É uma manhã turbulenta em Lisboa. Há greve de metro, os bombeiros sapadores manifestam-se com petardos e o trânsito ressente-se. Apesar disso, quando por fim chega ao Jardim do Príncipe Real, o cantautor Samuel Úria, blusão de cowboy e mocassins de índio, vem tranquilo. Para ele, que nasceu em 1979 e que, como tantos da sua geração, cresceu a olhar com otimismo para a viragem do milénio, seria difícil escolher dia melhor para falar da desilusão que sente – e que acaba de registar em álbum.
Ainda com o selo da FlorCaveira, a editora e hype de Religião & Panque Rock do início do século, de que se tornou a face mais bem-sucedida, 2000 AD é editado esta sexta-feira, dia 6 de dezembro.
Não no princípio, mas na essência, está o verbo: rico, barroco, pejado de referências bíblicas e protestantes, como ele, homem de fé e de esperança, que tem como valor supremo “a Verdade”. Pelo caminho, há o rock que lhe associamos, mas também o gospel, um pezinho de salsa, Alexandre O’Neill, o assobio de Manuela Azevedo, e as vozes de Margarida Campelo e da brasileira Carol, “vulcão deleitoso para sacrifícios voluntários”, que daqui a uns anos espera poder “arrogar-se” ter sido o primeiro a descobrir. Samuel Úria, descontraído e informal, sem terceiras pessoas, a tutear tudo e todos, até mesmo os agnósticos e ateus.
[ouça o novo álbum de Samuel Úria através do Spotify:]
Este disco tem como título e casa comum a desilusão que sentes com este milénio. Seria esta ideia otimista do ano 2000 própria da tua geração ou generalizada? Por outras palavras, seria uma ilusão de miúdos?
É uma ilusão de miúdos, até porque para nós que crescemos nos anos 80, e tendo uma perceção do tempo mais esticada, própria da idade, o ano 2000 parecia um alvo lá muito no futuro. A grande viragem da humanidade. Crescemos com essa ingenuidade.
Apesar desse mote, há sempre um tom de esperança. De onde vem?
Para já, do facto de eu não ser uma pessoa negativa. Não vejo o meu desapontamento como um baixar de braços; pelo contrário, o não abrir mão da crítica e do lamento é fundamental para alguém que acredita que as coisas podem, de facto, melhorar.
Acreditas num papel político e social da música?
Se não acreditasse, estaria muito deprimido, porque guardo a minha expressão política, a minha expressão contestatária, a minha expressão — pode ser um disparate dizer isto — mas a minha expressão mais altruísta, para aquilo que eu quero fazer através da música.
E porquê este disco agora, passados quase 25 anos da viragem do milénio?
Escrevo quase com a ideia de que estas canções podiam ter sido proveitosas se as tivesse ouvido no passado. Por exemplo, a Canção de Águas Mil [sobre os 50 anos do 25 de Abril] é apreensiva, mas também responsabilizadora. Essa apreensão e responsabilidade são coisas que me faltaram para perceber que a democracia não era um dado adquirido. Eu estava adormecido e com uma felicidade que nem sequer era latente, era inexistente, porque era a normalidade. Viver uma deriva de extrema-direita era visto como uma impossibilidade. E daí que esta apreensão, sendo do presente, é também um apontar de dedo a alguma passividade.
Da tua geração ou de várias gerações?
Mais da minha geração. Embora eu não concorde com aquela ideia de que o 25 de Abril é uma utopia. Foi tão concreto que ainda hoje estamos a viver à sombra dessa coisa esplêndida que aconteceu nessa data. Mas [mais novo] sempre vi o discurso dessas gerações que falavam da utopia, da necessidade de não deixar cair os valores de Abril, como uma ladainha política inconsequente.
Não valorizado.
Não valorizei esse alerta de que qualquer dia isto pode dar uma grande volta. Continuo a ter a confiança de que pode não dar uma grande volta. Mas pode dar uma média volta, que já é danosa o suficiente. E parece que já está a dar uma média volta.
E, como dizes em Era de Ouro, não fazemos mesmo nada para preservar os valores da democracia e da liberdade?
Às vezes fazemos o pior, que é olhar para as causas que queremos defender e achar que são tão valorosas que justificam algumas distorções da verdade. Pode mesmo chamar-se “maquiavélico”. Por exemplo, querermos criticar politicamente alguém e de repente estamos a propagar uma data de notícias sem confirmarmos se são verdadeiras, porque estão a atacar essa pessoa. E estamos a usar as mesmas ferramentas daqueles que fazem grassar aquilo que nos é contrário. A ideia de que estar do lado certo da história nos permite…
Existe um lado certo da história?
Acredito que existe um lado certo da história, sem ter a pretensão de o dominar por completo. Em consciência, se acho que uma coisa é certa, vou lutar pela sua certeza absoluta e universal. Mas fazê-lo é um comprometimento com a verdade, e não achar que a verdade se está a comprometer com a minha causa. E é isso que tem estado a acontecer.
E qual é esse lado certo da história?
A verdade, para mim, é o valor absoluto. É o valor que nos liberta. A verdade, a factualidade, serão sempre o barómetro de as coisas estarem certas ou erradas. Então deve haver um comprometimento muito grande com essa verdade. Muitas vezes, pode até desfavorecer-me, mas a longo prazo vamos ficar escudados por não termos cedido e deixarmos que haja uma zona cinzenta entre aquilo que é verdade e aquilo que pode ser verdade.
No quinto tema, há um verso muito bonito que é “daqui para trás tu já lá estás.” Partindo da desilusão que relatas, parece-te que achamos sempre o presente imperfeito, mas depois, quando avançamos e olhamos para trás, vemos que é o passado que nos sustenta?
Às vezes, estamos tão obcecados com a penumbra do futuro, que esquecemos um passado que é bom, não pela maquilhagem da nostalgia, mas por aquilo que foi de facto lutado e construído. Essa canção fala sobre essa espécie de reconhecimento retroativo de que o que está para trás também deve ter valor para aquilo que é o nosso pensar no futuro, as nossas esperanças e até os nossos afetos.
Já no disco anterior falavas de um desencanto com o presente, mas sempre com esperança no futuro. Onde vais buscar essa esperança? À fé?
Também, embora a fé não me diga que as coisas estão para melhorar.
És mais Novo Testamento ou Antigo Testamento?
Eu sou mais Novo Testamento. O que é novo vem a seguir ao antigo. Uma espécie de nova ordem.
Mas há muitas coisas que têm acontecido que são muito Antigo Testamento.
Sim, mas as pessoas que são tidas como o povo de Deus também não estão a passar por bons momentos no Novo Testamento: “Se quiserem professar a vossa fé, vão parar ao circo, vão ser comidos por leões, vão ser apedrejados”. Mas ainda é pior, porque vão ter de suportar isto e ao mesmo tempo “amar os vossos inimigos”.
Consegues amar os teus inimigos?
Não é fácil. Também é verdade que não tenho muitos inimigos.
É outra estratégia? “Não vou ter inimigos para depois não ter de os amar”?
Não sei se a minha falta de inimigos também não passa pelo facto de eu não ser desagradável com as pessoas que às vezes mereciam. Às vezes posso ser mais duro, mas, não sendo nada passivo, sou muito relaxado nas contrariedades. E acho que isso não tem a ver com a fé, isso tem a ver com a personalidade e tem a ver com… Sou filho da minha mãe.
A tua mãe é uma grande influência na tua vida?
Sim. A minha mãe também desenhava e estudou música. Eu não estudei música, até porque fugi a estudar música porque não queria ser o menino da mamã que fazia o que ela fazia, mas temos uma personalidade muito semelhante.
Ela queria que estudasses música?
Ela dava aulas de música particulares em casa, onde quase todos os meus colegas de escola iam. Tinha um órgão e pianos em casa. Tínhamos muitos instrumentos musicais. Foi uma das coisas que me levou a querer aprender a tocar por mim próprio.
Como assim, “muitos”?
Muitos teclados, pianos, órgãos. A minha irmã tinha duas ou três guitarras. O meu pai, que era enfermeiro e completamente desligado da música – não sabe tocar nenhum instrumento, não sabe cantar – sempre gostou muito de instrumentos musicais, sobretudo pela “cromice” com a eletrónica. Comprava instrumentos para os desmontar, fazia emissores de rádio com saboneteiras. E também, não tendo nenhuma ligação enquanto ouvinte, quando no verão vínhamos a Lisboa, voltávamos sempre com caixas de discos.
Que tipo de discos?
Alguns bons, tipo Nat King Cole, que ainda ouço, e depois coisas tipo Hit Parade. O meu pai também gostava muito de ter boas aparelhagens, o lado “cromo” do som. Comprava os discos para ver se soavam bem. Então cresci assim, com discos e instrumentos musicais em casa. Às vezes a abundância até nos reprime. Hoje safo-me a tocar teclados, mas não é o meu instrumento de eleição e quase nunca arrisco tocá-los ao vivo, porque era o instrumento que a minha mãe tocava e ensinava. Ainda toca bem e lê a pauta, que é uma coisa que eu não faço.
Não sabes ler uma pauta?
Sei ler, mas não com destreza. Para a minha mãe é como ler um livro. A maneira como a música me conquistou foi quando a minha irmã, dois anos mais velha, comprou uma guitarra. Comecei a mexer e de repente a guitarra clássica começou a servir para tocar as bandas barulhentas que eu ouvia na adolescência. Estão agora a fazer 30 anos os “unplugged” da MTV [série de álbuns acústicos gravados ao vivo].
O dos Nirvana, por exemplo.
Aprendi a tocar a guitarra a ouvir o “unplugged” dos Nirvana.
Aquele início do Come as You Are.
Foi mesmo assim. Deve ter sido a minha principal escola de música.
Vem daí a ideia dos “órfãos de causas” da Era de Ouro? O Kurt Coabin estava muito zangado, muito deprimido.
Era a teenage angst.
Mas aquilo não tinha um alvo que não fosse ele próprio.
O lado mais taciturno dos anos 90 é uma desilusão interior, a minha insuficiência em relação ao mundo. O pós-punk e as influências góticas e depois o grunge, etc., não são a mesma luta suja do punk dos anos 70, que era político e panfletário. As bandas femininas de Seattle até tinham mais isso do que as masculinas.
Havia o Riot Grrrl.
Eu até lhe chamo um proto-feminismo, porque tem mais a ver com o feminismo de hoje e não com a transversalidade do feminismo sufragista que vinha de trás. As mulheres estavam muito mais à frente nesse lado contestatário.
[o vídeo da canção que dá título ao disco:]
E tu identificas-te mais com essa luta interior dos anos 90 ou com o lado social da música?
Acho que é uma bela mistura. Dos anos 90 fica-me um lado estético. Essa taciturnidade não estava só nas letras, mas também nas harmonias, na sequência de acordes. Durante muitos anos, de cada vez que começava a escrever uma canção, tocava sempre dois acordes dos Nirvana, que são uma sequência que tanto nos leva para alguém que está deprimido num quarto escuro, como a saltar para cima de uma bateria, a espetar-se nos ferros dos pratos da bateria, a sangrar e a partir-se todo. Mesmo quando faço coisas que parecem não ter nada a ver, tenho presente que é essa a minha escola de música e também a minha escola de querer fazer canções.
Quer isso dizer que és totalmente autodidata?
Tive duas aulas de guitarra, em que aprendi dois acordes, e tive para aí três ou quatro aulas com a minha mãe, em que aprendi também dois acordes no teclado. Mas a relação entre os dois acordes que eu aprendi na guitarra e os dois acordes que eu aprendi no teclado fez-me aprender todos os acordes que me apetece fazer. Também me ajudou muito, no final dos anos 90, ter uma banda com amigos, que era muito exigente em termos técnicos, com ecos de jazz, de drum and bass e de trip-hop, mas sem eletrónica. Eu nem usava os pedais da guitarra. Era muito melhor guitarrista do que sou agora. Depois percebi que a destreza e o virtuosismo não favoreciam aquilo que eu queria fazer enquanto escritor de canções.
E o que é que querias fazer enquanto escritor de canções?
Ser muito mais direto. A parte instrumental inicial estar completamente despida de artifício. Aquilo que tem de sobressair na canção e que depende do instrumento, tem de ser um ambiente, tem de ser uma ideia, tem de ser uma emoção, mais do que propriamente um adorno, e isso desligou-me de querer tocar coisas complicadas na guitarra.
Voltando a esta ideia da fé, as tuas letras estão pejadas de referências bíblicas. Era importante para ti juntar estas duas coisas, a música e a religião?
Admito que o seja. Por outro lado, é uma vantagem tremenda ter esse manancial literário, simbólico, porque essas partes de matriz religiosa, até bíblica, são as mesmas que fazem parte do espólio dos maiores cantautores anglo-saxónicos, de países muito mais enraizados no protestantismo – e o protestantismo está muito ligado à palavra – ou até no judaísmo — que está muito ligado à parte cerimonial das repetições. Tudo isto faz parte dos recursos dos artistas que eu mais admiro.
Que artistas são esses?
O [Bob] Dylan, o [Leonard] Cohen, o Nick Cave, o Elvis [Presley], o Johnny Cash, o Tom Waits. Quase todos os que importam.
E em Portugal, citar a bíblia numa canção rock não é uma coisa mal vista?
Sim, é coisa mal vista. Às vezes há uma ideia tão laicizante daquilo que deve ser a expressão popular da música…
Como lidaste com isso?
Com a maior das naturalidades, mas também com uma vantagem, que é, eu posso estar a dizer a coisa mais ordeira, às vezes até conservadora e pacífica, e o tipo de expressão que eu escolho, no país em que o faço, torna essa expressão revolucionária e punk rock.
Citar a Bíblia torna-se revolucionário?
É um incómodo. Mas lá está, essa ideia antiga, com dois mil anos, de amar o nosso inimigo, de que falávamos há pouco, era revolucionária na altura e hoje em dia é, se calhar, a expressão mais revolucionária e punk rock que existe. Tem esse grit cinzento-pardo do punk rock.
E pensando na tradição protestante, para ti os concertos são de alguma forma uma eucaristia?
Há uma ideia clássica católica que é muito formal, até na sua estética, e que no protestantismo, por serem denominações marginais, não era. As primeiras pessoas protestantes da minha família chegaram a ser apedrejadas…
Apedrejadas? Isso quando?
Estamos a falar anos 60, início dos anos 70.
Como é que se tornam protestantes?
Os meus avós maternos foram os primeiros a ser convertidos em Tondela, embora o protestantismo tenha chegado cá ainda no século XIX, primeiro na Madeira, com repercussões musicais, curiosamente, porque os primeiros convertidos foram expulsos da ilha, espalharam-se pelas Américas e alguns deles foram parar ao Havai, para onde levaram o cavaquinho madeirense, que depois se tornou no ukulele.
Os madeirenses que levaram o cavaquinho para o Havai eram protestantes?
O ukulele, que se tornou no instrumento oficial do Havai (e numa praga para muita gente) é o reflexo dos protestantes. Mas depois há várias outras denominações que chegam já no início do século XX. Os batistas, que são a denominação à qual os meus avós se convertem, chega a Portugal em 1912, 1914, por via dos ingleses que faziam o comércio do vinho do Porto, e a de Tondela é a terceira igreja batista mais antiga de Portugal. Os meus avós são convidados a assistir [a uma celebração] e é assim que entra no seio da família.
Dizias que chegaram a ser apedrejados?
[Entre os batistas] havia aquela ideia de “vamos pegar numa carrinha e fazer as nossas celebrações no meio das pessoas, para elas conhecerem”. E muitas vezes chegavam às terriolas e eram escorraçados. Sou um comodista da fé, nunca tive de passar por isso.
Nunca tiveste crises de fé? Dúvidas, questões?
Tive, mas o esclarecimento de que necessitei sempre redundou em coisas muito pequenas. Sempre achei que aquilo que precisava de questionar não era uma cosmovisão, mas uma visão muito pequenina centrada em mim. As minhas dúvidas sempre foram um bocadinho mais pequenas do que a certeza que a fé me inculca.
E chegámos a esta conversa sobre fé por causa dos concertos.
A expressão litúrgica protestante em Portugal não tem nada desses formalismos [do catolicismo]. É muito mais pobre em termos estéticos, mas mais rica em termos musicais. Isso também tem a ver com a génese do protestantismo, que começa no século XV sem um espólio musical próprio. Então o que fez foi aproveitar a música popular da altura, músicas de taberna, e dar-lhes letras religiosas. Até hoje. Não só a música protestante é muito influenciada pela música pop hodierna [atual], como também é influenciadora. A partir dos anos 30, 40 do século passado, o gospel torna-se blues, jazz, rock, torna-se tudo. Todas as correntes pop têm essa matriz. O papel da música nas igrejas protestantes sempre foi, para lá da celebração, um lado festivo. E, nesse sentido, há um lado litúrgico também no meu encarar de palco, porque tem de ser festivo: para mim, para os que estão comigo, tem de haver uma celebração, mas também estar despido de formalismos. O formalismo aí até é mais rock’n’roll. É querermos transpirar e magoar-nos seriamente.
Como assim, “magoar seriamente”?
Já aconteceu. Agora tenho estado mais tranquilo, mas, volta e meia, fazemos concertos em que fingimos voltar a ter 15 anos. Há uns anos, lesionei-me na molhada durante um concerto. De repente, sou muito bem amparado, mas há uma altura que já não há pessoas e eu bato com as costas contra a parede, lasquei um osso da bacia e andei a coxear durante nove meses.
Desculpa estar a rir-me, não tem piada nenhuma.
Mas tem piada. É um distintivo que usamos com orgulho. Andar lesionado por causa disso? Dói todos os dias, mas todos os dias penso, “eh pá, olha que fixe, não estou assim tão velho”. Por estar a mexer-me como um velho, sinto, “não, isto não é motivado pela velhice; isto é motivado por uma lesão de um adolescente perpétuo”.
Falando em gospel, este disco vai do rock que associamos logo ao Samuel Úria, avança por arranjos de cordas delicados, o gospel, um pezinho de salsa e acaba numa pop muito simples, uma homenagem a um amigo, o Xico da Ladra. Em comum, a palavra, sempre rica. Há uma intenção neste caminho?
É uma estrada que tem lombas e tem curvas e tem subidas e tem descidas, isso determina os tempos do disco. E posso fazê-lo porque tenho a ideia de que há uma coesão que está subjacente na letra e que me permite explorar vários universos musicais. Gosto dessa viagem, que é uma coisa que retiro muito dos discos, sobretudo do Tom Waits, a partir dos anos 80, ou até mais no final dos anos 90, em que a voz dele é a parte mais comum, mas depois ele explora uma data de sons dentro do mesmo disco.
E porquê pegar no Alexandre O’Neill?
Um adeus português é um poema que me desarma de uma forma que poucos poemas da língua portuguesa fazem. É um poema que tinha muito presente. E quis fazer um exercício que me parece raro, se é que alguma vez existiu na música portuguesa, que é, não musicar um poema, mas escrever influenciado pela mensagem do poema, naquilo que é a homenagem a um trecho maior da literatura portuguesa.
E o que achas que diria o poeta ao saber que um jovem músico, em 2024, tinha feito essa homenagem, e incluído a palavra “Moisés” na letra?
Pode ser um pensamento desejoso, um wishful thinking, mas tendo em conta aquilo que é a minha intenção, interpretação, e até o reconhecimento de algumas coisas que ele também diz, acho que ele, se não ficasse orgulhoso, pelo menos não ia ficar chateado.
E o assobio da Manuela Azevedo em 1998? Não tiveste a tentação de lhe pedir para cantar?
Ter a Manuela como assobiadora pode parecer um subaproveitamento, mas na minha cabeça é ao contrário. Basta ter um assobio no disco para, de repente, ser um assobio tão perfeito quanto ela. A Manuela é a pessoa mais talentosa que anda nos palcos em Portugal. É a artista renascentista da performance em Portugal.
O que gostavas que as pessoas retirassem deste disco?
Tenho a felicidade de as pessoas que gostam da minha música e me acompanham há mais tempo, terem sempre a generosidade de quererem não só entender as minhas canções, mas também pôr lá as ideias delas. Acho que isso é um atestado da sinceridade daquilo que eu escrevo. Esta ligação que existe com o público já é tão especial e já está tão para lá daquilo que eu acho que é o merecimento da minha própria personalidade. Isto parece uma humildade falsa para parecer bem, mas é absolutamente real e… e….
Protestante?
Talvez. Se houver gente com paciência e com generosidade para ouvir o que eu tenho a dizer, basta que a verdade chegue a uma pessoa que eu já me sinto satisfeito.
Voltamos ao conceito de verdade. E o que é a verdade neste caso?
É aquilo que está nas canções e para mim é incontestável e torna-se incontestável para quem está a ouvir.
E que é?
Digam-me vocês.