Basta pensarmos nas pessoas do nosso círculo de amigos e familiares para conseguirmos, com alguma facilidade, dar rosto aos números da saúde mental, que atingem valores preocupantes no nosso país. Com efeito, através deste simples exercício, rapidamente percebemos porque é que a ansiedade é a perturbação psiquiátrica mais frequente entre os portugueses (16,5%) ou porque é que a depressão é o problema de saúde mental que vem logo a seguir, atingindo cerca de 8% da população (ver infografia). Mas também nos damos conta de outra coisa: é que muitas destas pessoas que conhecemos sofrem em silêncio, sem que muita gente ao seu redor suspeite sequer do drama que vivem, da dor que sentem. E isto acontece porque “quem vê caras não vê saúde mental” – que é o mote da mais recente campanha de sensibilização sobre este tema, lançada pela Janssen, companhia farmacêutica do grupo Johnson & Johnson.
Mas, afinal, o que é a saúde mental? Este foi o ponto de partida que nos levou a entrevistar Maria João Heitor, presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental (SPPSM), para quem este “é um conceito complexo, produto de interações múltiplas, incluindo fatores biológicos, psicológicos e sociais”, sendo ainda “influenciado por diferenças culturais e pela subjetividade de cada um”. Segundo a também diretora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental e do Serviço de Psiquiatria do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, “saúde mental não é apenas a ausência de doença, mas sim um estado de bem-estar global, em oposição ao sofrimento psicológico, o qual é já considerado o sexto sinal vital quando se avalia alguém”. A dimensão do sofrimento psicológico (a que muitos se referem usando a palavra em inglês distress) é aqui muito relevante, já que “pode interferir na capacidade de lidar eficazmente com qualquer situação do dia a dia”, explica a especialista.
O que justifica a situação em Portugal?
De acordo com os resultados obtidos no primeiro estudo epidemiológico nacional sobre saúde mental, coordenado pelos psiquiatras José Miguel Caldas de Almeida e Miguel Xavier, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal é o segundo país da Europa com maior prevalência de doenças psiquiátricas (22,9%), logo a seguir à Irlanda do Norte (23,1%), “mostrando um padrão diferente do encontrado nos outros países do sul da Europa, nomeadamente Espanha e Itália”, como salienta Maria João Heitor. Questionada sobre os motivos que podem justificar a situação, a médica aponta fatores como “o baixo nível educacional, baixo rendimento, falta de suporte social, condições socioeconómicas precárias frequentemente associadas a critérios de distribuição geográfica e territorial das populações, isolamento social, desemprego e crise económica, bem como discriminação e composição étnica da população”.
A corroborar os números da ansiedade e depressão verificados entre nós, observa-se também um elevado consumo de antidepressivos, sendo que Portugal é o quinto país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) a apresentar o maior consumo destes fármacos, segundo dados do estudo Health at a Glance 2019. Maria João Heitor refere que há consistência nos valores registados, tendo em conta a elevada prevalência de perturbações psiquiátricas, mas adverte que “temos de separar o consumo de antidepressivos – essenciais no tratamento de perturbações depressivas e de perturbações de ansiedade – do consumo de ansiolíticos, na sua maioria benzodiazepinas”. Em relação a estas últimas, destaca que “o consumo de benzodiazepinas deve ser evitado, dado que estes fármacos têm indicações muito precisas, geram dependência pelo que o seu uso tem de ser de curta duração”. Quanto aos antidepressivos, frisa que “devem ser sempre prescritos por um médico de acordo com as indicações terapêuticas aprovadas”, admitindo que “há o risco da automedicação, sobretudo se as pessoas estiverem menos informadas e se o acesso aos serviços for difícil”.
É urgente combater o estigma
É verdade que a depressão e a ansiedade são as condições psiquiátricas mais frequentes e com maior impacto – direto e indireto – não só em termos individuais e familiares, mas também na sociedade como um todo, porém, “são as doenças psiquiátricas mais graves, nomeadamente as psicoses e outras perturbações que se refletem no comportamento e na interação com os outros, o objeto de maior estigma social”. Nas palavras da psiquiatra, “há vergonha e medo por parte das pessoas em sofrimento de se exporem no trabalho, na escola e na própria família”. Desta forma, considera que “o rótulo e a marca de doente mental e a discriminação associada”, constituem “dos maiores responsáveis pela exclusão social e profissional das pessoas com estes problemas e um obstáculo à plena integração e à procura atempada de cuidados”.
Para alterar a situação, defende que “há que fomentar o processo de mudança de atitudes da comunidade face à doença mental”. Nesse sentido, é importante “informar corretamente o público em geral sobre o que é a doença mental, a importância de esta ser precocemente identificada e a existência de tratamentos disponíveis”. Por outro lado, chama a atenção para a “necessidade de se adequarem a programas escolares, desde muito cedo, na aceitação e respeito pela diferença” e ainda considera relevante que “figuras conhecidas falem abertamente da sua experiência pessoal”.
A pandemia e a saúde mental dos portugueses
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Um tema que tem vindo a ser abordado desde o início da pandemia é o efeito desta na saúde mental das populações e, de acordo com Maria João Heitor, muitos são já os reflexos observados. A médica nota que “está a aumentar o número de casos de ansiedade, depressão e de problemas ligados ao álcool e à toxicodependência”. Por outro lado, conclui que “vamos assistir a problemas diferentes ao longo do ciclo de vida” e dá como exemplo “o recém-nascido que se pode ver privado da relação precoce com a mãe, se esta tiver Covid-19, com todas as possíveis consequências de uma vinculação deficitária”. Também os idosos podem vir a ser vítimas, nomeadamente os que apresentam “quadros demenciais ou depressão e que possam estar mais isolados ou abandonados”. Por fim, acredita que “vamos ver mais perturbações de stress pós-traumático”, além de que “podemos ter mais violência doméstica, abusos e maus-tratos”.
O papel dos meios de comunicação social é, pois, de considerar também nesta tarefa, já que “são agentes formadores da opinião pública, têm a capacidade de informar e influenciar o público, mas também de agravar o estigma”. Como tal, sublinha que “é importante aumentar a literacia em saúde mental, inclusive dos jornalistas, para poderem ser um veículo de informação construtiva”, razão por que a SPPSM desenvolve um projeto específico com este objetivo, o INFORMEMENTE.
Acabar com o sofrimento escondido
“Quem vê caras não vê saúde mental” é o lema da campanha de sensibilização lançada pela Janssen, empresa farmacêutica que se dedica há mais de seis décadas à investigação e desenvolvimento de medicamentos inovadores na área da saúde mental.
Tendo em conta as elevadas taxas de prevalência de perturbações psiquiátricas em Portugal, a diretora-geral da Janssen Portugal, Filipa Mota e Costa, explica que “a campanha pretende ajudar a pôr a Saúde Mental na ordem do dia, alertando para os números graves registados em Portugal, ao mesmo tempo que sensibiliza para a necessidade de acabar com o estigma que mascara e encobre a doença mental”. A iniciativa inclui a divulgação de histórias de figuras públicas que sofrem ou sofreram de algum tipo de perturbação psiquiátrica. Para a responsável, esta campanha tem a virtude de contribuir para combater o estigma associado à situação: “Se a sociedade estivesse mais desperta e mais disponível para compreender estas realidades talvez se tivessem evitado outros desfechos.”
Especificando o caso português, acentua que “apenas 15% das pessoas com problemas de saúde mental são acompanhadas, sendo o tempo médio de acesso a cuidados especializados de quatro anos”. Referindo-se em concreto à esquizofrenia – área a que a empresa dedica grande atenção desde a sua fundação – lembra que “o último estudo disponível aponta para a existência de 48 mil doentes no país, estimando que cerca de 7 mil destes doentes não sejam acompanhados, nem no Serviço Nacional de Saúde [SNS] nem no contexto privado”, ou seja, “estas famílias, muitas vezes desestruturadas pelo impacto da doença, expostas na grande maioria dos casos a maiores dificuldades económico-financeiras, não têm normalmente voz nem merecem a devida atenção”, lastima.
Projetos para aumentar e melhorar a informação disponível
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São vários os projetos que a Janssen Portugal tem vindo a desenvolver com o objetivo de ajudar a erradicar o estigma e aumentar a informação disponível sobre o assunto. O Prémio de Jornalismo nesta área é um exemplo disso mesmo, estabelecido em parceria com a SPPSM para destacar boas práticas neste âmbito, já que a companhia acredita que “os média têm essa capacidade de contribuir significativamente e de forma positiva para uma área que precisa tanto de um outro olhar”, refere Filipa Mota e Costa.
Além da promoção e apoio a estudos que melhor ajudem a caracterizar a realidade em Portugal, a empresa é a promotora ainda do Health Parliament Portugal, iniciativa destinada a promover o debate entre especialistas de diversas áreas com vista à apresentação de recomendações para melhorar a saúde em Portugal. Outro projeto a decorrer e que em breve será lançado, é o Guia dos Direitos da Pessoa com Saúde Mental, que irá congregar os principais apoios, direitos e legislação com interesse para os doentes e cuidadores de pessoas com doença mental. Um guia especialmente útil para uma população especialmente frágil. A diretora-geral acredita que este “é um projeto de grande valor para todos”, razão por que a companhia tentará que o mesmo seja disponibilizado.
Falta investimento na saúde mental em Portugal
Mas o que é que impede Portugal de assegurar uma resposta adequada em termos de cuidados na área da saúde mental? Tanto Maria João Heitor como Filipa Mota e Costa coincidem na mesma conclusão: falta investimento. A presidente da SPPSM admite que “progressivamente tem havido uma evolução positiva”, até porque “o Programa Nacional para a Saúde Mental [PNSM] é, desde finais de 2011, um dos programas prioritários a desenvolver pela Direção-Geral da Saúde [DGS]”. Contudo, entende que “a área da saúde mental ainda é um parente pobre”, salientando que “embora a percentagem do PIB para a saúde alocada à saúde mental tenha vindo gradualmente a aumentar, ainda está longe de ser suficiente”.
De igual forma, a responsável da Janssen afirma que “os constrangimentos e desafios que a área da saúde mental enfrenta em Portugal estão há muito identificados”, resultando estes, sobretudo, “de uma não priorização sistemática e de um subfinanciamento crónico”. “Nunca houve um compromisso político sério de investimento neste setor, com o objetivo de dotar o SNS de recursos que permitam melhorar a qualidade de vida destes doentes e seus familiares”, diz, acrescentando que “falta um compromisso transversal e uma adequação dos modelos de financiamento e gestão, bem como uma melhor articulação entre os diversos níveis de cuidados de saúde, nomeadamente os cuidados de saúde primários com os hospitalares”.
Maria João Heitor corrobora, lembrando também que “é necessária uma maior autonomia e capacidade de decisão articulada ao nível do PNSM junto da DGS, das coordenações de saúde mental nas administrações regionais de saúde e localmente”. Por outro lado, e em relação às respostas para as pessoas com doença mental grave, defende que “a não implementação efetiva da Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados de Saúde Mental é um dos maiores constrangimentos”.
Para Filipa Mota e Costa, “a baixa autonomia dos centros de decisão locais e a incapacidade geral de implementação do PNSM compromete a melhoria dos cuidados na comunidade há demasiados anos”, sublinhando que “todas estas questões resultam de a saúde mental não ser olhada como uma prioridade e com a atenção devida, o que é de lamentar pois qualquer dedicação ou investimento nesta área tem um retorno expressivo, quer económico, quer social, como vários estudos indicam”.
No mesmo sentido, Maria João Heitor reforça que “as despesas em saúde e saúde mental têm de ser encaradas como um investimento com retornos garantidos de mais produtividade, riqueza e qualidade de vida, e não como um custo”. Na sua opinião, este investimento deve ir além dos tratamentos, incidindo também na “prevenção, reabilitação psicossocial e reintegração laboral e escolar daquelas pessoas que, mercê dos problemas de saúde mental, tenham ficado temporariamente desinseridas”.