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Este é o quarto de oito artigos sobre a história e nomenclatura do calçado e suas marcas mais conhecidas. Os anteriores podem ser lidos aqui:

Dr. Martens

As Dr. Martens (conhecidas informalmente por Doc Martens) estão intimamente associadas à Grã-Bretanha – e, com efeito, a firma tem hoje sede no Northamptonshire – e a subculturas juvenis como skinheads, punks e góticos, mas as célebres botas nasceram na Alemanha no pós-II Guerra Mundial e os seus primeiros clientes nada tinham de punks.

Após sofrer uma lesão no tornozelo num acidente de ski, o Dr. Klaus Märtens, um médico da Wehrmacht, concluiu que as botas do exército, com solas muito rígidas, eram pouco adequadas ao seu restabelecimento e improvisou umas botas mais confortáveis a partir de pneus usados. Os seus primeiros protótipos não despertaram grande atenção e só com a associação, em 1947, a Herbert Funck, um ex-colega de universidade, é que o negócio começou a tomar forma; naqueles tempos de penúria extrema, numa Alemanha devastada pela guerra, os materiais para o fabrico das botas provieram sobretudo da reciclagem de equipamentos militares (com os pneus de aviões da Luftwaffe a ser a principal fonte de borracha para as solas). As botas começaram por ganhar aceitação entre as donas de casa de meia-idade (um facto que poderá deixar descorçoados os jovens punks que associam estas botas à rebeldia e à rejeição dos valores da sociedade burguesa) e este sucesso levou a empresa a, em 1959, apostar na internacionalização do produto.

O conforto das botas do Dr. Märtens chamou a atenção do director de um dos principais fabricantes de botas da Grã-Bretanha, a R. Griggs & Co., que, em 1960, adquiriu a marca a Märtens e Funck, suprimiu o trema no nome do Dr. Märtens, atribuiu à sola a designação AirWair, introduziu algumas alterações de design e começou a produzir as botas na Grã-Bretanha.

Diferentes modelos de Dr. Martens

As Dr. Martens começaram por ser procuradas como calçado de trabalho robusto e confortável e tornaram-se populares entre operários, carteiros e polícias (gente que tinha de andar muitos quilómetros diariamente), mas foi só quando a “contra-cultura” juvenil as adoptou que chegaram os seus dias de glória. O negócio foi diversificando-se – existem hoje mais de 250 variantes do modelo original – e a cadência anual de produção de botas Dr. Martens ronda os 10 milhões.

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Dr. Scholl’s

As sandálias (ou chinelos) Dr. Scholl’s estão nos antípodas do glamour rock’n’roll das botas Doc Martens, mas quem as usa garante que não há nada mais confortável ou melhor para a saúde dos pés. O nome vem do podiatra americano William Scholl (1882-1968), cujo interesse pelo mundo do calçado foi despertado por um avô, que antes de emigrar da Alemanha para os EUA, exercera o mister de sapateiro. Aos 16 anos, Scholl deixou a quinta da família para trabalhar numa sapataria em Chicago, o que robusteceu o seu interesse por sapatos e podiatria, a ponto de o levar a decidir retomar os estudos e tirar o curso de medicina. Apesar das suas origens humildes, conseguiu, com trabalho árduo e perseverança, obter o diploma em 1904 – e dois anos depois fundou a Dr. Scholl’s para comercializar os seus produtos podiátricos. A empresa tornou-se tão absorvente que Scholl acabou por nunca exercer medicina, concentrando-se antes no desenvolvimento de uma miríade de dispositivos, cremes e pós destinados à saúde dos pés. Atendendo que a maioria dos sapatos correntes na primeira metade do século XX eram horrendamente disfuncionais e anti-ergonómicos, não é de estranhar que a Dr. Scholl’s prosperasse e, logo em 1910, ganhasse uma sucursal britânica.

A sandália/chinelo que ficou indelevelmente associada ao Dr. Scholl surgiu em 1959, com a (bizarra) designação oficial de Original Exercise Sandal (é difícil perceber que tipo de exercício físico pode fazer-se com tal artefacto nos pés) e a sua popularidade foi fortemente empurrada pelo movimento hippie do final dos anos 60, que preteriu os clássicos sapatos burgueses em favor de sandálias e chinelos, fazendo com que em 1971, as vendas da Exercise Sandal atingissem um milhão de exemplares só nos EUA.

Anúncio às sandálias Dr. Scholl’s

William Scholl dirigiu a empresa praticamente até à sua morte, em 1968, e tão eficazmente o fez que, em 1971, a Dr. Scholl’s entrou para a lista das 500 maiores empresas da revista Forbes. A aura “saudável” e “ortopédica” que as sandálias Dr. Scholl’s granjearam é comprovada pelo facto de estas serem vendidas em farmácias e de a marca ter sido adquirida, sucessivamente, por três mega-grupos farmacêuticos: em 1979, foi comprada pela Schering-Plough, passando depois pelas mãos da Merck & Co. e da Bayer, que a vendeu, em Julho de 2019, ao fundo de investimento Yellow Wood Partners por 585 milhões de dólares (o preço pode parecer “puxado”, mas a Dr. Scholl’s comercializa, além das sandálias e outro calçado, uma larga gama de produtos podiátricos).

Não existem, porém, estudos que comprovem os supostos benefícios podiátricos das Dr. Scholl’s e é bem possível que o conforto que os seus fãs lhes elogiam resulte da comparação com os sapatos-câmaras-de-tortura que são a norma. Aliás, é incongruente que um chinelo de sola de madeira e com calcanhar elevado (na maioria dos modelos) seja publicitado como “natural”, “confortável” ou “podiatricamente correcto”. Talvez parte da “aura” das Dr. Scholl’s resulte de uma equívoca associação de ideias entre fealdade e ortopedia análoga à que envolve o óleo de fígado de bacalhau: se o sabor é tão detestável, é porque faz bem à saúde.

O anúncio estabelece uma relação enigmática entre música country, dias de sol, fins-de-semana, bricolage e sandálias Dr. Scholl’s

Birkenstock

As sandálias Birkenstock partilham com as Dr. Scholl’s a fealdade e a fama de possuírem virtudes podiátricas. Entre as grandes marcas de calçado em actividade, a Birkenstock é talvez a que tem origem mais antiga, remontando a Johann Adam Birkenstock, um sapateiro activo na segunda metade do século XVIII em Langen-Berghiem, uma vilória no que é hoje o estado de Hesse, na Alemanha. As Birkenstock aproximaram-se das características actuais com as inovações introduzidas em 1896, pela mão de Konrad Birkenstock, trineto de Johann Adam, e com a adopção, por volta de 1930, da sola “ortopédica” em camadas: uma superior em camurça, a que se seguem uma de juta, outra de cortiça e látex e mais outra de juta. Sob esta sola “ortopédica” há uma sola exterior, que em tempos foi de borracha e hoje é de EVA (etileno-vinil acetato), um plástico mais leve e barato do que borracha.

As Birkenstock foram lentamente alastrando pela Europa setentrional, mas foi quando chegaram aos EUA, em 1966, que conheceram forte expansão, a que não é alheio (tal como acontecera com a Original Exercise Sandal da Dr. Scholl’s) o florescimento, por essa altura, do movimento hippie, que logo simpatizou com um calçado que se apresentava como “simples” e “natural”, embora nada haja de natural em prender o pé a uma sola espessa e rígida, com calcanhar sobrelevado e suporte do arco do pé.

Para lá de uma popularidade “de fundo” entre os que apreciam o seu conforto, as Birkenstock têm sido alvo de sucessivos picos de entusiasmo de cada vez que ganham força na sociedade movimentos de contra-cultura e “regresso à natureza” (é o tipo de calçado que casa bem com adesão ao yoga e rejeição da vacinação). São frequentemente usadas com peúgas, mesmo durante dias quentes de Verão, um paradoxo para o qual as mais brilhantes mentes da ciência ainda não encontraram explicação, talvez por algumas das mais brilhantes mentes da ciência calçarem Birkenstocks com peúgas.

Crocs

Se as sandálias da Dr. Scholl’s e da Birkenstock são paradigmas da “fealdade clássica” em calçado, a “fealdade moderna” (quiçá pós-moderna) é encarnada pelos tamancos de plástico da Crocs. Se o adepto das Dr. Scholl’s é o tipo de pessoa que compra sapatos no mesmo estabelecimento onde adquire a sua medicação, quem usa Crocs como “sapato casual” refinou o seu sentido de estilo e apresentação pessoal na secção de baldes e alguidares das drogarias e lojas de ferragens.

Os primeiros Crocs (cujo nome e logótipo aludem a crocodilos) foram lançados em 2002 e o uso para que foram originalmente concebidos foi náutico – o material em que são construídos (Croslite, uma espuma de etileno-acetato de vinil, de que a Crocs tem o exclusivo) suporta a imersão, flutua na água e é anti-derrapante. Não por acaso, o primeiro modelo foi baptizado como Beach e foi apresentado no Boat Show de Fort Lauderdale, na Florida. Mas se os Crocs tiveram boa aceitação nas actividades de lazer em meio aquático, o seu estrondoso êxito, nos primeiros anos, veio da sua adopção maciça pelos trabalhadores dos sectores da saúde, restauração, limpezas e jardinagem, por serem leves, arejados, confortáveis (isto é, tão confortáveis quanto um tamanco pode ser), práticos, fáceis de limpar e baratos (já que o processo de fabrico é muito simples: basta injectar resina num molde). Sendo também fáceis de calçar e descalçar, difundiram-se amplamente entre crianças e residentes de lares de terceira idade e instituições de saúde mental.

Nada haveria a obstar se os usos dos Crocs tivessem ficado por aqui. Porém, eles não bastam para explicar os mais de 300 milhões de pares vendidos desde 2002 e, muito menos, a receita recorde de 2300 milhões de dólares registado pela Crocs em 2021, quase duplicando a receita de 2019 (a marca estima atingir os 5000 milhões de dólares em 2026). Para este “milagre” ocorrer a Crocs teve de converter o seus tamancos estritamente funcionais e baratos, que podiam ser comprados em qualquer loja de conveniência, num artigo de moda. A mutação iniciou-se em 2006, quando a Crocs adquiriu a Jibbitz, um fabricante de bugigangas de plástico que podiam ser inseridas como “ornamentos” nos orifícios na parte superior do tamanco (permitindo a criação de modelos “personalizados”) e os gurus da moda decretaram que os Crocs eram aceitáveis como calçado “informal” (o slogan da marca é “Come as you are”) e começaram a ser usados na rua, no dia-a-dia, por adultos na plena posse das suas faculdades intelectuais e capazes de lidar com atacadores. O facto de muitas celebridades – da realeza da pop à realeza de Windsor, passando pela realeza de Silicon Valley – serem, amiúde, vistas em público com os tamancos tem contribuído para que a voga se expanda.

Loja da Crocs, Hong Kong

A partir do momento em que usar Crocs deixou de ser sinal de pertença à humilde casta encarregue de manter limpas as casas de banho públicas e passou a ser um “fashion statement”, a fealdade singela e despretensiosa dos Crocs originais foi sendo exacerbada pela proliferação de elementos “decorativos” e pelo desenvolvimento de uma infinidade de variantes, umas concebidas para contextos específicos (golfe, trekking), outras explorando associações à indústria audiovisual (Star Wars, universo Disney), a estrelas da música e cinema (Post Malone, Luke Combs, Yang Mi, Ruby Rose, PSY, Kiss, Drew Barrymore, Bad Bunny, Justin Bieber, G Flip, Little Big) e a marcas de fast food (a cadeia de restaurantes Kentucky Fried Chicken e os molhos para saladas Hidden Valley Ranch). E, como é usual, a multiplicação de edições especiais fomentou o coleccionismo de Crocs (a maior colecção ronda os 750 pares).

O actual catálogo da Crocs é uma galeria de horrores que confirma de que, no domínio do mau gosto, a imaginação do Homo sapiens é ilimitada; os atentados não se confinam ao domínio visual, já que os Crocs Kentucky Fried Chicken são também ofensivos em termos olfactivos, reproduzindo o aroma da famosa “receita secreta” de frango assado do “coronel”.

Crocs Kentucky Fried Chicken

A Crocs Inc. estabeleceu também colaborações com vários estilistas e marcas de moda prestigiadas para criar objectos que combinam a hediondez rasteira do plástico barato com a pretensão da haute-couture. É o caso dos modelos co-produzidos com as marcas de luxo Barneys New York, Rare Market e Balenciaga. Esta última, cuja vocação para o luxo deriva, amiúde, para a “trash fashion”, já tinha lançado em 2017 uma versão “plataforma” dos Crocs, vendida a c.1000 dólares o par (ver E você, está pronto para voltar a usar Crocs?), e lançou no Verão de 2022 uns Crocs de salto alto, que se vendem a 500-900 dólares o par, consoante o modelo (como é usual na “trash fashion”, o preço é directamente proporcional à fealdade).

Tal como acontece com as Dr. Scholl’s e as Birkenstock, há muita gente a calçar Crocs com peúgas (anulando assim uma das suas virtudes, que é serem arejados), o que motivou a marca a desenvolver uma vasta gama de peúgas de cores e padrões estridentes e a criar, em colaboração com a marca de streetwear Alife, mais uma abominação: uns Crocs com peúgas incorporadas.

A pandemia de covid-19 teve efeitos negativos nas vendas da maioria das marcas de calçado, mas a Crocs prosperou com os confinamentos: muitos milhões de pessoas tiveram de ficar em casa e, estando condicionadas para usar sapatos mesmo onde estes não são necessários, entenderam que os Crocs eram o calçado doméstico perfeito, fazendo com que tivessem sido o artigo de moda mais vendido na Amazon em 2022.

Havaianas

Os chinelos são a mais simples forma de sandália e, naturalmente, surgiram independentemente em diferentes culturas em diferente lugares do mundo, com cada uma a recorrer aos materiais mais baratos e disponíveis localmente: papiro no Egipto, yucca no México, sisal na América do Sul, couro entre os pastores Masai, palha de arroz no Extremo Oriente. Como foi referido em Os primeiros passos: Breve história das marcas de calçado, pt. 1, os vestígios mais antigos deste tipo de calçado que chegaram aos nossos dias foram encontrados na gruta de Fort Rock, no Oregon, e terão cerca de 10.000 anos.

Apesar da multiplicidade de ocorrências e da diversidade de construção, pode rastrear-se a origem das “havaianas” do nosso tempo até às zōri, sandálias japonesas de sola plana, feitas de palha de arroz entrançada e que são presas ao pé por uma simples tira em “Y”. A outra forma de calçado tradicional japonês é a geta, uma sandália de sola de madeira, cuja sobrelevação visava, originalmente, não poupar os escaravelhos (como nas paduka indianas), mas evitar o contacto dos pés com lama ou neve; depois, as geta sobrelevadas passaram também a ser um símbolo de status entre as cortesãs de alta categoria.

Geta em estampa de Utagawa Kunisada, 1857

A continuidade da popularidade das zōri no Japão, mesmo depois de, no final do século XIX, o país ter adoptado a indumentária e o calçado ocidentais, explica-se, em parte, por a tradição japonesa de descalçar-se ao entrar em casa favorecer um calçado facilmente removível. A simplicidade e arejamento das zōri seduziram os soldados americanos que lutaram na Frente do Pacífico e ocuparam o Japão após a derrota deste país na II Guerra Mundial; e quando regressaram ao seu país, trouxeram com eles uma versão em borracha das zōri, que recebeu o nome de “flip-flops”, uma onomatopeia do ruído produzido ao caminhar-se com elas.

Zōri tradicionais

Nos EUA, os flip-flops implantaram-se sobretudo no contexto do lazer estival e, mais concretamente, da praia e do surf, mas em 1962, com o início da produção no Brasil, o singelo e barato chinelo de borracha transformou-se rapidamente no calçado das classes desfavorecidas, apto para todos os fins e circunstâncias, ficando conhecido como “chinelo de pobre”. No Brasil, o chinelo (cuja sola imita, na parte superior, a textura da sandália de palha de arroz) foi comercializado sob a marca Havaianas, mas esta palavra acabou por designar, no português do Brasil e de Portugal, qualquer chinelo de borracha, independentemente do fabricante.

Vendedores da Havaianas, Brasil, 1964

No website das Havaianas (que são produzidas pela firma Alpargatas) atribui-se a escolha do nome da marca ao glamour de que o Hawaii gozava na década de 1960 como ilha de vida paradisíaca e despreocupada, mas, na verdade, a associação entre os chinelos e o dito arquipélago é bem mais profunda: as ilhas albergavam uma importante comunidade japonesa, que, na década de 1920, chegou a representar 43% da população (e ainda hoje é de 16.7%), o que fazia com que as zōri fizessem parte do dia-a-dia naquelas paragens.

“Trabalhadores japoneses na Plantação Sprecksville, Maui, Hawaii”, por Joseph Dwight Strong, 1885

A conexão japonesa está, aliás, presente nos nomes das “havaianas” em vários países do mundo: “japonki” em polaco, “sayonares” (do japonês “sayōnara”) em grego, “sayonaras” no Peru, “djapanki” em búlgaro, “japanke” em croata, “jandals” (de “Japanese sandals”) na Nova Zelândia. Russos e ucranianos atribuem-lhes uma origem mais meridional e chamam-lhes “vietnamik” (com efeito, as “havaianas” são muito populares no Vietnam, tal como em todo o Sudeste Asiático).

A marca Havaianas vende hoje cerca de 200 milhões de pares de chinelos por ano, sendo 10% exportadas e os restantes 90% vendidos no mercado interno, onde a marca detém uma quota de 80% no segmento dos chinelos de borracha.

Quem aprecie o conceito de chinelo minimalista e goste de sentir os pés bem arejados mas não queira ser confundido com a “gentinha” e não esteja disposto a fazer concessões à elegância, tem sempre a possibilidade de adquirir um modelo da Gucci por apenas 630 dólares.

Havaianas Gucci

Bata

O nome Bata poderá ser desconhecido da maioria dos portugueses, mas é o maior fabricante de sapatos do mundo, com uma história que remonta a 1894 e presença em todos os continentes e em todos os tipos de sapato, do calçado de trabalho (Bata Industrials) a sapatos de luxo para senhora. O nome provém do seu fundador, o checo Tomáš Bat’a (1876-1932), descendente de uma longa linhagem de sapateiros, que pode ser rastreada até ao final do século XVI.

Tomáš Bat’a, em 1932

Tomáš tinha apenas 18 anos quando deu início à T & A Bat’a, na sua cidade natal de Zlín, em sociedade com o irmão Antonín e a irmã Anna (o “A” de “T & A”), tendo por capital uma modesta quantia que lhes fora legada em testamento pela mãe e tendo apenas 10 empregados. Ao fim de um ano, a empresa estava à beira da falência, mas Tomáš Bat’a apostou no fabrico de sapatos combinando lona e couro, leves, simples, fáceis de fabricar e baratos, e conseguiu superar a crise; a partir de 1897, com o lançamento do Batovka, um aperfeiçoamento do conceito couro + lona, os negócios prosperaram.

Tomáš cedo se apercebeu das potencialidades da mecanização da produção de sapatos, que começava a desabrochar nos EUA, e, após uma visita, em 1904, às fábricas de calçado de Lynn, perto de Boston, investiu maciçamente na mecanização da sua fábrica de Zlín. A expansão da actividade foi tal que em 1912 a Bata já tinha 600 trabalhadores, número que, puxado pelas encomendas de calçado militar durante a I Guerra Mundial, decuplicou entre 1914 e 1918.

E enquanto a crise económica no pós-guerra liquidou muitas marcas de calçado, o talento empresarial de Tomáš Bat’a permitiu-lhe dar a volta por cima: apostou sobretudo em sapatos muito baratos, beneficiou do espaço aberto pelo colapso da concorrência e investiu na internacionalização, de forma que nem sequer a Grande Depressão, iniciada em 1929, foi capaz de travar o ímpeto da Bata.

Uma loja da Bata na década de 1920

Tomáš Bat’a foi também dos primeiros empresários a perceber a utilidade do transporte aéreo nos negócios e usava amiúde os aviões da empresa para se deslocar; foi num deles que encontrou a morte, em 1932, num acidente no aeroporto de Zlín, quando rumava a Möhlin, na Suíça, onde iria inaugurar mais uma fábrica Bata. Por esta altura, a Bata era um mega-conglomerado com 16.500 trabalhadores e 1600 lojas; a diversificação da Bata, que começara pelos curtumes – um passo previsível num fabricante de calçado – extravasara para as mais variadas actividades, do caminho-de-ferro aos jornais, dos transportes marítimos à indústria cinematográfica, num total de mais de uma centena de sectores económicos e com presença em 60 países.

Um desses países foi a Nigéria, onde, nesse ano de 1932, fatídico para Tomáš Bat’a, a empresa abriu a sua primeira loja de calçado; a forte implantação alcançada pela Bata num país onde, até aí, toda a população não-europeia andara descalça explica que na língua yoruba, uma das mais faladas na Nigéria e países limítrofes (tem hoje um total de 45 milhões de falantes), “bàtà” seja a palavra para “sapato”.

Entretanto, numa visita à Índia, em 1929, a visão de multidões descalças despertara Tomáš Bat’a para a imensa potencialidade dos mercados asiáticos e foi com os alunos das escolas indianas em mente que foi lançado em 1936 o primeiro sapato desportivo da marca. Para o produzir, a Bata ergueu, em 1934, nos arredores de Calcutá, uma fábrica, que acabou por se tornar no núcleo de um povoado que foi baptizado como Batanagar e é hoje um dos pólos da indústria indiana de calçado. O Tennis de 1936 teve um sucesso que extravasou largamente o público-alvo original e tornou-se num do modelos de sapato mais vendidos de sempre. Em 2014, no 120.º aniversário da fundação da Bata, o modelo foi objecto de uma “reedição” (produzida na mesma fábrica de Batanagar da primeira edição), mas, em vez das crianças pobres da Índia, o seu público-alvo eram agora os hipsters endinheirados, sempre prontos a deixarem-se seduzir por “edições limitadas” e pela “nostalgia” (inclusive a nostalgia por experiências que nunca viveram).

Reedição moderna do Bata Tennis de 1936

Os descendentes de Tomáš continuaram a dilatar o império empresarial Bata e nem o desmembramento e anexação da Checoslováquia pela Alemanha nazi, em 1939, nem a II Guerra Mundial conseguiram extinguir a companhia. Quando, no pós-guerra, os regimes comunistas da Europa de Leste nacionalizaram as fábricas da família (a histórica fábrica de Zlín foi posta ao serviço da marca Svit), a Bata renasceu com base em Lausanne, na Suíça. Hoje, sob o comando de Thomas George Bat’a, neto do fundador, tem 30.000 empregados, fábricas em 18 países e um total de 5300 lojas em 70 países, que atendem, em média, um milhão de clientes por dia. Uma das razões pela qual nem todos estarão conscientes da importância do Bata, reside no facto de muitos dos seus produtos serem comercializados sob o nome de dezenas de marcas, como sejam Ambassador (homem), Aquarella (mulher), Bubblegummers (infantil), British Knights (desportivo) ou Pata Pata (chinelos).

Anúncio polaco aos sapatos Bata

Clarks

A Clarks é uma das mais antigas marcas de calçado do mundo: nasceu na vila de Street, no Somerset, em 1825, pela mão dos irmãos Cyrus e James Clark, como C. & J. Clark International Ltd. (que continua a ser o seu nome formal).

Um dos ramos em que a Clarks se distinguiu desde cedo e continua hoje a ser um esteio da sua actividade são os sapatos escolares, um segmento de grande relevância em países em que os estudantes são obrigados a usar o uniforme prescrito pela escola, como é o caso do Reino Unido e de várias das suas ex-colónias. Entre os modelos de sapatos para adultos que granjearam maior notoriedade estão a Desert Boot, desenhada por um bisneto de James Clark e lançada em 1950, e o Wallabee, um mocassim comercializado pela marca a partir de 1967, adaptando o modelo Grashopper, fabricado pela firma alemã Sioux. Os Wallabee continuam a ser produzidos e foram vistos nos pés da personagem Walter White ao longo das cinco temporadas de Breaking Bad.

Secção de expedição da Clarks

Embora o foco principal da C. & J. Clark sempre tenha sido o mercado de massas, a sua vasta gama também inclui sapatos de luxo, nomeadamente a marca de sapatos de homem Bostonian, cujo preço médio ronda os 400-500 euros por par. A Bostonian era a marca mais conhecida produzida pela Commonwealth Shoe and Leather Company, que foi fundada em 1885 e foi adquirida pela Clarks em 1979.

Fábrica da Commonwealth Shoe and Leather Company em Whitman, no Massachusetts

Hoje a C. & J. Clark tem 1400 lojas e franchises espalhadas pelo mundo e o seu volume de vendas em 2019 foi de 1530 milhões de libras, o que não a impediu de, em 2020, ter entrado em pré-insolvência e ter necessitado de uma injecção de capital pela parte da LionRock Capital Partners, de Hong Kong, o que fez a família Clark perder o controlo da empresa, ao fim de quase dois séculos de existência – mais uma “jóia” da indústria britânica em mãos asiáticas. Entretanto, em 2021, o controlo da Clarks sofreu substancial alteração, com a aquisição de 51% da LionRock pela Viva China Holdings.

Hunter

Em 1856, dois empreendedores americanos, Henry Lee Norris e Spencer Thomas Parmelee, estabeleceram-se em Glasgow para fabricar botas, galochas e outros artigos em borracha vulcanizada, um material obtido através de um processo, então recém-descoberto por Charles Goodyear, que conferia firmeza, estabilidade e durabilidade à borracha natural. A firma começou por denominar-se Norris & Co., passou no ano seguinte a North British Rubber Company e acabaria por ganhar o nome de Hunter Boot Ltd. A North British Rubber Company chegou a estender a sua actividade ao fabrico de pneus, bolas de golfe e botijas de água quente, mas o produto que lhe deu fama e que continua hoje a estar no centro da sua actividade são as botas de borracha, cuja procura conheceu um aumento dramático durante a I Guerra Mundial que, na Europa Ocidental, foi disputada, essencialmente, nas trincheiras enlameadas da Flandres e Norte da França – durante esse conflito, só o Exército Britânico comprou à North British Rubber Company 1.2 milhões de pares de botas de borracha.

Fabrico de botas de borracha, North British Rubber Company

Aqui chegados, é imprescindível elucidar uma grande confusão terminológica: em inglês, o termo “galosh” designa apenas um tipo de calçado que se calça sobre outro a fim de o proteger (i.e., um “overshoe”), enquanto em português, “galocha” designa, simultaneamente, esse “sobre-sapato” e a bota de borracha impermeável, ainda que, uma vez que esta é muito mais corrente, o termo “galocha” se tenha “colado” a ela, tendo o primeiro significado sido relegado ao olvido. Curiosamente, “galosh” e “galocha” provêm do francês “galoche”, que designa algo bem diferente: um tamanco com sola de madeira e parte superior em couro; “galoche” provém, por sua vez, do latim tardio “gallicula”, que, por sua vez, provém do latim “gallica solea”, significando “sapato gaulês”, por ser este o calçado usual dos povos da Gália.

Na Grã-Bretanha, aquilo que os portugueses designam por “galocha” recebe o nome de “Wellington boot”, por associação com uma figura histórica que os portugueses conhecem bem: Arthur Wellesley, o 1.º Duque de Wellington, que se distinguiu nas Guerras Peninsulares. Como a maior parte dos soldados de cavalaria do início do século XIX, Wellington usava, em campanha, as “botas hessianas”, de origem alemã, que cobriam a perna até ao joelho, mas, entendendo que estas eram pouco práticas em actividades que não fossem montar a cavalo, instruiu o seu sapateiro para criar uma versão mais curta e confortável, que só chegava a meio da canela. A grande popularidade de Wellington, na qualidade de herói da luta contra Napoleão, levou a que a bota por si concebida ganhasse grande aceitação não só entre os militares como entre as classes altas britânicas e ficasse associada ao seu nome. A denominação manteve-se mesmo quando, em meados do século XIX, as “Wellington” começaram a ser fabricadas também em borracha, tendência a que a North British Rubber Company deu um impulso decisivo. À medida que as botas de borracha baratas se foram vulgarizando, a designação foi perdendo conexão com a bota de montar em couro e “wellingtons” (ou, informalmente, “wellies”) passou a ser sinónimo de “botas de borracha impermeáveis”. Isto na Grã-Bretanha, pois nos EUA o termo mais corrente é “rubber boots” e na Austrália, “gumboots” (ambas as expressões significam “botas de borracha).

O Duque de Wellington na Batalha de Waterloo, por Robert Alexander Hillingford

A Hunter Boot Ltd. foi decisiva para a difusão das botas de borracha na Grã-Bretanha, mas estas acabaram por espalhar-se por todo o mundo, tendo gozado de extraordinária aceitação na URSS, já que a natureza do clima e a planura da topografia faz com que, no Outono e Primavera, vastas áreas do sudoeste da Rússia e da Ucrânia se convertam em lamaçais. Em 1966, a Hunter Boot Ltd. foi comprada pelo fabricante de pneus Uniroyal, que, por sua vez, passou por várias aquisições, fusões e desmembramentos, de que resultou, em 2004, que o fabricante de botas voltou a ser uma empresa independente, agora com o nome Hunter Rubber Company.

Apesar de terem começado por estar associadas a ocupações humildes, como agricultura, pecuária, pesca, alguns tipos de trabalho industrial, construção civil, recolha de lixo e serviços de limpeza, as botas de borracha – mais especificamente as Green Wellington Boots, lançadas pela Hunter em 1956 – foram “elevadas à nobreza” (ou seja, convertidas num popular acessório de moda) quando Lady Diana Spencer foi fotografada com umas em 1980. Ainda hoje os agro-betos gostam de fazer-se fotografar com elas enquanto cuidam do jardim ou visitam o seu “monte” alentejano. A “beautiful people” costuma envergá-las quando visita áreas atingidas por cheias para mostrar solidariedade para com os desvalidos ou quando assiste a festivais de rock em climas chuvosos.