892kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Entrevista Sob-Escuta à psicóloga Rute Agulhas que, recentemente, foi nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para ser a coordenadora do grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas de abusos no seio da igreja Católica em Portugal. 16 de Maio de 2023 Alvalade, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
i

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Rute Agulhas. "Foi-me dito que tenho carta branca para fazer o que entender"

A coordenadora do grupo VITA tem plano a três anos mas diz que ficará "o tempo que for necessário". E garante que não lhe foi imposto qualquer limite de gastos para o apoio às vítimas de abusos.

A psicóloga Rute Agulhas coordena o Grupo VITA, que vai trabalhar no acompanhamento de vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica e que foi apresentado pela Conferência Episcopal Portuguesa em abril. Oficialmente, o VITA só começa a funcionar a 22 de maio. Mas, em entrevista ao Observador e à Rádio Observador — a primeira que concede depois de o seu nome ser formalizado —, Rute Agulhas avança que já começaram a chegar aos seis elementos que compõem o grupo executivo relatos de “algumas” vítimas que procuram ajuda psicológica.

A coordenadora do Grupo, que soma duas décadas e meia de trabalho na área dos abusos sexuais de menores, revela também que os primeiros passos para a constituição de uma bolsa de psicólogos que vão trabalhar junto de vítimas — e abusadores ou suspeitos de abusos — já deu os primeiros passos. Esta terça-feira, aliás, foi formalizado o anúncio junto da comunidade destes profissionais, que passam a poder candidatar-se a um lugar nesta bolsa.

Nalguns casos, as vítimas de abusos poderão necessitar de apoio psicológico durante longos anos. Ao Observador, Rute Agulhas garante que não lhe foi imposto pela Igreja qualquer limite de gastos financeiros. “Eu perguntei de forma muito clara se havia um teto e foi-me dito que não há teto”, garante. “Não me foi dito, em momento algum, que havia uma verba limite, que só poderíamos utilizar até X.”

Garante, também, que o objetivo do Grupo não passa por “branquear e esconder as situações” de abusos — e isso significa que sempre que tenham conhecimento de situações de abusos, essa informação será transmitida ao Ministério Público. “As pessoas têm de ser responsabilizadas pelos crimes que cometem e é importante que não se confunda um processo de ajuda terapêutica com uma desresponsabilização pelo crime”, sublinha.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao mesmo tempo, recusa a ideia de que tornar obrigatória para os clérigos suspeitos de abusos — ou que tenham comprovadamente cometido abusos — a frequência de sessões de apoio seja o caminho a seguir para evitar a reincidência nesses crimes. Pelo menos, nos casos em que o autor dos abusos não assuma as suas ações. “Com isso, não se evita a reincidência.”

[Veja aqui a entrevista a Rute Agulhas na íntegra:]

“Já estamos a receber contactos de algumas vítimas”

O seu nome é uma escolha direta do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas. Isso foi anunciado. Em que termos é que o convite, a proposta, lhe foram comunicados?
Recebi um telefonema do senhor D. Ornelas a dizer-me que gostaria muito que eu constituísse uma equipa, que coordenasse um novo Grupo com objetivos naturalmente distintos da Comissão Independente (CI).

E aceitou imediatamente?
Estava a conduzir. Parei o carro num sítio seguro para poder processar aquela informação. Era um sábado de manhã, lembro-me perfeitamente, ia a caminho do consultório. O que lhe disse na altura foi: ‘Muito obrigado pelo desafio, não estava à espera deste convite tão inesperado.’ Mas aceitei, não pedi qualquer tempo para pensar porque, ao mesmo tempo, achei que era um desafio que queria abraçar e que seria desafiante aceitar.

Não a preocupou a dimensão da missão que lhe estavam a confiar, tendo em conta o trabalho que foi desenvolvimento pela CI, pelas muitas notícias que foram saindo? Não se sentiu de alguma forma esmagada por essa responsabilidade?
Não. Se calhar é um problema meu, mas tendo a ver as coisas pelo lado positivo, pelo lado do desafio. Até ao momento, nunca senti que este convite e esta coordenação fosse uma ameaça.

Perguntava até pelo peso do tema que tem em mãos e da carga que isto representa. Já se arrependeu, nestas semanas, de ter aceitado este convite?
A carga de trabalho é mesmo muita, é verdade. E ando a dormir muito pouco, também é verdade. Mas quero acreditar que esta é uma primeira fase, naturalmente mais exigente. O peso do tema não é um peso para mim porque é um tema em que sempre trabalhei desde que terminei a minha licenciatura em Psicologia, há 25 anos. Comecei logo a trabalhar no abuso sexual de crianças e jovens. Portanto, sei que é um tema pesado…

"Ficaremos o tempo que for necessário, e também me foi dito que ficaríamos o tempo que entendêssemos que era necessário."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

Com muito mais exposição pública.
Sim, com exposição mediática que também sabia que iria haver, para o melhor e para o pior. Mas encarei sempre e continuo a encarar isto — toda a equipa continua a encarar — como um grande desafio que temos entre mãos e estamos todos muito motivados.

Já disse em relação ao Grupo que coordena que ele funcionará de forma autónoma, isenta e independente face à Igreja. Como é que isso se garante na prática?
Da mesma forma como a Comissão Independente também funcionou. É um Grupo pensado e pedido pela Igreja. Quer o doutor Pedro Strecht quer eu, por acaso, estávamos ambos na comissão diocesana de Lisboa, uma coincidência. Esta isenção e esta autonomia advêm da total liberdade que nos tem sido dada desde o início. Isso foi algo que, naquela telefonema do sábado de manhã, me foi dito de forma clara: que eu teria carta branca para fazer o que entendesse, para escolher as pessoas que entendesse e para seguirmos o caminho que entendêssemos pertinente. O único pedido que me foi feito nesse primeiro contacto foi que o foco fosse o acompanhamento das vítimas. Naturalmente, um pedido a que acedi, porque é isso que nos faz sentido, é o nosso foco: acolher, escutar, acompanhar, encaminhar, criar respostas para as vítimas. E, depois, as outras dimensões do Grupo, que também já tivemos oportunidade de apresentar, que são complementares, não são menos importantes. Mas o nosso foco são as vítimas.

Considera que haverá essa perceção de autonomia e independência entre as vítimas, tendo em conta que o próprio D. José Ornelas já veio publicamente reiterar várias vezes que há uma diferença de caráter entre esta comissão e a Comissão Independente anterior? Apesar da autonomia, terá sempre uma articulação com as estruturas locais da Igreja. Acredita que possa haver algum receio da parte das vítimas de contactar o Grupo achando que, na verdade, a comissão é uma estrutura da Igreja?
Este Grupo — não lhe chamamos comissão exatamente para fazer uma distinção face à Comissão Independente — é igualmente independente, isento e autónomo, tal como a Comissão Independente. No entanto, têm objetivos diferentes. E um dos objetivos que temos a médio prazo é de que deixe de se sentir necessidade em Portugal de haver grupos independentes e que as pessoas passem a confiar na Igreja com as suas estruturas, nomeadamente as Comissões Diocesanas. Também as estruturas que já existem em alguns institutos religiosos — os Jesuítas, só para dar um exemplo, ainda que existam outros. Que haja essa confiança e que não seja necessário para sempre a necessidade de um grupo autónomo como o nosso.

Pretende-se que estes grupos se tornem dispensáveis.
Costumo dizer mas é verdade: fizemos um plano a dois, três anos. Ficaremos o tempo que for necessário, e também me foi dito que ficaríamos o tempo que entendêssemos que era necessário. Mas se daqui a dois, três ou quatro anos sentirmos ou nos disserem — a comunidade em Portugal, as pessoas, não a Igreja — que se calhar já não faz sentido, porque as respostas estão criadas, as equipas que existem estão capacitadas, os recursos estão cá fora…

Entrevista Sob-Escuta à psicóloga Rute Agulhas que, recentemente, foi nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para ser a coordenadora do grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas de abusos no seio da igreja Católica em Portugal. 16 de Maio de 2023 Alvalade, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Mas acha que esse momento vai chegar? A própria dra. Rute Agulhas já assumiu de alguma forma as vítimas podem ter reservas em recorrer ao Grupo VITA. Estava a falar na “confiança”. Como é que se estabelece a confiança das vítimas no Grupo?
A confiança é um processo que demora. Não acontece de um dia para o outro só porque nós aparecemos e dizemos que podem confiar em nós. Sabemos isso e sabemos que pode haver para muitas pessoas uma dificuldade em confiar e se calhar precisam de nos ir ouvindo, ou perceber um bocadinho melhor como vamos trabalhando. Diria que temos aqui um sinal positivo: já estamos a receber contactos de algumas vítimas, sendo que, oficialmente, começamos a trabalhar no dia 22 de maio.

Já há vítimas a contactar-vos para apresentar o seu testemunho? Sabe se são vítimas que já tinham falado com a Comissão Independente?
Algumas sim, outras não.

E são várias vítimas?
São várias vítimas.

Há um número que possa partilhar?
Não, esse número será depois apresentado oportunamente. Não faz sentido apresentar um número nesta fase.

Mas para termos uma noção: estamos a falar de algumas dezenas de pessoas, de casos mais pontuais?
O trabalho ainda é muito incipiente. Estamos a preparar a estrutura de acolhimento e resposta para no dia 22 ligarmos o telemóvel, que vai estar desligado até dia 22. Já temos o email que foi anunciado. E é através desse email que os pedidos e contactos nos têm chegado, porque efetivamente qualquer pessoa pode ir ao email e escrever-nos uma mensagem e eu diariamente vejo o email. Portanto, apesar de ainda estarmos longe de dia 22, comecei a fazê-lo logo a partir do dia 27 de abril, no dia seguinte à apresentação do Grupo. Não vou concretizar números. Também não estaríamos à espera de números avassaladores ainda antes do dia 22 de maio.

Mas têm algum tipo de perspetiva do universo que querem atingir? Sabemos que do trabalho da Comissão Independente resultaram 512 denúncias apresentadas e um universo de 4815 possíveis vítimas. Estabeleceram algum tipo de objetivo a esse respeito?
Não, porque sentimos que esse é um grande ponto de interrogação que temos pela frente. E, por isso, um dos objetivos que nos propomos, que é fazer um balanço do trabalho do VITA a cada seis meses — o primeiro já em dezembro — é exatamente no sentido de irmos pensando sobre o que está a acontecer. Se em dezembro tivermos muitos casos, ou poucos casos, que tipo de casos temos, que necessidades vão sendo sentidas…

"Muitas dessas pessoas apenas precisavam de um momento para partilhar a ventilar, quebrar o segredo. Pode acontecer, e é uma realidade que não me espantaria, que muitas ou algumas destas pessoas sentissem que estava feito e não necessitariam de nada mais."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

O que seriam muitos ou poucos casos?
Não sei. Acho que um caso já é demais. Mas não temos nenhuma estimativa em termos quantitativas. Estamos mais preocupados em dar uma resposta qualitativa e ter uma estrutura minimamente pensada para podermos ajudar estas pessoas.

Focando nos 512 testemunhos que chegaram à CI. Estamos a falar de, pelo menos, 512 pessoas que poderão ter alguma coisa a dizer ao Grupo VITA. Têm a expectativa de que pelo menos essas 512 pessoas possam nesta “fase operativa” contactar-vos?
Não tenho a expectativa de que essas 512 pessoas nos contactem de imediato. Porque, daquilo que percebi do relatório da Comissão Independente, e daquilo que foi partilhando, muitas dessas pessoas apenas precisavam de um momento para partilhar a ventilar, quebrar o segredo. Pode acontecer, e é uma realidade que não me espantaria, que muitas ou algumas destas pessoas sentissem que estava feito e não necessitariam de nada mais.

Que estaria concluído o seu processo. 
E isso, para algumas pessoas, pode ser suficiente. Para todas aquelas para as quais isso possa não ser suficiente, ou para todas aquelas que não falaram com a CI e agora desejem fazê-lo, é importante que saibam que estamos aqui preocupados em acolher e escutar, perceber as necessidades que as pessoas possam ter e tentar, na medida do possível — e por isso estamos a articular-nos com todas as entidades a nível nacional que possamos imaginar —, ativar um sistema de resposta que vá o mais possível ao encontro das necessidades das pessoas.

Com o Grupo VITA, uma lógica de testemunhos anónimos não tem grande cabimento.
Não vamos fechar a porta a ninguém. Um telefonema, ainda que anónimo, será ouvido e escutado. E um email, ainda que anónimo, será respondido. Isso é óbvio.

Mas há limitações no apoio que podem dar nesses casos.
Haverá limitações, se não soubermos quem é a pessoa, onde vive e de que precisa.

Ouça aqui a entrevista em áudio no Sob Escuta da Rádio Observador.

Rute Agulhas ficará “o tempo que for necessário”

“Estou surpreendida pela positiva com todas as entidades que temos contactado”

Na apresentação do Grupo VITA, disse que um dos grandes objetivos é criar mecanismos de prevenção de futuros abusos e capacitar as dioceses para esta prevenção. Mas ao longo dos últimos dois, três anos, também temos percebido que a Igreja Católica em Portugal não fala a uma só voz sobre este assunto. Temos, aliás, bispos com visões bastante distintas. Tem confiança de que haja abertura, não apenas de D. José Ornelas mas dos 21 bispos diocesanos, para acolher esta capacitação que procuram dar às equipas?
Como disse, funcionam a diferentes vozes, a diferentes ritmos. As próprias comissões diocesanas também tem feito caminhos diferentes, uma mais rápidas, outras menos, mudanças nas equipas, enfim, tudo isso acaba por causar aqui muitas vezes algum ruído. E por isso temos comissões diocesanas em níveis um pouco diferentes no trabalho que já foi feito. O que quero acreditar — e por isso temos reuniões agendadas com todas as comissões diocesanas, sempre em articulação com a equipa de coordenação nacional das comissões diocesanas — é que, pouco a pouco, o caminho faz-se caminhando. Não quero ser irrealista utópica a achar que num mês temos tudo feito e estamos todos muito agilizados. Em Portugal, não conheço nenhum sistema que seja assim tão ágil e tão bem oleado. Todos eles precisam de algumas melhorias e este também precisará.

Percebemos que há resistências de algumas comissões diocesanas. Como é que espera alterar essa realidade? É uma questão de mudança de responsáveis, da própria estrutura da Igreja?
Eu, que também fiz parte de uma comissão diocesana, conheço bem essa realidade. Acho que é muito importante sublinhar que o Grupo VITA não vem substituir-se a ninguém, no sentido de dizer que ‘vocês, comissões diocesanas, são incompetentes, não sabem, não têm resposta, não estão devidamente capacitadas e agora vem um Grupo autónomo que assegurará essas respostas’.

Mas admite que se possa chegar a essa conclusão? À conclusão de que, dadas as resistências das vítimas em contactar as comissões diocesanas, aquele modelo simplesmente não funciona?
Vamos tentar melhorar este modelo e, por isso, enquanto as pessoas não tiverem a devida confiança — e percebemos que possam não ter — para ir junto de uma comissão diocesana, podem vir até nós e nós acompanharemos a sua situação. Penso que é sempre muito importante que haja uma cultura de muita abertura e diálogo com as comissões diocesanas. É isso que estamos a tentar fazer desde o primeiro minuto no sentido de perceber que as comissões diocesanas têm vindo a caminhar a diferentes ritmos, perceber onde está cada uma delas, que necessidades têm, por que profissionais é constituída. Sabemos que, na sua maioria, são profissionais da área da Psicologia, do Direito, da Psiquiatria, profissionais que muitas vezes têm uma carreira com o dobro da duração da minha, experientes. É importante perceber quais as necessidades.

"Não tenho encontrado resistências, pelo contrário. Estou surpreendida pela positiva com todas as entidades que temos contactado em todo o país."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

E como foi a sua experiência na comissão diocesana? Sentiu autonomia para trabalhar, que o facto de haver naquela altura membros do clero na comissão era um obstáculo?
A nossa, de Lisboa, foi a primeira a ser criada. E pouco tempo depois tivemos a pandemia. Fomos criados na Páscoa de 2019, arrancámos lentamente, éramos a primeira comissão a existir, a tentar perceber o modelo de intervenção, o que seria importante, como nos iríamos articular uns com os outros. Depois, veio a pandemia. Houve comissões que conseguiram continuar a funcionar de forma mais ágil durante a pandemia, a nossa sentiu algumas dificuldades. E sentimos sempre que havia autonomia nos processos de decisão, apesar de termos os membros da Igreja dentro da comissão, algo que recentemente mudou. Vejo esta situação como um caminho de confiança que se faz ao longo do tempo. E a confiança também se conquista, também temos de saber mostrar às pessoas e aos institutos religiosos o que queremos, como queremos fazer, qual é a nossa disponibilidade para ouvir sugestões. Ninguém sabe tudo e estamos totalmente disponíveis para ouvir, acolher sugestões. E temos já um conjunto de diligências marcado não só com as comissões diocesanas todas do país e outras entidades.

Em entrevista ao Observador, o bispo D. Américo Aguiar relatava uma experiência bastante curiosa: as vítimas que recorreram à comissão de Lisboa para relatar os seus casos escolheram falar com um bispo. Agora que já não há membros do clero nas comissões diocesanas, por um lado, a Igreja fez passar a mensagem que saiu um potencial obstáculo à confiança dessas pessoas nas comissões, mas, por outro lado, este relato até nos mostra que as pessoas quisessem falar diretamente com a hierarquia da Igreja…
Mas essa porta mantém-se aberta, pelo que percebo. Se chegar alguém nós, ou a uma comissão diocesana, e se se perceber que falar com o bispo pode ser facilitador para aquela pessoa, não vejo essa porta como estando sequer encostada, quanto mais fechada. Portanto, encaminha-se. E por isso dizia que é importante estarmos articulados e trocarmos informações entre todos para perceber quais podem ser os melhores canais em função das necessidade de cada pessoa. Porque cada pessoa é um mundo. Todos estão preocupados em dar a melhor resposta.

Já reuniu com os bispos? Tem encontrado resistências ao seu trabalho?
Ainda não reuni com os bispos todos. Estamos a fazer isto de forma faseada. Vou ter em breve uma reunião com alguns deles e o objetivo é reunir com todos.

Mas tem encontrado resistências?
Não, pelo contrário. Estou surpreendida pela positiva com todas as entidades que temos contactado em todo o país.

Já falámos sobre a intenção de que, com o tempo, deixe de ser necessário que haja estruturas independentes para capacitar a Igreja para este problema. Acredita que isto acontecerá? E em que horizonte temporal?
Começámos a fazer um plano a três anos e sentimos necessidade de fazer um balanço público de seis em seis meses, até para redefinir eventualmente o caminho, em função do que for encontrando. Queremos apostar numa intervenção baseada na evidência, o que significa que vamos avaliando e monitorizando o que formos fazendo para perceber se estamos a seguir o caminho certo. Isso implica um reajuste eventual a meio do caminho, podemos repensar as estratégias, podemos deparar-nos com necessidades ou obstáculos que não antecipámos e que exijam a revisão destas estratégias.

Entrevista Sob-Escuta à psicóloga Rute Agulhas que, recentemente, foi nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para ser a coordenadora do grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas de abusos no seio da igreja Católica em Portugal. 16 de Maio de 2023 Alvalade, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Que obstáculos prevêem poder encontrar pelo caminho?
Antecipamos alguns obstáculos no âmbito da investigação, em que vamos precisar de chegar às pessoas, para poder estudar o impacto que estas situações têm nas vítimas, como é que a sexualidade é vivida no contexto da Igreja. Isso implica contacto com algumas pessoas e sabemos que esse contacto pode ser mais difícil, pode haver maior resistência de algumas pessoas ou, até, entidades em colaborar.

Nesse caso, vão contar com o apoio da própria Conferência Episcopal, se alguma entidade dentro da Igreja recusar colaborar convosco?
Vamos pedir sempre ajuda nesse sentido. Porque quanto mais conseguirmos estudar este fenómeno, também mais informação temos, logo as nossas intervenções (do próprio país) serão mais adequadas e eficazes, à partida.

Disse que teve carta branca para fazer este caminho, que ainda é curto. O início do trabalho do Grupo VITA surge no mesmo momento em que D. José Ornelas vê renovado o seu mandato à frente da CEP. Teme que, de alguma forma, uma mudança dos protagonistas possa dificultar o vosso trabalho, ou estão tranquilos a esse respeito?
Quando o líder, o coordenador, o presidente de alguma estrutura muda, muitas coisas mudam. Normalmente, as coisas não ficam exatamente na mesma. De qualquer maneira, a nossa isenção, independência, esta capacidade que temos tido de tomar decisões de forma livre, sem ter que reportar à Igreja é algo de que não vamos abdicar.

"Acho que se virou uma página neste livro, entrámos noutro capítulo. Não significa que, por vezes, não tenhamos de olhar as páginas anteriores. Voltar ao ponto de início acho muito difícil."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

Falava até numa perspetiva mais alargada. O vosso trabalho não começa nem acaba naquilo que fazem com as vítimas, também passa por aquilo que vão tentar transmitir às comissões diocesanas. Teme que o trabalho que vão desenvolver nesse campo possa sofrer algum retrocesso no futuro ou acredita que o caminho que está a ser traçado é irreversível?
Vejo um caminho com avanços e recuos. Como qualquer processo de mudança, não é linear. Aliás, quando os processos são lineares, nós desconfiamos. Sabemos que às vezes é preciso dar um passo atrás para dar dois à frente. Antecipamos aberturas diferentes, porque estamos a falar de uma amostra enorme de pessoas.

Mas admite que este trabalho possa voltar ao ponto em que estava em 2019?
Isso acho que não. Acho que se virou uma página neste livro, entrámos noutro capítulo. Não significa que, por vezes, não tenhamos de olhar as páginas anteriores. Voltar ao ponto de início, acho muito difícil.

“Queremos ouvir os jovens que conhecem o mundo da Igreja, perceber que sugestões têm”

Falando sobre o trabalho de apoio às vítimas, foi anunciado na apresentação deste Grupo que uma das grandes apostas seria o contacto com a Ordem dos Médicos e com a Ordem dos Psicólogos, no sentido de criar uma bolsa de profissionais preparados para prestar apoio às vítimas de abuso. Este contacto já está formalizado?
Esse contacto já foi feito e está a caminhar a diferentes ritmos, como é expectável. Em relação à Ordem dos Psicólogos, hoje, dia 16 de maio, todos os psicólogos já têm informação sobre esta “bolsa” [a informação foi publicada na “bolsa de emprego”, acessível a todos os profissionais desta área].

Todos os psicólogos podem [aderir], mediante o cumprimento de determinados critérios. Definimos critérios obrigatórios e requisitos preferenciais, onde apresentamos o que vamos pedir a estes profissionais. O Grupo VITA compromete-se a assegurar formação inicial nesta área da violência sexual, quer na área das vítimas quer na dos agressores, formação contínua e supervisão regular. Hoje, abriu esta bolsa para os psicólogos. Vão ter algum tempo, uma ou duas semanas, para responder, a Ordem vai enviar-nos essa informação processada, com os respetivos currículos, e vamos perceber quem são estes colegas, em que região do país estão. Para nós, é importante mapear todos os concelhos de Portugal.

Havia uma preocupação com a capacidade de cobrir todo o território. Mantêm essa preocupação?
Naturalmente, temos de pensar nas pessoas que estão mais distantes, nas ilhas, zonas com menos acesso de transportes, mais isoladas. O contacto com a Ordem dos Psicólogos foi muito célere e contamos ter connosco a identificação destes profissionais que podem constituir a bolsa de psicólogos em junho e, ainda em junho, estes profissionais, ainda antes de irem de férias, vão ter à sua disposição uma formação inicial assegurada pelo Grupo VITA.

E quando se espera que possam “ir para o terreno”, começar a acompanhar as vítimas?
Ainda este verão.

Estamos a falar de um, dois meses.
Sim. Na área da Psicologia, sim. A Ordem dos Médicos e as respetivas especialidades também foram contactados — Psiquiatria e Psiquiatria de Infância e Adolescência —, temos já uma reunião agendada com o colégio de Psiquiatria, se não estou em erro, para a semana. São muitas reuniões, não sei a data, mas é muito em breve. Ainda estamos à espera de resposta do colégio de Psiquiatria de Infância e Adolescência. É um processo que não está a ser tão célere mas, de alguma forma, as respetivas ordens também têm ritmos diferentes. Fico satisfeita por já conseguirmos ter esta resposta a andar da Ordem dos Psicólogos, ter reunião com colégio de Psiquiatria e aguardo com muita expectativa resposta do colégio de Psiquiatria de Infância e Adolescência.

E contactos com outras instituições? O relato que nos chegou da CI foi o que de sentiam alguma dificuldade em obter resposta por parte do poder local, das autarquias. Tem sentido a mesma dificuldade?
Contactámos todas as câmaras do país e a agenda dos elementos do Grupo já não tem quase vaga porque todas as câmaras estão a responder de forma muito imediato, manifestando a sua total disponibilidade para nos ajudarem não só na divulgação, no acompanhamento em identificar as respetivas estruturas locais e que podem ser mais valia para estas situações. O feedback das câmaras está a ser muito positivo. Estou muito surpreendida pela positiva, confesso que não estava à espera desta reação tão boa.

Tem alguma explicação para essa diferença face ao relato da CI?
Talvez, não sei. Podemos pensar na CI como tendo, de alguma forma, aberto caminho. Quando se vai à frente, a abrir caminho, temos mais obstáculos.

E já houve críticas públicas ao silêncio das autarquias.
Se calhar, temos o trabalho facilitado por essa via. Estamos também a contactar outras entidades que têm estruturas de atendimento a vítimas para perceber que estruturas existem, quem já tem formação ao nível da violência sexual, se essas precisam de mais formação ou supervisão, que nós asseguramos, se há outros profissionais que ainda não tenham muita formação mas querem adquiri-la, estamos disponíveis para formar.

E todo esse trabalho vai cair nos ombros dos elementos do Grupo?
Nesta fase, sim.

E é possível dar resposta a dezenas, centenas de pedidos de formação?
A formação vai acontecer em pequenos grupos, a supervisão em grupos mais pequenos. Nesta primeira fase, de arranque, estamos a contar com os seis membros do Grupo executivo.

"A nossa ideia é criar uma bolsa em articulação com as ordens profissionais. Essa é uma bolsa externa, que vai ser recrutada, formada e supervisionada, a quem a Igreja vai pedir ajuda."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

O Grupo pode vir a ser alargado?
Pode vir a ser alargado. Ou então, e talvez seja mais provável, como temos um grupo consultivo com três consultores, que vemos como um grupo aberto e dinâmico, é muito provável que seja aqui que possam vir a surgir novos especialistas nas mais diversas áreas e que vamos articulando e a quem vamos pedindo ajuda em função das necessidades. Queremos também envolver os jovens, creio que é importante sublinhar isso. Porque o nosso foco são as crianças e os jovens, não apenas os adultos sobreviventes que já vivenciaram uma situação de violência sexual no passado. Temos de pensar nas crianças e jovens que agora podem estar a viver uma experiência e temos de pensar como prevenir. E queremos ouvir os jovens que conhecem o mundo da Igreja, que estão nos escuteiros, nos grupos de jovens, na catequese, enfim. Ouvi-los, perceber que sugestões têm para nos dar.

“As críticas à bolsa de psicólogos traduzem uma desconfiança relativamente aos próprios profissionais”

A ideia da “bolsa de psicólogos” tem vindo a pairar no contexto da Igreja nos últimos meses. A ideia inicial parecia ser a de criação de uma bolsa de psicólogos dentro da Igreja, impulsionada pelas próprias comissões diocesanas, e foi alvo de algumas críticas, inclusivamente pelo psicólogo Ricardo Barroso, que é membro do Grupo VITA. Em abril, já foi apresentada uma ideia diferente: serem as ordens profissionais e não a Igreja a criar uma bolsa. Que discussão houve no Grupo VITA, e também com a Conferência Episcopal, para que se passasse da primeira ideia para o modelo definitivo?
Não houve discussão absolutamente nenhuma. Simplesmente, cheguei à Conferência Episcopal, algum tempo antes, quando fui apresentar o projeto — se não estou em erro, dia 17 de abril, uma semana antes da apresentação pública —, e apresentei a nossa ideia enquanto Grupo VITA. A nossa ideia é criar uma bolsa em articulação com as ordens profissionais. Essa é uma bolsa externa, que vai ser recrutada, formada e supervisionada, a quem a Igreja vai pedir ajuda.

Mas é uma ideia que contrasta com aquela primeira versão.
Contrasta, mas não veio ao de cima esta questão de ser contrastante ou não. Foi imediatamente aceite. Aquilo que eu sei, e tenho também já uma nova reunião agendada com a equipa de coordenação das comissões diocesanas, é que de facto a equipa de coordenação tinha já começado a encetar alguns movimentos, alguns contactos, no sentido de identificar esses profissionais. Ora, esses profissionais também estão nas respetivas ordens profissionais. São psicólogos, psiquiatras ou psiquiatras da infância e da adolescência. O que nós vamos tentar é cruzar esta informação e perceber que profissionais, das três grandes áreas — vá, duas, psiquiatria e psicologia —, é que estão disponíveis para colaborar, que necessidades é que sentem. Portanto, haver aqui um trabalho conjunto.

Mas parecem-lhe razoáveis as críticas que foram feitas à ideia de criar uma bolsa de psicólogos dentro da Igreja?
Percebo a crítica. Mas, ao mesmo tempo, também traduz aqui uma desconfiança relativamente aos próprios profissionais. Eu, enquanto psicóloga, trabalhando no contexto da Igreja ou no contexto de um clube de futebol, ou trabalhando num consultório privado, tenho o dever ético e deontológico de me reger pelos mesmos princípios e por fazer o meu trabalho da mesma forma.

As vítimas é que poderiam não ter essa perceção.
Percebo isso. Percebo isso. E, portanto, talvez por se perceber também isso, houve esta aceitação imediata, como digo, de quando apresentei esta nossa proposta: uma bolsa em articulação com as ordens.

Aos bispos. Os bispos concordaram?
Aos bispos todos, sim.

"Temos, depois, também uma franja importante de pessoas que, nunca tendo cometido um crime, têm fantasias eróticas, masturbam-se com imagens de crianças na cabeça, é nelas que pensam. Há todo um conjunto de pensamentos, imagens, que não são crime, mas que são um fator de risco muito significativo — e que pode passar ao ato"
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

Este é um modelo que dissipa eventuais dúvidas que possa haver sobre a idoneidade, digamos assim, dos profissionais?
Talvez mais neutro, mais objetivo. Acaba por ser facilitador da confiança — o tal processo que nós queremos traçar.

O Grupo VITA tem aqui uma particularidade: vão trabalhar junto das vítimas, vão apoiar as vítimas, mas também se predispõem a trabalhar com os autores, com os suspeitos de abusos. Esta adesão será sempre voluntária do lado dos suspeitos ou autores de abusos?
Sim. O objetivo, quando pensamos em trabalhar com pessoas que cometeram ou estão em risco de cometer crimes sexuais, é no fundo tendo sempre como meta a proteção das crianças e dos jovens. Porque, se já cometeram um crime, e forem de alguma forma ajudados a não reincidir, outras crianças estarão a ser protegidas. E temos, depois, também uma franja importante de pessoas que, nunca tendo cometido um crime, têm fantasias eróticas, masturbam-se com imagens de crianças na cabeça, é nelas que pensam. Há todo um conjunto de pensamentos, imagens, que não são crime, mas que são um fator de risco muito significativo — e que pode passar ao ato. Portanto, estas pessoas, também é muito importante que sintam que há uma porta que se abre, que há um caminho de ajuda, também. Portanto, nós definimos esta intervenção nesta outra área, com as pessoas que cometeram ou podem vir a cometer crimes sexuais, chamando-lhe, no fundo, uma intervenção preventiva — vamos prevenir a passagem ao ato de quem nunca passou —, e uma intervenção mais intensiva, para quem já tenha cometido, mas quer, de alguma forma, ser ajudado a não reincidir.

Creio que já a ouvi, ou li, dizer que nos casos em que tenham contacto com abusadores, sentirão sempre a responsabilidade de reportar essa informação ao Ministério Público. Confirma?
Naturalmente que sim. O objetivo não é, de todo, branquear e esconder as situações. Pelo contrário. As pessoas têm de ser responsabilizadas pelos crimes que cometem e é importante que não se confunda um processo de ajuda terapêutica com uma desresponsabilização pelo crime. A pessoa deve ser responsabilizada, tem de ser responsabilizada; e, em paralelo, deve ter a possibilidade de beneficiar de um processo de ajuda psicológica. São intervenções que se complementam. Uma não substitui a outra.

"Impor uma resposta pode acabar por ser contraproducente, porque tem de haver o mínimo de reconhecimento da situação, do crime cometido, dos comportamentos cometidos, mesmo que depois esses comportamentos possam ser distorcidos, possa haver uma leitura distorcida dos mesmos."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

“Os programas de apoio normalmente implicam algum grau de voluntariado da pessoa”

Considera que a Conferência Episcopal, de alguma forma, deveria criar uma regra que obrigasse os suspeitos da prática de abusos ou abusadores confirmados a frequentar sessões de apoio, a recorrer ao Grupo?
Esse carácter de imposição de uma resposta pode acabar por ser contraproducente, porque tem de haver o mínimo de reconhecimento da situação, do crime cometido, dos comportamentos cometidos, mesmo que depois esses comportamentos possam ser distorcidos, possa haver uma leitura distorcida dos mesmos. Mas, para haver um processo de ajuda, a pessoa tem, pelo menos, de reconhecer algo.

E isso não é possível se a procura do Grupo for tornada obrigatória?
Coerciva? Há a probabilidade de a pessoa nos chegar lá e dizer “eu estou aqui porque sou obrigado, não fiz nada”.

E com isso não se evita a reincidência, por exemplo.
Não, com isso não se evita a reincidência. Trabalhar nesta área específica implica perceber as motivações da pessoa, perceber toda a sua trajetória de desenvolvimento e ao nível do desenvolvimento psicossexual, perceber os pensamentos, as fantasias, as distorções cognitivas, as crenças. Implica avaliar e intervir num conjunto de dimensões que, se a pessoa diz “eu não fiz nada”, não é possível trabalhar.

E por essa lógica, também aplicar consequências, afastamentos, algum tipo de penalização, para quem não procure o Grupo, também não faria grande sentido?
Nós não queremos ser vistos como um grupo coercivo, “agora vais de castigo para o Grupo VITA”. Não queremos isso, de todo. O Grupo VITA deve, e queremos que seja visto, como um grupo de ajuda.

Isso poderia ajudar era, do lado das vítimas, à perceção de que, de facto, se está a trabalhar proativamente para evitar a reincidência, por exemplo.
Mas estes programas normalmente implicam algum grau de voluntariado da pessoa. Temos outras situações, por exemplo outro tipo de modelos. Por vezes temos agressores de violência doméstica que também dizem que são inocentes, que não cometeram nada, mas são obrigados a frequentar determinado tipo de grupo ou de apoio. O que acontece muitas vezes é que estas pessoas acabam por, algumas, de facto beneficiar bastante desse tipo de ajuda — até do ponto de vista do desenvolvimento de competências pessoais, sociais. Agora, daquilo que nós sabemos do ponto de vista da literatura para os agressores sexuais é que isso não chega. Portanto, tem de haver um nível de reconhecimento. Pode ser mínimo. Por exemplo: “Ok, eu até fiz isto, mas foi a vítima que provocou”; “Estava bêbado”; “A culpa não foi minha porque foi a pessoa que se meteu no meu caminho.” Há uma total desresponsabilização.

Mas há o reconhecimento de uma prática que é ilegítima.
Mas há o reconhecimento de que “fiz isto”. “Eu fiz isto” ou até “eu fiz isto, mas eu até acho que isto é correto, porque isto é dar educação sexual a uma criança ou a um jovem”, “prepará-la para a vida adulta”, como eu recentemente ouvi um agressor dizer: “Isto é uma preparação para a vida adulta.” Portanto, pode haver este conjunto de distorções, de ideias distorcidas sobre o ato, e isso é trabalhável, pode ser trabalhável. Mas tem de haver o reconhecimento daquele comportamento. “Eu não fiz nada”, “sou completamente inocente”, é difícil.

O reconhecimento da simples prática — não é preciso que ela seja vista como algo ilícito, é preciso reconhecer que se fez algo.
Exatamente. É considerado o nível de reconhecimento mais baixo, que é: “Eu reconheço o comportamento, mas não me reconheço como responsável, faço até uma atribuição externa dessa responsabilidade, ao álcool, à vítima, etc., ou até vejo aquele comportamento como desejável.”

E nesses casos em que esse primeiro passo é dado, em que o abusador reconhece que praticou algum tipo de ato, não se poderia aplicar a tal medida coerciva e obrigar sacerdotes a frequentar uma sessão de apoio junto do Grupo?
É algo que tem de ser pensado, até porque a intervenção específica com agressores sexuais no contexto da Igreja é algo que ainda está muito pouco estudado. Por isso, um dos grandes objetivos do Grupo VITA é investigar a vivência da sexualidade neste contexto, tentar perceber em que medida é que os modelos de intervenção que têm vindo a ser testados com agressores sexuais noutros contextos podem ser aplicados ao contexto específico da Igreja. Neste momento, acho que é prematuro estar a dizer sim ou não a esse tipo de pergunta. O que estamos sempre a querer — e isso é um objetivo que é muito claro para nós — é ir aprendendo à medida que vamos trabalhando, também na perspetiva de recolher evidência e perceber, fruto dessa evidência, qual é que poderá ser o melhor caminho.

"Eu perguntei de forma muito clara se havia um teto e foi-me dito que não há teto. Naturalmente, devíamos, como é óbvio, fazer as coisas com bom senso e pensando em quais é que são as prioridades das diversas necessidades, mas não me foi dito, em momento algum, que havia uma verba limite, que só poderíamos utilizar até X."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

“Não me foi dito que havia uma verba limite, que só poderíamos utilizar até X”

A Conferência Episcopal já disse que pretende garantir que ninguém fica sem apoio por dificuldades financeiras, que vai assegurar o apoio a todas as vítimas, os custos com as consultas e deslocações, calculo também que vá remunerar os profissionais que vão integrar a bolsa e também os que, não integrando a bolsa, prestem serviço a estas vítimas. Foi apresentado ao Grupo VITA alguma verba limite para este programa alargado?
Não.

Tem cheque em branco por parte da Igreja?
Eu perguntei de forma muito clara se havia um teto e foi-me dito que não há teto. Naturalmente, devíamos, como é óbvio, fazer as coisas com bom senso e pensando em quais é que são as prioridades das diversas necessidades, mas não me foi dito, em momento algum, que havia uma verba limite, que só poderíamos utilizar até X.

Mesmo com os custos associados à própria comissão, não recebeu nenhuma indicação?
Não.

Imagine uma vítima aqui do território da diocese de Lisboa, onde estamos, que aborde o Grupo VITA e que precisa de apoio. O financiamento do pagamento das consultas, transportes, seja do que for, vai ser feito por que via? É pelo Patriarcado de Lisboa? É por um fundo constituído pela Conferência Episcopal?
Acho que vai ser por diocese. De qualquer das maneiras, ainda vou ter uma reunião esta semana com alguns bispos exatamente para clarificar algumas questões muito práticas, tendo em conta que daqui a pouquíssimos dias o Grupo entra oficialmente em funcionamento.

Uma das declarações públicas que causaram mais ruído por parte da Conferência Episcopal foi a ideia de que pagariam tudo, bastando que as vítimas apresentassem a fatura. É este o modelo mais adequado para as vítimas?
O modelo mais adequado é este modelo de ouvir cada pessoa, uma a uma, e tentar perceber de que é que precisa. Que necessidades e como é que essas necessidades podem ser satisfeitas. Se essas necessidades passarem pela consulta no psiquiatra X ou no psicólogo Y, se passarem por ter de apanhar um transporte para conseguir ir à consulta porque mora numa zona muito isolada. Essas são as necessidades a que tem de se dar resposta. Não se pode é falar de forma generalizada. Por isso, tem de ser caso a caso. Por isso, vamos ouvir cada pessoa.

Pensando, precisamente, numa análise caso a caso, em tese há vítimas que podem precisar de um apoio que não se restrinja ao universo temporal em que o Grupo vai funcionar. Esse apoio imagino que se possa prolongar por anos, eventualmente até durante o resto da vida. Como é que se garante que é criada uma estrutura agora que possa ter de funcionar durante longos anos? Há essa capacidade? Imagina isso neste momento?
Imagino, porque sabemos que esta é uma forma de violência que, muitas vezes, implica um processo psicoterapêutico que dura anos. Não só com as vítimas, como também com os agressores. Portanto, não podemos, jamais, pensar que o limite do processo de ajuda é o limite do Grupo VITA. Se o Grupo VITA demorar três ou quatro anos, e se se extinguir, é porque há uma resposta que, entretanto, está criada e consolidada.

Que passou para as estruturas já existentes.
Exatamente. Portanto, será essa mesma estrutura que continuará esse trabalho.

E mesmo aí, a Conferência Episcopal Portuguesa continua a garantir que não há limites temporais de apoio às vítimas, por exemplo?
Nunca me foi transmitida tal ideia. E nem faz sentido essa ideia ser pensada, sequer, porque nós não conseguimos prever no tempo, no calendário, que a vítima A ou a vítima B vão precisar de quanto tempo de ajuda. Cada processo é único e há vítimas que, efetivamente, fazem um processo terapêutico mais favorável, conseguem elaborar o trauma de uma forma mais rápida, e há outras que não. Por isso é que muito importante ir mantendo a supervisão dos profissionais que asseguram esse acompanhamento. Os momentos de supervisão são momentos de aprendizagem únicos em que nós, terapeutas, colocamos as nossas dúvidas. Às vezes sentimos que há impasses terapêuticos, parece que andamos ali, costumamos dizer, “disco riscado”, não sentimos que a pessoa está a evoluir, “será que estou a ir bem?”, “será que devo mudar a minha abordagem?” E a supervisão é, exatamente, com esse objetivo: não deixar os profissionais sozinhos, terem essa resposta grátis, assegurada por parte de profissionais que trabalham nesta área já há algum tempo, exatamente para que os profissionais também sintam mais segurança nos processos que desenvolvem.

“Não tendo cometido um crime, a pessoa não é sinalizada”

Falando da questão da abordagem judicial aos casos que, seguramente, vão passar pelas vossas mãos, à semelhança da comissão independente, criaram um canal de comunicação direto com o Ministério Público?
Estamos a criar neste momento.

E têm o compromisso de remeter todos os casos, ou vão também filtrar e enviar apenas aqueles não tiveram prescrito?
Vai depender, também, da análise casuística. Aqueles que não tiverem prescrito, naturalmente, são encaminhados. Outros, que já tenham prescrito, dependendo também das circunstâncias da situação, vamos ter de analisar. E esse canal mais privilegiado com o Ministério Público, estamos agora a criá-lo com a ajuda do nosso advogado, Dr. David Silva Ramalho. Um dos papéis muito importantes é exatamente esse: perceber que canais do ponto de vista legal é que podem ser mais favoráveis, mais fáceis, mais rápidos também.

E encaminham-nos também para a justiça canónica, para os tribunais eclesiásticos?
Exatamente.

"As situações que chegaram até nós têm a identificação dos suspeitos. Estamos neste momento a fazer os contactos com o Ministério Público"
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

E aí serão as comissões diocesanas a atuar?
Nós encaminhamos, providenciaremos as respostas que aquela pessoa em concreta precisar, acionaremos os mecanismos necessários, mas depois os dois processos, quer do ponto de vista civil, penal ou canónico, decorrem em paralelo. Portanto, aí já não temos qualquer tipo de intervenção.

Só para clarificar um aspeto: a comissão independente referiu várias vezes, e não tenho a certeza de se já foi referido por vós ou não. O vosso trabalho estará sujeito a algum tipo de sigilo profissional genericamente abrangente? Imaginemos o caso de um potencial agressor que vos aborde no sentido de pedir ajuda; poderá fazê-lo na expectativa de confidencialidade? Ou terão de reencaminhar o caso para a justiça?
Se a pessoa ainda não cometeu nenhum crime, também pode ir ter comigo ao meu consultório, ou com outro psicólogo ou psiquiatra, e pedir ajuda. E a pessoa, não tendo cometido um crime, não é sinalizada.

Se tiver cometido, terá de quebrar o sigilo?
Se tiver cometido, naturalmente, todos nós temos as nossas respetivas ordens profissionais, que regulam isso de uma forma muito clara. São exceções à confidencialidade. O que é que é importante também salientar? Que, mesmo que a pessoa não tenha cometido um crime, e está num processo terapêutico, cabe ao terapeuta — daí a importância da supervisão e da monitorização — ir monitorizando regularmente, continuamente, o nível de risco daquela situação, e tentar perceber em que momento é que poderá ter de quebrar essa mesma confidencialidade. Isto não é linear, não é uma resposta de branco ou preto. É um processo que implica uma monitorização contínua.

Dos contactos que já receberam de vítimas, de que falámos há pouco, já receberam nova informação sobre suspeitos de abusos? Ou isso ainda não aconteceu?
Sim, as situações que chegaram até nós têm a identificação dos suspeitos.

São novos casos que já reportaram ao Ministério Público?
Estamos neste momento a fazer esse contacto.

Quantos casos são?
É muito cedo.

“Mesmo que a pessoa que nos contacte diga ‘eu só quero a indemnização’, vamos à mesma ouvir esta pessoa”

Deixe-me ler uma passagem do relatório final da comissão independente: “Dada a natureza desta Comissão e o modelo previsto para a sua composição, a ela caberia ainda, na remessa dos dados recolhidos às estruturas próprias da Igreja, propor as soluções a adotar, nomeadamente quanto ao tipo de medidas a aplicar ao infrator, à eventual indemnização a atribuir às pessoas vítimas e ao acompanhamento de que estas mostrassem carecer.” Ora, na conferência de imprensa que deram, disseram que não teriam competências a exercer sobre qualquer indemnização. Gostava de perceber porquê.
O que nós temos pensado relativamente a isto é que não nos cabe a nós, efetivamente. Nem saberia como fazê-lo, muito honestamente, dizer se a indemnização deve ser dez, cem ou mil. O que nos cabe a nós é, mesmo que a pessoa que nos contacte diga “eu só quero a indemnização”, vamos à mesma ouvir esta pessoa, tentar perceber o porquê desta motivação e se, de facto, não há outras necessidades que, se calhar, naquele telefonema ou naquele e-mail possam não ter ficado mais claras. O que é certo é que as questões especificamente relacionadas com a indemnização, nós iremos depois encaminhar para a diocese.

Vão reportá-la às estruturas da Igreja?
Vamos reportá-la. E, se a Igreja nos perguntar o que é que nós achamos daquela situação, da avaliação que nós fizemos daquela pessoa, qual é que é o nosso entendimento em termos das necessidades, mas jamais vamos nós decidir ou sugerir um valor específico de indemnização.

Ainda que não decidam o valor, obviamente, podem chegar à conclusão de que, em determinados casos, só a indemnização poderá ajudar no processo de cura? Ainda que a vítima não o tenha manifestado, por exemplo?
Do ponto de vista teórico e prático, isso é muito raro acontecer. Há 25 anos que trabalho com vítimas de abuso sexual e contam-se pelos dedos de uma mão as situações, no meio de centenas ou milhares, em que de facto parecia ser a indemnização a variável determinante do processo de elaboração do trauma. Para a esmagadora maior parte das pessoas, não é. A elaboração do trauma, acima de tudo, vai depender de variáveis da pessoa. Mas, daquilo que vem da própria Igreja ou do exterior, talvez tenha aqui um peso muito mais relevante a vítima perceber que é acreditada, que não é questionada, colocada em causa, que não, de alguma forma, até olhada com desconfiança, e haver uma reação de suporte por parte do meio. Essas são as variáveis que têm mais peso no processo de elaboração. Nós não falamos em cura, mas falamos em elaboração do trauma. No fundo, integrar esta experiência. A pessoa não se resume à sua vivência traumática, tal como o agressor, a pessoa que cometeu o crime, também não se resume ao comportamento cometido. As pessoas são muito mais do que isso. E é ajudar, pensando nas vítimas, a elaborar a sua narrativa, a sua vivência, aprender a viver com ela. Como diz um autor cujo nome neste momento não me recordo, “aprender a deixar o passado no passado”. No sentido em que está lá, sei que não desaparece, não se esquece, mas aprender a viver com ele.

"Se nós entendermos que uma indemnização possa ser facilitadora, naturalmente que o diremos. Se acharmos que não, também o diremos."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

Ainda assim, se eventualmente se juntar mais um ou dois casos a essa mão cheia com que ao longo de 25 anos de experiência foi contactando, vão partilhar essa informação com a Conferência Episcopal, a de que a indemnização é o caminho para a elaboração?
Sim. Se a diocese nos perguntar: “Esta pessoa em concreto, que pede uma indemnização, qual é que é a vossa opinião sobre isso? Em que medida é que um apoio financeiro poderia ser facilitador desta situação?” Se nós entendermos que sim, que possa ser facilitador, naturalmente que o diremos. Se acharmos que não, também o diremos.

Recentemente, no Parlamento, foi debatida a possibilidade de criar uma comissão de reparação a nível de judicial. Por exemplo, a possibilidade de levantar a prescrição dos crimes apenas no que toca à componente civil da justiça, e não à parte penal, permitindo às vítimas, mesmo de crimes que já prescreveram, apresentarem-se em tribunal para pedir uma indemnização. Isto é algo com o qual, em teoria, concordaria?
Não sei. O problema dos crimes que já aconteceram há bastante tempo é a dificuldade na produção da prova. Portanto, efetivamente, tenho algumas dificuldades, algumas reservas, relativamente a isso. Acho, sim, que cada caso deve ser analisado casuisticamente. Cada caso é, de facto, único. Mas tenho algumas dúvidas se, de facto, isso seria uma solução que resolvesse as grandes questões.

Uma lógica como aconteceu noutros países em que houve grandes escândalos de abusos na Igreja — estou a pensar em França, por exemplo, ou muitas dioceses norte-americanas que, inclusivamente, abriram falência devido a pagamentos de indemnizações —, em que há uma negociação entre a Igreja e associações de vítimas ou advogados que representam vítimas para determinar que cada pessoa leva, por exemplo, 50 mil euros de indemnização e encerra-se o assunto…
Esse é um funcionamento tipicamente norte-americano e que não me parece que seja muito ajustado à realidade portuguesa. Daquilo que eu conheço.

Já se reuniu com os membros da anterior comissão independente, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht?
Já.

O que é que saiu desse encontro?
Foi uma reunião muito positiva. Mantemo-nos em contacto regularmente, apesar de ter estado este fim‑de‑semana num congresso com o Dr. Laborinho Lúcio, e aí sim, os caminhos cruzam-se. Foi uma reunião positiva, em que, acima de tudo, os elementos da comissão independente nos deram conta de algumas dificuldades que sentiram, deram-nos algumas sugestões, que nós acolhemos, necessariamente, como é óbvio. Terminámos a reunião dizendo que sempre que tiverem sugestões, críticas construtivas, por favor digam-nos, porque de facto fizeram aqui um trabalho muito importante de abrir o tal caminho. Sugestões relativamente à disponibilidade para as vítimas, às questões da confiança. Por exemplo, a outra comissão acabou por atender as pessoas localmente, em Lisboa, num espaço físico…

Entrevista Sob-Escuta à psicóloga Rute Agulhas que, recentemente, foi nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para ser a coordenadora do grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas de abusos no seio da igreja Católica em Portugal. 16 de Maio de 2023 Alvalade, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Estava demasiado centralizada?
Sim, nós aqui estamos a tentar exatamente desconstruir essa ideia e abrir também a possibilidade — e estamos a pedir, também por isso, a colaboração, nomeadamente das autarquias, de encontrar espaços físicos onde forem necessários.

À partida não serão permanentes?
Não, não. Não serão permanentes. Nem em Lisboa nós queremos um espaço permanente. Queremos, sim, ajustar-nos, até porque há pessoas que podem sentir-se mais confortáveis a ir um espaço que está conotado com a Igreja; outras podem preferir um espaço neutro, que pode pertencer a uma câmara ou a uma junta de freguesia. Portanto, queremos abrir aqui um bocadinho esse caminho. Foi uma reunião muito importante, logo poucos dias depois da apresentação pública do Grupo VITA. Os canais estão totalmente abertos com a comissão independente, o que é muito bom.

Que erros foram cometidos pela comissão independente e que não podem ser cometidos?
Eu se calhar preferia não responder a essa pergunta. Algumas coisas mais concretas que, efetivamente, achei ou acho que poderiam ter sido feitas de uma outra forma, já tive oportunidade, ou virei a ter, de dizer diretamente à comissão independente.

Concluo, pelo menos, que não concorda com tudo o que foi feito — ou, pelo menos, com a forma como tudo foi feito.
Acho que todos nós temos um modus operandi diferente. E, se calhar, há de facto ali algumas coisas que, se fosse eu, poderia ter feito de uma forma diferente. Não sei se era melhor, se era pior. Mas talvez diferente fosse. Mas, acima de tudo, queremos retirar daqui a maior aprendizagem possível. E, para isso, percebo que a comissão independente está, de facto, muito disponível para lhes pedirmos ajuda sempre que necessitarmos.

“Muitas pessoas que vivem os tais pensamentos, as tais imagens sexuais envolvendo crianças, vivem-no sempre em silêncio”

Gostava de falar também sobre a realidade interna da Igreja e a formação das padres. A Conferência Episcopal está nesta fase no processo de aprovar, ou já foi aprovada e ainda não foi promulgada, a nova Ratio Sacerdotalis, o documento onde estão explanados os detalhes da formação do clero nos seminários. A única coisa nova que sabemos, que foi anunciada na última conferência de imprensa em Fátima, é que foi acrescentado um novo capítulo a este documento, exclusivamente sobre os abusos e a sexualidade dentro dos seminários. Foi consultada na elaboração desta documentação? O que é lhe parece que deve constar num capítulo sobre a sexualidade nos seminários?
Não fui consultada do ponto de vista formal, mas já falámos sobre isso. E é, de facto, um dos eixos importantes que o Grupo VITA tem como objetivo também na área da prevenção e da capacitação: exatamente abrir esta possibilidade, nos seminários, de se falar da sexualidade como algo que faz parte do ser humano, e não como algo que é um crime, um pecado, uma vergonha, um tabu. É importante desconstruir. Muitas pessoas que, efetivamente, vivem os tais pensamentos, as tais imagens sexuais envolvendo crianças, vivem-no sempre em silêncio, com muita culpa, com muita vergonha. Mas, atenção, este tabu que rodeia o tema da sexualidade e dos abusos sexuais não é exclusivo da Igreja. Antes fosse. É algo transversal na nossa sociedade. Só para termos ideia de onde é que nós estamos em 2023: recentemente, recebi um convite de uma associação de pais de uma zona periférica de Lisboa, para ir à escola falar com os professores, com os auxiliares de educação, sobre o tema do abuso sexual, e o diretor da escola disse “este tema não entra na nossa escola”. Portanto, este tabu, este querer acreditar, tapar o sol com a peneira, como se nesta escola isto não acontecesse. Acontece de forma transversal, acontece, na maior parte das situações, na família, como sabemos, nos contextos de grande familiaridade e proximidade. Acontece no desporto, na Igreja, nas escolas, enfim, no fundo, em todos os contextos onde as crianças se movimentam.

"O que é importante é que mesmo as pessoas que querem, de facto, o celibato, saibam gerir eventuais conflitos, que são internos, que se geram lá dentro, quando a pessoa tem outro tipo de desejos, de pensamentos ou imagens. Portanto, isto significa que tem de haver espaço para que isto seja falado."
Rute Agulhas, coordenadora do grupo VITA que vai apoiar vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja Católica

O caso da Igreja é normalmente apontado como especialmente problemático por causa da questão do celibato. Há a obrigação, que é imposta, aos membros do clero, de que terão de viver uma vida celibatária e livre da sexualidade. Isso é um problema?
Pode ser para algumas pessoas. Porque, por mais que possa até haver, por parte daquela pessoa em concreto, o desejo de o fazer, o desejo de corresponder a essa proibição ou a essa norma, não se significa que não se crie um dilema, um conflito interno, entre o que eu sei que devo fazer e aquilo que me apetece fazer, aquilo que são os meus desejos, os meus impulsos. Por isso, quando nós falamos em abordar, não só o tema dos abusos sexuais nos seminários, mas também o tema de sexualidade — é um tema muito mais abrangente, muito mais lato, e que tem a ver também com o aprender a perceber o corpo, a perceber os impulsos que se têm, os desejos, as fantasias, os sonhos —, há toda uma dimensão desde bebés que nós não podemos simplesmente fazer de conta que se apaga a partir do momento em que alguém decide a vida de seminarista.

Mas haveria aí recomendações a fazer, por exemplo, se lhe fosse pedido, à Igreja sobre como abordar o tema da sexualidade nos seminários?
Seguramente. E se a Igreja nos pedir ajuda nesse sentido, cá estaremos para pensar o melhor modelo de como chegar aos seminaristas e como abordar o tema de uma forma que seja facilitadora da desconstrução deste tabu e deste conteúdo, de uma coisa suja, uma coisa má, feia…

Mas isso poderia pôr em causa até uma ideia mais lata como a do celibato? Ou não necessariamente?
Não necessariamente. Uma coisa não tem de ser incompatível com a outra. O que é importante é que mesmo as pessoas que querem, de facto, esse celibato, saibam gerir eventuais conflitos, que são internos, que se geram lá dentro, quando a pessoa tem outro tipo de desejos, de pensamentos ou imagens. Portanto, isto significa que tem de haver espaço para que isto seja falado.

E a Igreja não ajuda os seminaristas a lidar com essa dimensão?
Se calhar, não tem ajudado da melhor forma, porque acaba por ser uma abordagem muito de repressão. De tentar ao máximo, no fundo, anular esta dimensão. Estamos a falar da sexualidade humana que é uma dimensão do ser humano. E estas pessoas precisam de espaço para isso. E, se calhar, não é um espaço em grupo. Pode ser um espaço individual. Há outros que podem funcionar bem em pequeno grupo. Portanto, teríamos de ver qual o melhor modelo para chegar aos seminaristas. Naturalmente, que estamos disponíveis para o fazer.

Entrevista Sob-Escuta à psicóloga Rute Agulhas que, recentemente, foi nomeada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para ser a coordenadora do grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas de abusos no seio da igreja Católica em Portugal. 16 de Maio de 2023 Alvalade, LIsboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

E essa realidade da repressão da vida sexual parece-lhe ter, depois, alguma relação com a lógica do encobrimento dos abusos, que durante muito tempo foi a norma na Igreja Católica? Ou seja, impedir que se soubesse que determinados padres violavam o celibato?
A tentativa de encobrimento, que tem séculos, não só na Igreja, mas em todos os outros contextos é o padrão, pode ser motivada por várias coisas. Não só porque, no fundo, viria a tornar aqui mais a descoberto esta realidade da quebra do celibato. Mas, acima de tudo, pela violação dos direitos de uma criança ou de um jovem. Depois, pelo receio das consequências, até em termos de imagem pública, que se possa ter. Mas eu repito: por exemplo, vejo em muitos colégios, escolas que não são católicas, quando se sabe de uma situação, muitas vezes ainda temos reações da própria escola como “não se pode saber, porque o bom nome do colégio pode ficar em causa; vamos resolver internamente e pôr debaixo do tapete”.

Uma última pergunta, para ter a sua opinião sobre o que foi dito recentemente pelo Papa Francisco, num documentário emitido na Disney, em conversa com os jovens. Este tema da sexualidade surgiu, naturalmente, na conversa, e o Papa admitiu que existe ainda alguma imaturidade na evolução da doutrina da Igreja sobre a sexualidade, que ainda é bastante recente, que ainda está a desenvolver-se. Considera que o Papa tem razão nisto que diz? Que uma certa demonização da sexualidade também contribui para que o clero tenha maior dificuldade em lidar com estas questões e que precisa de uma renovação teológica sobre o modo como olha para o sexo?
Ainda não tive oportunidade de ver esse documentário, mas está na minha lista. Sim, concordo com esta imaturidade, no sentido em que aquilo que tem sido, de facto predominante, como dizia há bocadinho, é a cultura da castração. Acho que é uma palavra que se aplica aqui. Cultura da castração, de “não existe esta dimensão do ser humano”. E isso, de facto, é anular, ou tentar anular, da pior forma, se calhar, a vivência dessa mesma dimensão. Que pode ser vivida de uma forma saudável com ou sem celibato. Acho que é importante passar esta mensagem.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.