Antes de passar a porta do Aquário Vasco da Gama para escrever este artigo a propósito do 125.º aniversário do aquário-museu, sobre o rei dom Carlos I, fundador da coleção exposta, sabia apenas do seu azar às carruagens. No entanto, mal entrei, descobri que o penúltimo dos nossos reis era um leitor ávido do Júlio Verne, trocava correspondência com o Príncipe Alberto do Mónaco (o primeiro, claro), tirou a primeira fotografia microscópica em Portugal com um microscópio binocular que ele próprio construíra e, acima de tudo, era obcecado pela vida submarina. Se isso seria motivo suficiente para fazer de Carlos um bom governante e para tornar politicamente imerecido o balázio com que foi desta para melhor, deixo para cronistas mais capazes. Mas que gostava muito de peixes e corais, nem o mais acérrimo republicano teria a ousadia de desmentir.
Também me parece evidente que ter um passatempo quando se é monarca é bem mais gratificante do que quando se é um plebeu comum. Não querendo comparar, uma vez, quando andava no secundário, quis fazer a caderneta do Mundial sem gastar a mesada e tive de passar os intervalos a trocar cromos à razão de dois por um com os putos da primária. Se fosse monarca, bastava comunicar este ligeiro interesse aos meus súbditos para na semana seguinte ter umas quarenta cadernetas completas. Talvez por saber que isso tiraria a graça ao colecionismo Panini, o rei dom Carlos optou por uma coleção virtualmente infinita — no caso, as espécies raras de animais subaquáticos — que ia sendo expandida por diplomatas estrangeiros e pescadores portugueses, ansiosos por agradar ao seu senhor.
O meu único comentário à ação política do rei nesta crónica será o seguinte: em 1902, o rei Eduardo VII de Inglaterra fez uma visita de Estado a Portugal. Nessa viagem, ofereceu a dom Carlos I duas aves empalhadas, que se encontram em exposição no museu do aquário. O rei dom Carlos ofereceu ao homólogo inglês o maior parque da capital. Não me parece uma troca lá muito justa, pese embora a inegável beleza das aves expostas.
Ao passar a receção, fui recebido pela Comandante Maria Martins, que me levou por uma escadaria a conhecer em detalhe o Museu Oceanógrafo Dom Carlos I, onde estão expostos desenhos feitos pelo rei, além de umas tartarugas embalsamadas que, apesar de mortas há mais de um século, ainda deitam um óleo que lhes mantém a pele num estado invejável. Ao fundo, a antiga biblioteca real é vigiada por uma estátua de cera de Dom Carlos, que a comandante diz ser por vezes confundida com uma pessoa de carne e osso pelos mais novos. Para me fazer forte, não confesso que segundos antes eu próprio me assustara quando precisamente isso me acontecera.
Daí descemos para uma outra sala, onde pude ver uns embriões de tubarão que pareciam dançar dentro de uma espécie de bolsinha e os restos mortais de um tubarão-demónio, que, não apenas pelo nome, venceria o prémio de meu animal favorito entre os mais de dois mil em exposição, apesar da forte concorrência de uma lula de oito metros conservada em formol.
Terminada a visita guiada ao museu, começou a parte mais inesperada desta manhã. A Comandante Maria Martins convidou-me a visitar os bastidores do aquário e a ajudar a transplantar uma tartaruga do viveiro de Verão para o tanque dos peixes, proposta que aceitei entusiasticamente por ter desde os quinze anos um fascínio indomável por tartarugas e já agora, se não levarem a mal, explico-vos porquê.
Em 2005, numas férias com a minha família, fomos a um sítio onde se podia ver tartarugas a desovar. Era uma noite de lua cheia e o guia pediu-nos que evitássemos roupas de cores garridas para não atrairmos a atenção dos felinos que, na sombra, se escondiam para devorar as pobres tartarugas. Ora, às nove e tal da noite, eu apareço junto à carrinha da excursão com uns all-stars vermelhos. Quando o meu pai, vestido de preto dos pés à cabeça, me viu, só não me matou ali porque pareceria mal. Nem dez minutos depois, chegou uma turista brasileira com um vestido florescente. Eu olhei para o meu pai, a tentar não me rir, enquanto o via empalidecer e recapitular para dentro os melhores momentos de uma vida que estava certo de ir ser abruptamente interrompida por um tigre naquela noite.
A viagem lá se fez, as feras mantiveram-se escondidas no meio da selva e vimos as tartarugas, vindas do outro lado do mundo, desembarcarem lentamente pela calada da noite ao longo da costa. Indiferentes ao perigo, escavaram com as patas traseiras um enorme buraco, depositaram os ovos no sítio onde haviam nascido e, certas de que não tornariam a ver os filhos, regressaram ao mar, numa extraordinária demonstração de amor maternal. No regresso ao hotel, a minha mãe tentava como podia conter as lágrimas e o meu pai, de olhos virados para a janela, respirava de alívio. Foi uma das melhores noites da minha vida. Desde esse dia, talvez por expansão metonímica, amo as tartarugas.
Mas voltando ao assunto desta crónica, e pedindo desde já desculpa por esta lamentável incursão autobiográfica, a Comandante Maria Martins apresentou-me à doutora Fátima Gil, a bióloga principal do aquário, que me explicou que as tartarugas estavam dentro de um tanque no telhado do aquário porque no verão lhes dava a larica pós-hibernação e tinham a mania de mordiscar as trutas. Contudo, a Maria Joaquina dava sinais de uma impressionante pacatez, merecendo, por isso, passar ao aquário central onde faria as delícias dos mais novos.
Pesámo-la e trasladámo-la para o tal aquário. Eu despedi-me dela e vi-a mergulhar, indo logo cumprimentar uma outra amiga que por lá andava e, de seguida, pôs-se a nadar sobre as trutas, como quem não quer a coisa. Depois, parou numa pequena ilha e ficou a olhar inquisitivamente para as crianças de uma creche que corriam em volta daquele pequeno lago.
O meu olhar era arrastado pela Maria Joaquina enquanto ouvia a doutora Fátima Gil explicar-me que o aquário continha uma data de espécies exóticas, que eram deitadas nas águas portuguesas por pais fartos de as aturar, alterando os ecossistemas. Disse-me que as espécies nativas, como a boga-portuguesa ou o ruivaco-do-oeste, tinham dificuldades em competir com os outros peixes vindos do estrangeiro, por serem mais lentas e tímidas e pareceu-me descodificar aqui uma metáfora sobre nómadas digitais, mas talvez fosse um exagero interpretativo da minha parte, não sei bem.
Percebia ali o que mais tarde o Comandante Nuno Leitão me explicaria: que o aquário serve para investigação científica, preservação da memória, mas, acima de tudo, para sensibilizar os mais novos acerca do funcionamento dos mares. Talvez por isso, em 2021, deixaram de ter um tanque com leões-marinhos que, fazendo as delícias das crianças, prejudicava os inocentes leõezinhos, presos num aquário demasiado pequeno para as suas necessidades.
Antes de me vir embora, a Comandante Maria Martins levou-me a ver o laboratório e as salas em obras do aquário, onde um estagiário a acabar a licenciatura me mostrou as salamandras-de-costelas-salientes, que na presença dos inimigos partem voluntariamente as costelas para os ferir com os destroços. Enquanto o ouvia, ecoavam na minha cabeça os milhares de pessoas que juram que os humanos têm muito a aprender sobre humanidade com os bichos. Dei-lhes razão e voltei para casa.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”. Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas
(artigo corrigido onde se lia “último dos nossos reis” — a propósito de D. Carlos — para “penúltimo dos nosso reis”)