma guerra comercial contra a China — sem, no entanto, fortalecer laços com os países da sua periferia. Esse foi um vácuo que Pequim já começou a preencher — e que agora existe sob o nome da Parceria Regional Económica Abrangente (RCEP, na sigla inglesa). Em vigor desde 15 de novembro deste ano, esta parceria junta 15 países que, no seu conjunto, representam 29% do PIB mundial e um terço da população — contas suficientes para fazerem deste o maior acordo comercial do mundo. Além da dimensão inegável, há o simbolismo incontornável de juntar do lado da China países que os EUA têm como aliados tradicionais, da Coreia do Sul ao Japão, passando também pela Austrália.
Outro vácuo deixado pelo isolacionismo de Donald Trump foi preenchido pela China e pela União Europeia nos primeiros dias de janeiro, com a assinatura, após sete anos de negociações, de um acordo de investimento entre estas duas partes — um desenvolvimento que contou com o empenho de Angela Merkel já na reta final da presidência alemã do Conselho da União Europeia e que causou desagrado na equipa de Joe Biden, onde muitos questionaram o sentido de oportunidade da decisão.
No capítulo dos direitos humanos na China, Biden sido omisso. Embora a sua equipa de campanha tenha classificado o tratamento da minoria muçulmana da província de Xinjiang, os uighur, como um “genocídio”, este é um tema que não tem merecido menções diretas por parte de Joe Biden nas suas intervenções mais recentes. O mesmo pode ser dito em relação a Hong Kong e ao crescente domínio chinês daquele território.
Para já, os sinais de Biden quanto à China têm sido difusos e inconclusivos. Talvez por isso Xi Jinping tenha sido um dos líderes mundiais que mais esperou para congratulá-lo pela vitória nas eleições. Apesar de Joe Biden ter sido declarado vencedor a 7 de novembro, só no dia 26 do mesmo mês é que o Presidente chinês o felicitou pela vitória. Na mensagem que enviou a Biden, Xi Jinping falou de “promoção de um desenvolvimento saudável e estável das relações China-EUA” e o “espírito de não-conflito, não-confronto, respeito mútuo e cooperação de ganhos partilhados”. Velhas expressões num mundo novo à espera dos próximos passos.
Irão: o acordo de toda a discórdia
Quando, no verão de 2015, o então secretário de Estado dos EUA, John Kerry, voltou a Washington D.C., chegado de Viena e com o acordo nuclear com o Irão debaixo do braço, faltava ainda um enorme pormenor: era preciso vender o acordo ao Congresso. Nessa altura, como noutras do mesmo género, seria impensável que esse trabalho de persuasão fosse entregue a Barack Obama. Ali, o vendedor era invariavelmente Joe Biden.
Biden movia-se então em terrenos movediços. Assumindo-se propositadamente que aquele acordo não tinha a forma de tratado (o que tornaria obrigatória uma aprovação do Congresso) e que era antes um “acordo executivo” (o que permitia fintar aquela obrigação), havia, de qualquer modo, a possibilidade de aquele compromisso ser vetado se dois terços do Congresso assim o decidissem. Por isso, começou rapidamente a sua rota de charme pelo Partido Democrata, onde vários congressistas e senadores olhavam com desconfiança para o documento.
Ao estilo de um bom vendedor, Joe Biden disse aos ex-colegas democratas de Senado qual era a sua perspetiva. “Tenho sido um vice-Presidente muito leal e sempre apoiei o Presidente, mas o que acordei com ele desde o início foi: ‘Vou apoiar-te sempre, mas não vou vender uma coisa se não concordar com ela. Não peças para vender algo se eu não concordar’”, disse. “Estou aqui e estou a vender isto, mas é porque estou de acordo.”
No final, os esforços para vetar o acordo no Congresso não tiveram seguimento e o compromisso foi implementado pelo Irão e observado pelas restantes potências que assinaram de cruz: China, França, Rússia, Reino Unido, Alemanha e a União Europeia como um todo.
Até que, a 8 de maio de 2018, depois de várias promessas e ameaças nesse sentido, Donald Trump retirou unilateralmente os EUA daquele acordo. A partir daí, a dinâmica instalada tem sido a de todos os restantes países, com ênfase para os da União Europeia e o Reino Unido, tentarem manter o acordo vivo — enquanto, ao mesmo tempo, o Irão o dá por morto. Prova disso foram os vários anúncios que o Irão fez desde então, avisando quase sempre que quebrava um limite imposto pelo acordo. Aos poucos, o Teerão parecia encaminhado para se afastar da sua estratégia enraizada da “paciência estratégica”, a caminho, na melhor das hipóteses, de uma postura de bluff. Na pior das hipóteses, que foi muitas vezes a única contemplada por Israel e pela administração de Trump, o Irão sempre teve a mesma meta: produzir armas nucleares.
Para Joe Biden, o regresso ao acordo nuclear com o Irão era, mais do que uma promessa, um plano. A única condição era que o Irão voltasse a colocar-se numa posição de total cumprimento dos termos do acordo de 2015. Do lado do Irão, parecia haver elasticidade suficiente para um regresso imediato dos EUA àquela plataforma, de acordo com o que disse o ministro dos Negócios Estrangeiros numa entrevista a 17 de novembro. Do lado de Teerão, bastava o fim das sanções impostas por Donald Trump e a decisão de Joe Biden de um regresso àquele compromisso. “Isto pode ser feito automaticamente”, sublinhou Javad Zarif.
Dez dias depois daquela entrevista, porém, o cientista iraniano Mohsen Fakhrizadeh, um dos principais responsáveis pelo programa nuclear do Irão, foi morto a tiro por aquilo que os media iranianos disseram ser uma metralhadora montada em cima de uma carrinha pickup armadilhada com uma bomba. Pouco depois daquele assassinato, as autoridades iranianas apontaram o dedo a Israel. Mais tarde, disseram que a arma que matou o cientista era da NATO.
Entre tantas incertezas, sobra uma garantia do lado do Irão: as violações ao acordo vão aumentar. Dias depois do da morte de Mohsen Fakhrizadeh, o parlamento iraniano aprovou uma medida que levará o país a produzir pelo menos 120 gramas de urânio enriquecido a 20% — acima dos pouco mais 4% praticados até recentemente, que, por sua vez, já excediam os 3,67% definidos no acordo de 2015. E, mais recentemente, nos primeiros dias de 2021, Ali Akbar Salehi, diretor da Organização de Energia Atómica do Irão, anunciava o enriquecimento de urânio a 20% ao ritmo de 17 a 20 gramas por hora
Esta medida surge como um impulso da linha dura de Teerão, que se opõe aos mais pragmáticos e moderados Javad Zarif e também ao Presidente Hassan Rouhani. No Irão, nesta matéria, o tema parece fugir-lhes das mãos. E, enquanto assim for, dificilmente Joe Biden voltará a ter um novo acordo para vender em casa.
Coreia do Norte: à espera de um sinal
No processo de transição da presidência dos EUA para Donald Trump, Barack Obama avisou o seu sucessor de que a Coreia do Norte viria a ser o seu “problema mais urgente”. E não foi para menos: 2017, o primeiro ano de Trump, foi marcado por 16 testes com mísseis balísticos, três dos quais invadiram o espaço aéreo do Japão, onde os alarmes soaram — literalmente. Outro teste foi ainda mais preocupante, por ter sido feito com um míssil com capacidade para conter uma bomba de hidrogénio. Só depois de tudo isto é que se deu uma das reviravoltas mais inesperadas da política internacional da última década: Donald Trump e Kim Jong-un anunciaram que estavam dispostos a falar. E, em teoria, a negociar.
Mas daquelas negociações pouco resultou. Na cimeira de Singapura, em junho de 2018, ambas as partes chegaram a um compromisso final vago e que de prático só teve a devolução de ossadas de soldados norte-americanos mortos e enterrados na Coreia do Norte. Na cimeira de Hanói, em fevereiro de 2019, a ausência de avanços levou a um fim abrupto da reunião, ficando para a História a imagem do banquete final e da mesa onde ninguém chegou a sentar-se.
Quatro anos depois da transição de Barack Obama para Donald Trump, não é claro, afinal, que relação é que Trump deixa a Joe Biden com o regime norte-coreano.
A partir de Pyongyang, Kim Jong-un pode aproveitar este momento de dúvida e impasse para agir. É esse o modus operandi norte-coreano: assustar para negociar. Em suma, bluff — muitas vezes, a meio de graves crises agrícolas e económicas. Agora, a braços com a pandemia da Covid-19, cujos efeitos na Coreia do Norte não são exatos, embora se saiba que o regime não esconde que também ali o vírus já chegou, Kim Jong-un pode voltar a dar sinais de que existe.
“A Coreia do Norte vai procurar dar um sinal à nova administração de Biden de que não se deve brincar com a Coreia do Norte, que deve continuar a ser um foco da política externa de Washington e que os EUA têm de negociar de boa-fé”, escreve na The Diplomat o especialista em segurança sul-coreano Lian Tuang Nah. De acordo com este autor, há quatro opções para o regime da Coreia do Norte ensaiar uma manobra de “galvanização nacional exibicionista”, que enumera do menos para o mais provável: “Um teste com uma ogiva nuclear, provocações militares contra a Coreia do sul, teste de um míssil balístico intercontinental e teste de vários mísseis de curto alcance”.
Durante a campanha, Joe Biden criticou abertamente a postura negocial de Donald Trump com Kim Jong-un, a quem chamou de “bandido”. “Os tempos de nos aconchegarmos a ditadores vão acabar”, prometeu o democrata. Assim, da parte de Biden, sobram sinais de que as possíveis provocações de Kim Jong-un poderão resultar num endurecimento da postura de Washington D.C.. Contudo, não é de ignorar que o secretário de Estado de Joe Biden, Antony Blinken, era uma das vozes mais ativas dentro da Casa Branca de Barack Obama a favor de negociações com o regime de Pyongyang. O estilo, porém, será forçosamente diferente daquele adotado por Donald Trump. “Antecipo que ele vai demonstrar abertura para conversações com a Coreia do Norte, mas vai exigir o cumprimento de medidas e não apenas momentos fotográficos”, disse à agência sul-coreana Yonhap Sue Mi Terry, ex-analista da CIA e atual investigadora do think-tank Center for Strategic and International Studies.
Até agora, Kim Jong-un e a máquina de propaganda norte-coreana ainda não reconheceram a vitória de Joe Biden. Com aparições públicas cada vez mais espaçadas, não é garantido que o ditador de Pyongyang venha a falar deste tema antes do habitual discurso de Ano Novo. Certo é que, em novembro de 2019, depois de Je Biden ter chamado “bandido” a Kim Jong-un, a agência de notícias do regime disse que o então candidato era um “cão raivoso” ao qual se deve “bater com um pau até à morte”. Primeiros sinais antes do alarme?
Venezuela: olhar para fora com olhos de dentro
Entre os países com uma relação conturbada com os EUA, foi da Venezuela que partiu uma das reações mais imediatas a felicitar o resultado das eleições. A vitória dos democratas foi declarada a 7 de novembro, um sábado. No dia seguinte, Nicolás Maduro aproveitou o seu programa dominical na televisão estatal venezuelana para saudar Joe Biden e Kamala Harris, dizendo que estes souberam responder “à esperança de uma imensa maioria”.
E, depois, disse o que nunca dissera a Donald Trump: queria estabelecer um canal de diálogo direto com a nova administração norte-americana.
“Trabalharemos com fé, com paciência, com a bênção de Deus, esperemos, para retomar canais de diálogo decentes, sinceros e diretos entre o futuro governo de Joe Biden e o governo legítimo e constitucional da Venezuela, a que presido”, disse. Esta foi, de resto, uma aspiração que voltou a reiterar a 8 de dezembro, dois dias depois das eleições que, com o boicote da oposição e sem o reconhecimento de grande parte da comunidade internacional, incluindo a União Europeia, deram ao regime venezuelano o controlo da Assembleia Nacional. “Esperemos que se instale um novo governo do senhor Joe Biden, esperamos que eles tenham tempo para pensar e esperamos que abram a possibilidade de comunicação e diálogo da Venezuela com os EUA.”
Ao mesmo tempo, a vitória de Biden também foi bem recebida pelas principais caras da oposição. Juan Guaidó felicitou o democrata e a sua vice-Presidente, afirmando a sua confiança de que a “próxima administração e o novo congresso” irá continuar a juntar-se na “luta para cumprir o nosso objetivo mútuo: libertar o povo venezuelano da ditadura”. A esta declaração, Juan Guaidó juntou ainda um agradecimento a Donald Trump e Mike Pence, destacando-lhes a “firmeza e determinação em enfrentar a ditadura de Maduro e os seus esforços para ajudar o nosso povo que vive hoje uma emergência humanitária”.
A partir de Madrid, também Leopoldo López, que está exilado em Espanha, afirmou que a vitória de Joe Biden e a sua aproximação poderá levar a uma postura mais unívoca em relação à Venezuela. “Há aí uma oportunidade”, disse aquele líder da oposição.
O que parece evidente é que a Venezuela não figura no topo das prioridades das política externa de Joe Biden. Perante o nó górdio que se tornou o conflito político em Caracas, cujo regime se tem mantido à tona com diferentes tipo de ajuda de Cuba (a nível dos serviços de informação), da Rússia e da China (financeira e humanitária) e também da Turquia e do Irão (importantes parceiros económicos, com a primeira a comprar-lhe ouro e o segundo a vender-lhe petróleo), é provável que a administração de Biden procure estreitar a sua posição com a da União Europeia e também com o Grupo de Lima, que junta 14 países do continente americano em busca de uma solução para as várias crises daquele país. Ao tomar esse caminho, os EUA poderiam prescindir de sanções unilaterais e passar a aplicá-las em bloco.
Contudo, se a Venezuela não é uma prioridade no que diz à política externa de Joe Biden, ela pode tornar-se, paradoxal mas também justificadamente, uma prioridade a médio-prazo no plano da política interna. Aqui, o foco reside no voto latino, em particular aquele que tem origem em Cuba e na Venezuela.
Perante as acusações da direita norte-americana de que o Partido Democrata é tolerante e, muitas vezes, ele próprio um veículo de políticas socialistas/comunistas, os eleitorados cubano e venezuelano tendem a votar mais em Donald Trump do que em Joe Biden. Como consequência, a Flórida foi facilmente conquistada pelo republicano. Se em 2016 venceu ali por apenas 112.911 votos (1,2 pontos percentuais sobre Hillary Clinton), este ano mais do que triplicou essa vantagem ao chegar aos 371.686 votos acima de Joe Biden, correspondendo a 3,36 pontos percentuais a mais do que o democrata.
Como fazer isso? Durante a campanha, Biden prometeu várias vezes que, ao contrário do de Donald Trump, estaria disposto a garantir o Estatuto de Proteção Temporária (TPS, na sigla inglesa) a todos os venezuelanos que cheguem aos EUA. Esse estatuto está previsto para situações em que o país de origem não seja considerado seguro, tanto pela existência de um desastre natural ou conflito armado. Os beneficiários do TPS poderão viver e trabalhar nos EUA enquanto o seu país de origem não for considerado seguro pelo Departamento de Segurança Interna.
“Ele nem sequer dá o TPS aos venezuelanos que fogem do regime opressivo de Maduro”, disse Joe Biden sobre Donald Trump durante a campanha. “Eu vou, mas temos de votar”, continuou então, num comício na Flórida junto de latinos. No final de contas, não votaram nele — mas isso não o iliba de, agora, cumprir o que prometeu.
Rússia: continuar o caminho de Trump, apesar de tudo
Em 2011, numa altura em que Moscovo e Washington D.C. tentavam dar uma última oportunidade à política de “restart” defendida por Barack Obama, Joe Biden visitou o Kremlin a convite de Vladimir Putin. Ali, de acordo com o que o então vice-Presidente viria a contar mais tarde à New Yorker, Biden fez teve direito a uma visita guiada do chefe de Estado russo. Atrás de Putin, e com a ajuda de um intérprete, não se coibiu de provocar o anfitrião. “As coisas que o capitalismo é capaz de fazer são incríveis, não são? É um escritório magnífico”, disse o norte-americano. Vladimir Putin riu-se e, de acordo com o relato de Joe Biden, este aproximou-se do russo e disse: “Senhor primeiro-ministro, estou a olhá-lo nos olhos e não creio que você tenha uma alma”. Vladimir Putin voltou a rir. E respondeu-lhe: “Entendemo-nos um ao outro”.
É, pois, uma relação antiga e difícil aquela que estes dois líderes se preparam para retomar. Depois das tentativas de “restart”, o regime russo entrou numa espiral repressiva dentro de casa (como meio de resposta às manifestações do final de 2011 e início de 2012) e num novo impulso expansionista fora das suas fronteiras. No caso da Crimeia, anexada à revelia da lei internacional, essa expansão foi mesmo literal. No caso da Síria, onde o exército russo socorreu Bashar al-Assad e o poupou a uma derrota quase certa, reforçou as suas capacidades militares. E sobra ainda o campo cibernético e da desinformação, com o Kremlin a financiar várias operações de que vão desde o soft power (com o canal Russia Today e a agência Sputnik) à disseminação de notícias falsas dirigidas a países adversários, da Europa aos EUA.
Apesar de brando no discurso e na metodologia perante Vladimir Putin, Donald Trump não desviou os EUA do regime de sanções que decidiu aplicar desde a anexação ilegal da Crimeira em 2014, era ainda Barack Obama Presidente dos EUA. E, do ponto de vista formal, Trump hostilizou a Rússia de duas formas.
A primeira, por não ter permitido a renovação do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (INF, na sigla inglesa) — um documento já em muito caduco, por ter sido assinado em 1987 e ter em vista a tecnologia militar de então, mas, ainda assim, simbólico. Mais importante, porque munido de maior valor prático, é o acordo New START, de 2010, que Donald Trump renovou em 2018 e que Joe Biden já disse estar disposto a renovar antes de este expirar, a 5 de fevereiro de 2021. Este poderá vir a ser, por isso, um dos seus primeiros gestos internacionais — ao que deverão ajudar os vários pedidos de Vladimir Putin para uma nova extensão, até aqui ignorados ou rejeitados por Donald Trump.
A segunda, por ter criticado recorrentemente o Nord Stream 2, o gasoduto que pode mais do que duplicar o abastecimento de gás natural da Rússia diretamente à Alemanha. Das críticas, Donald Trump passou mesmo às sanções, que aplicou especificamente aos navios utilizados na construção do gasoduto. Foi uma medida mal recebida em Berlim (aliada dos EUA na NATO) e ressentidas também em Moscovo. Aqui, Joe Biden acompanha e até precede Donald Trump, uma vez que já em 2016 dizia que aquele gasoduto era uma “má ideia” — opinião que é partilhada por várias capitais europeias. É, por isso, possível que mantenha essas sanções e Vladimir Putin, o homem “sem alma”, fique também sem gasoduto.