887kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

STEPHANE DE SAKUTIN/AFP/Getty Images

STEPHANE DE SAKUTIN/AFP/Getty Images

Será que ser bilingue mantém o cérebro em forma?

A maioria das pessoas fala mais do que uma língua, o que indica que o cérebro pode ter evoluído de modo a funcionar em várias linguagens. Se assim for, o que perde quem fala apenas um idioma?

Num café no sul de Londres, estão dois trabalhadores da construção civil na galhofa, muito animados a conversar. Quando se entusiasmam mais, os talheres dançam-lhes nas mãos atrás dos gestos largos, e de vez em quando riem que nem uns perdidos. Estão a falar de uma mulher, isso é mais que evidente, mas as minudências escapam-me. É pena, já que parece estar a ser uma conversa divertida e interessante, sobretudo para uma pessoa tão metediça como eu. Só que eu não falo aquela língua.

Vencida pela curiosidade, interrompo-os para perguntar em que língua estão a falar. Sorrindo calorosamente, ambos passam para inglês com a maior das naturalidades, explicando que são sul-africanos e que estavam a falar em xhosa. Em Joanesburgo, de onde são oriundos, a maioria das pessoas fala pelo menos cinco línguas, diz um deles, Theo Morris. Por exemplo, a língua materna da mãe dele é sotho e a do pai é zulu. Theo aprendeu xhosa e ndbele com os seus amigos e vizinhos, e inglês e afrikaans na escola. “Antes de vir para aqui estive na Alemanha, por isso também falo alemão”, acrescenta.

— E foi fácil aprender tantas línguas?

— É normal — responde, a rir.

Theo tem razão. Em todo o mundo, mais de metade das pessoas (60 a 75 por cento, dependendo das estimativas) falam pelo menos dois idiomas. Muitos países têm mais do que uma língua oficial – a África do Sul tem onze. Para além disso, nos dias que correm, cada vez se exige mais saber falar, ler e escrever pelo menos numa das “superlínguas” mundiais: inglês, chinês, hindi, espanhol ou árabe. Assim, ser monolingue, como são muitos falantes de inglês, é estar em minoria, e talvez ficar a perder.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O multilinguismo tem demonstrado muitas vantagens ao nível social, psicológico e de estilo de vida. Os investigadores estão também a descobrir uma vasta série de benefícios de saúde que resultam de falar mais do que uma língua, incluindo a capacidade de recuperar mais rapidamente após um enfarte e a manifestação mais tardia dos sintomas de demência.

Será que o cérebro humano evoluiu para ser multilingue e que aqueles que falam apenas um idioma não estão a tirar o máximo partido do seu potencial? E num mundo que perde idiomas mais rápido do que nunca – ao ritmo atual de um a cada quinze dias, quando chegarmos ao fim do século metade deles estarão extintos – o que acontecerá se a atual multiplicidade de línguas desaparecer e a maioria dos habitantes do planeta acabar por só falar uma?

Os bilingues realizam estas tarefas muito melhor do que os monolingues – são mais rápidos e mais precisos.

Estou sentada ao computador num laboratório, de auscultadores postos, a olhar para imagens de flocos de neve. Sempre que surge um novo par de flocos de neve no monitor, ouço uma descrição. A minha tarefa é simplesmente decidir qual dos dois flocos de neve está a ser descrito. O único senão é que as descrições são feitas num idioma completamente inventado chamado Syntaflake.

O teste faz parte de uma experiência de Panos Athansopoulos, um grego enérgico com uma paixão por idiomas. Professor de psicolinguística e cognição bilingue na Universidade de Lancaster, Athansopoulos está na vanguarda de uma nova vaga de pesquisa em torno da mente bilingue. Como seria de esperar, o seu laboratório de pesquisa é uma autêntica Babel de línguas e nacionalidades, mas nenhum destes investigadores aprendeu Syntaflake em criança.

É uma tarefa estranhíssima e incrivelmente difícil. Normalmente, ao interagir numa língua estrangeira, há pistas que nos ajudam a decifrar significados. Quem fala poderia apontar para o floco de neve, gesticular de forma a descrever formas ou contar com os dedos das mãos, por exemplo. Aqui não há quaisquer pistas e, sendo esta uma língua inventada, nem sequer consigo agarrar-me a semelhanças que possam existir com outras línguas que conheça.

Ao longo do tempo, grupos diferentes de humanos primitivos terão começado a falar idiomas diferentes. Depois, de forma a poderem comunicar com outros grupos – para fazer trocas, em viagem, etc. – alguns dos membros de uma família ou grupo teriam de aprender outros idiomas.

No entanto, passado algum tempo, tenho a sensação de me estar a aperceber de um padrão entre a sintaxe e os sons. Decido-me pela abordagem mais matemática possível e saco de um papel e de uma caneta para anotar quaisquer regras que sobressaiam, decidida a não “chumbar” no teste.

A experiência traz-me à memória um dia em que cheguei a uma vila rural a poucas horas de Pequim e me vi obrigada a fazer-me entender numa língua que não sabia falar nem escrever, com pessoas para quem o inglês era igualmente estranho. Mas mesmo nessa situação consegui descortinar algumas pistas… Agora, sem qualquer interação humana em torno da língua, as regras que determinam os sons que estou a ouvir são impossíveis de entender, e no fim da sessão vejo-me obrigada a aceitar a derrota.

Enquanto a sua equipa analisa os resultados do meu teste, ponho-me à conversa com Athanasopoulos.

Desconsolada, falo-lhe das dificuldades que tive em aprender aquela língua, embora me tivesse esforçado. Ao que parece, foi esse o meu erro: “As pessoas que se saem melhor nesta tarefa são as que não têm qualquer interesse no resultado e só se querem despachar mais depressa possível. Os estudantes e professores que tentam resolver o exercício de forma metódica e encontrar um padrão são sempre quem tem piores resultados”, explica.

“No tempo dado para fazer o exercício, é impossível decifrar as regras do idioma e fazer sentido daquilo que é dito. Mas os nossos cérebros estão preparados para decifrar o significado de forma subconsciente. E é por isso que ao não pensar, o teste até corre bem – as crianças são quem se sai melhor.”

Por estar tão emaranhada com a identidade, a questão da língua torna-se profundamente política.

Pensa-se que as primeiras palavras poderão ter sido proferidas há 250 mil anos, depois de os nossos antepassados terem começado a andar apoiados em duas pernas. A subsequente adaptação da sua caixa torácica permitiu a afinação do controlo nervoso da respiração e o desenvolvimento do tom. E assim que os seres humanos arranjaram uma língua, não devem ter tardado a arranjar muitas.

A evolução da linguagem pode ser equiparada à evolução biológica, mas ao passo que a mudança genética é motivada por pressões ambientais, as línguas alteram-se e evoluem devido às pressões sociais. Ao longo do tempo, grupos diferentes de humanos primitivos terão começado a falar idiomas diferentes. Depois, de forma a poderem comunicar com outros grupos – para fazer trocas, em viagem, etc. – alguns dos membros de uma família ou grupo teriam de aprender outros idiomas.

Pensando nos poucos povos de caçadores-recoletores que ainda existem nos nossos dias, podemos ficar com uma noção mais clara da predominância que o multilinguismo terá tido. “Se olharmos para os caçadores-recoletores modernos, quase todos são multilingues”, diz Thomas Bak, neurologista cognitivo que faz investigação sobre ciência da linguagem na Universidade de Edimburgo. “Não se deve casar e ter filhos com alguém que pertença à mesma tribo ou clã – é tabu. O resultado desta regra é que todas as crianças têm pais e mães que falam línguas diferentes.”

O bilinguismo era desaconselhado, e afirmava-se que as crianças bilingues poderiam confundir-se com as duas línguas e vir por isso a ser menos inteligentes, a ter menos autoestima, a ter comportamentos desviantes ou até mesmo a desenvolver dupla personalidade ou esquizofrenia.

Na Austrália aborígene, onde ainda se falam mais de 130 línguas indígenas, o multilinguismo faz parte da paisagem. “Suponhamos que estamos a andar e a conversar com alguém. Atravessamos um riacho e o nosso companheiro desata a falar outra língua”, expõe Bak. “As pessoas falam a língua da terra.” Há outros sítios em que isto acontece. “Pensemos na Bélgica: se apanharmos um comboio em Liège, os avisos são feitos primeiro em francês. Depois, ao passar por Loewen, os avisos chegam primeiro em holandês, e em Bruxelas o francês torna a vir primeiro.”

A relação entre cultura e geografia é a razão pela qual Athanasopoulos decidiu inventar um idioma novo para a experiência dos flocos de neve. Em parte, a sua investigação consiste em separar a linguagem da cultura em que está enraizada, explica.

Por estar tão emaranhada com a identidade, a questão da língua torna-se profundamente política. A afirmação dos estados-nação europeus e o crescimento do imperialismo ao longo do século XIX fez com que passasse a ser visto como desleal falar noutra língua que não a da nação. Talvez isto tenha contribuído para espalhar a ideia – sobretudo no Reino Unido e nos EUA – de que educar as crianças para serem bilingues era mau para a saúde das próprias crianças e nocivo para a sociedade em geral.

O bilinguismo era desaconselhado, e afirmava-se que as crianças bilingues poderiam confundir-se com as duas línguas e vir por isso a ser menos inteligentes, a ter menos autoestima, a ter comportamentos desviantes ou até mesmo a desenvolver dupla personalidade ou esquizofrenia. Esta visão manteve-se até há muito pouco tempo, e acabou por desencorajar muitos pais imigrantes de falar com os filhos nas suas línguas maternas. Isto apesar de um estudo de 1962, ignorado durante décadas, que demonstrava que as crianças bilingues tinham melhores resultados do que as monolingues em testes de inteligência verbal e não-verbal.

Entretanto, a pesquisa feita ao longo da última década por neurologistas, psicólogos e linguistas, apoiada nos mais recentes desenvolvimentos da neuroimagiologia, tem revelado uma série de benefícios cognitivos para os bilingues. Tem tudo a ver com a forma como as nossas mentes admiravelmente flexíveis conseguem aprender a desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo.

Muitos bilingues afirmam sentir-se diferentes ao falar na sua outra língua.

Se me perguntarem em inglês qual é o meu prato favorito imagino-me logo em Londres, a escolher de entre as minhas refeições londrinas prediletas. Mas se me perguntarem em francês, transporto-me instantaneamente para Paris, e as opções ao meu dispor são completamente diferentes. Assim, a mesma pergunta pessoal terá respostas distintas consoante a língua em que me seja feita. Esta ideia de que com cada língua nova que falamos ganhamos uma personalidade nova, de que agimos de forma diferente ao falar diferentes línguas, é bastante radical.

Anastasopoulos e a sua equipa têm-se dedicado a estudar o potencial que a língua tem de mudar a perspetiva de quem a fala. Numa experiência, falantes de inglês e alemão veem vídeos de pessoas em movimento, como uma mulher a andar em direção ao carro ou um homem a ir de bicicleta ao supermercado. Ao descrever as imagens, os anglófonos concentram-se na ação e tendem a narrar a cena como “uma mulher está a andar” ou “um homem está a pedalar”. Os germanófonos, por seu turno, têm uma visão do mundo mais holística, e tipicamente incluem o objetivo da ação: poderão dizer “uma mulher anda em direção ao carro” ou “um homem vai de bicicleta até ao supermercado”.

Isto deve-se em parte à caixa de ferramentas linguística disponível, explica Athanasopoulos. Ao contrário do que acontece com o alemão, o inglês tem a terminação “–ing” que permite descrever ações que estão a decorrer. Essa característica faz com que os falantes de inglês tenham muito menos tendência do que os de alemão a atribuir um objetivo à ação ao descrever uma cena ambígua. No entanto, ao testar falantes bilingues de inglês e alemão, estes dão prioridade à ação ou ao objetivo dependendo do país em que foram testados. Testados na Alemanha, concentraram-se no objetivo; em Inglaterra, na ação, independentemente da língua usada, demonstrando até que ponto a cultura e a língua se podem interligar e definir a nossa visão do mundo.

Diversos estudos publicados ao longo da última década têm revelado que os bilingues desempenham melhor uma série de tarefas cognitivas e sociais do que os monolingues, desde testes verbais e não-verbais à facilidade de “ler” os outros.

Na década de 1960, Susan Ervin-Tripp, uma das pioneiras no campo da psicolinguística, testou mulheres bilingues de inglês e japonês, pedindo-lhes que completassem determinadas frases nas duas línguas. Descobriu que as mulheres terminavam as frases de forma muito diferente dependendo da língua usada. Por exemplo, “Quando os meus desejos são diferentes dos da minha família…” era completado em japonês como “chegam tempos de tristeza”; em inglês como “faço o que quero”. Outro exemplo, “Os verdadeiros amigos devem…”, era completado como “ajudar-se uns aos outros” em japonês e “ser francos” em inglês.

Com base neste estudo, Ervin-Tripp concluiu que o pensamento humano acontece dentro das limitações de um dado enquadramento linguístico, e que os bilingues têm mentalidades diferentes em cada linguagem – uma ideia extraordinária, que tem no entanto vindo a ser confirmada por estudos posteriores. Muitos bilingues afirmam sentir-se diferentes ao falar na sua outra língua.

Porém, estas mentalidades estão em constante conflito, à medida que os cérebros dos bilingues vão decidindo que língua usar.

Numa experiência esclarecedora, Athanasopoulos pediu aos elementos do seu grupo de bilingues de inglês e alemão que lessem uma série de números em voz alta numa das línguas. O exercício “bloqueava” efetivamente a outra língua por completo, já que ao ver os vídeos de movimentos, as descrições dos bilingues se basearam mais na ação ou no objetivo dependendo da língua que tinha utilizada. Assim, quando recitaram números em alemão, as reações aos vídeos foram mais tipicamente alemãs e baseadas nos objetivos. Quando a enumeração foi mudada para a outra língua a meio, as reações ao vídeo também mudaram.

Como se explica este fenómeno? Haverá mesmo duas mentes distintas em cada cérebro bilingue? O objetivo da experiência dos flocos de neve era perceber isso mesmo. Estou um pouco ansiosa por saber o que o meu fraco desempenho dirá de mim, mas Athanasopoulos garante que os resultados que obtive são parecidos com os de outras pessoas que tinham feito o teste anteriormente – até agora, parecemos estar a confirmar a sua teoria.

"Quando estou a falar com a minha mulher em inglês, às vezes uso palavras em espanhol, mas nunca me sai nada em polaco acidentalmente. E quando estou a falar com a mãe da minha mulher em espanhol, nunca recorro a palavras em inglês porque sei que ela não as entende. Não é algo em que tenha de pensar, é automático, mas a verdade é que o meu sistema executivo está a trabalhar arduamente para inibir as outras línguas."
Thomas Bak, neurologista cognitivo

De modo a avaliar o efeito que a tentativa de entender a linguagem Syntaflake teve no meu cérebro, fiz um teste de outro tipo antes e depois do dos flocos de neve. Nestes flanker tasks (assim chamados por recorrerem a estímulos que “flanqueiam”), vão surgindo padrões de setas no ecrã: o objetivo é carregar no botão esquerdo ou no direito de acordo com a direção da seta que se encontra na posição central. Às vezes o padrão envolvente de setas é confuso, por isso no final da minha primeira sessão tinha os ombros encolhidos quase até às orelhas e estava exausta de tanta concentração. Não é uma tarefa em que se melhore com o treino (a maioria das pessoas tem até piores resultados na segunda sessão), mas quando tornei a fazer o mesmo teste depois de terminar a tarefa dos flocos de neve, saí-me bastante melhor, tal como Athanasopoulos previra.

“A tentativa de aprender a língua nova fez com que a sua performance na segunda volta fosse melhor”, explica. Apesar de me sentir aliviada por pertencer à categoria normal, não deixa de ser um resultado curioso. Que sentido espécie de sentido é que isto faz?

Os flanker tasks são exercícios de resolução de conflitos cognitivos – se a maioria das setas estiver a apontar para a esquerda, o meu instinto imediato era carregar no botão esquerdo, mas no caso de a seta central estar a apontar para a direita essa não era a resposta certa. Vi-me por isso obrigada a bloquear o meu instinto para obedecer à regra. Noutro tipo de teste de conflito cognitivo, os nomes das cores estão escritos em cores diferentes (“azul” escrito a vermelho, por exemplo). O objetivo é dizer em que cor é que cada palavra está escrita, o que não é tarefa fácil, uma vez que somos muito mais rápidos a ler a palavra do que processar a cor em que as letras estão escritas. Ignorar o impulso de dizer a cor que não conseguimos deixar de ler exige um esforço mental considerável.

O córtex cingulado anterior (CCA) faz parte do “sistema executivo” e é a parte do cérebro que gere este esforço hercúleo. Trata-se de uma espécie de caixa de ferramentas de atenção mental, localizada no lóbulo frontal, que nos permite fixar a atenção numa tarefa ao mesmo tempo que bloqueamos informação que poderia causar interferência. É o que torna possível que nos concentremos em múltiplas tarefas, de forma intermitente, sem nos baralharmos. O sistema executivo é quem nos manda avançar perante um semáforo verde e parar no vermelho. É o mesmo sistema que nos pede que ignoremos o significado da palavra lida e nos foquemos na cor das letras.

O teste dos flocos de neve preparou o meu CCA para o segundo flanker task, tal como falar mais do que uma língua parece exercitar o sistema executivo de uma forma mais abrangente. Diversos estudos publicados ao longo da última década têm revelado que os bilingues desempenham melhor uma série de tarefas cognitivas e sociais do que os monolingues, desde testes verbais e não-verbais à facilidade de “ler” os outros. A maior empatia é atribuída a uma capacidade superior por parte dos bilingues de bloquear os seus próprios sentimentos e crenças de forma a concentrar-se nos da outra pessoa.

“Os bilingues realizam estas tarefas muito melhor do que os monolingues – são mais rápidos e mais precisos”, diz Athanasapoulos. E isso parece indicar que o seu sistema executivo funciona de forma diferente do dos monolingues”.

Maior capacidade de concentração e de resolução de problemas, maior flexibilidade mental e facilidade de executar múltiplas tarefas em simultâneo são, manifestamente, competências preciosas na vida quotidiana. Mas talvez a vantagem mais entusiasmante do bilinguismo ocorra na velhice, quando a função executiva tende a entrar em declínio: ao que tudo indica, o bilinguismo pode funcionar como defesa contra a demência.

Aliás, segundo o neuropsicólogo cognitivo Jubin Abutalebi, da Universidade de San Raffaele, em Milão, é possível distinguir bilingues de monolingues apenas ao olhar para imagens obtidas a partir dos respetivos cérebros. “Os bilingues têm significativamente mais massa cinzenta do os monolingues no córtex cingulado anterior, e isso deve-se ao facto de o usarem com muito mais frequência”, afirma. O CCA funciona como um músculo cognitivo, acrescenta: quanto mais se usa, mais forte, maior e mais flexível se torna.

Ao que parece, os bilingues estão constantemente a usar o poder executivo, já que as suas duas línguas se encontram numa disputa permanente por atenção. Os estudos de neuroimagiologia mostram que quando uma pessoa bilingue está a falar uma língua, o seu CCA está permanentemente a suprimir a vontade de utilizar o léxico e a gramática da outra. E, mais do que isso, está sempre a decidir em que circunstâncias e de que forma usar a língua-alvo. Por exemplo, os bilingues raramente se confundem entre línguas, mas podem empregar algumas palavras ou frases na outra língua se souberem que o seu interlocutor também as conhece.

“A minha língua materna é polaco, mas a minha mulher é espanhola, por isso também falo espanhol, e vivemos em Edimburgo, pelo que falamos inglês”, diz Thomas Bak. “Quando estou a falar com a minha mulher em inglês, às vezes uso palavras em espanhol, mas nunca me sai nada em polaco acidentalmente. E quando estou a falar com a mãe da minha mulher em espanhol, nunca recorro a palavras em inglês porque sei que ela não as entende. Não é algo em que tenha de pensar, é automático, mas a verdade é que o meu sistema executivo está a trabalhar arduamente para inibir as outras línguas.”

Para os bilingues, munidos de sistemas executivos musculados, o flanker task é apenas uma versão consciente daquilo que os seus cérebros passam o dia a fazer subconscientemente – não admira que tenham bons resultados.

Talvez devêssemos começar a fazer mais exercícios cognitivos para manter a forma mental, sobretudo se falarmos apenas uma língua.

Maior capacidade de concentração e de resolução de problemas, maior flexibilidade mental e facilidade de executar múltiplas tarefas em simultâneo são, manifestamente, competências preciosas na vida quotidiana. Mas talvez a vantagem mais entusiasmante do bilinguismo ocorra na velhice, quando a função executiva tende a entrar em declínio: ao que tudo indica, o bilinguismo pode funcionar como defesa contra a demência.

A psicolinguista Ellen Bialystok fez esta descoberta surpreendente na Universidade de York, em Toronto, ao comparar uma população envelhecida de monolingues e bilingues.

“Os bilingues mostraram sintomas de Alzheimer quatro a cinco anos depois dos monolingues com a mesma patologia”, afirma.

O facto de estes idosos serem bilingues não os livrou da demência, mas atrasou os respetivos efeitos. Comparando dois indivíduos cujo cérebro apresente sinais semelhantes de progressão da doença, o bilingue começa a apresentar sintomas, em média, cinco anos depois do monolingue. Bialystok acredita que este fenómeno se pode dever à forma como o bilinguismo altera as ligações do cérebro e melhora o sistema executivo, potenciado a “reserva cognitiva”. Quer isto dizer que à medida que certas partes do cérebro sucumbem à demência, os bilingues têm maior facilidade de compensar os danos, recorrendo à massa cinzenta suplementar e aos circuitos neuronais alternativos.

“Os bilingues utilizam os processadores frontais em tarefas que os monolingues desconhecem; dessa forma desenvolvem e reforçam os processadores do seu lóbulo frontal. Assim, são capazes de compensar a degeneração das partes intermédias do seu cérebro”, explica Bialystok. No entanto, não basta ter aprendido um bocadinho de francês na escola. O efeito depende da frequência com que cada indivíduo recorra ao seu bilinguismo. “É tanto maior quanto mais se usa”, afirma, “e não existe um ponto de inflexão. Funciona mais em contínuo.”

Tal como precisamos de fazer exercício físico para manter saudáveis corpos que evoluíram para se adaptar ao estilo de vida fisicamente ativo dos caçadores-recoletores, talvez devêssemos começar a fazer mais exercícios cognitivos para manter a forma mental, sobretudo se falarmos apenas uma língua.

O bilinguismo também pode ser uma tábua de salvação após lesões cerebrais. Partindo de um estudo recente de 600 sobreviventes de AVC (acidente vascular cerebral) na Índia, Bak concluiu que a recuperação cognitiva era duas vezes mais provável para os bilingues do que para os monolingues.

Resultados como estes indicam que o bilinguismo nos ajuda a manter a forma mental. Pode até tratar-se de uma vantagem que a evolução selecionou positivamente nos nossos cérebros – ideia reforçada pela facilidade que temos em aprender línguas novas e passar de uma para a outra, e pela ubiquidade do bilinguismo na história da humanidade. Tal como precisamos de fazer exercício físico para manter saudáveis corpos que evoluíram para se adaptar ao estilo de vida fisicamente ativo dos caçadores-recoletores, talvez devêssemos começar a fazer mais exercícios cognitivos para manter a forma mental, sobretudo se falarmos apenas uma língua.

Nos últimos anos, levantaram-se críticas face aos estudos que demonstram os benefícios do bilinguismo. Houve tentativas falhadas no sentido de replicar resultados por parte de alguns investigadores; outros puseram em causa os benefícios de uma função executiva melhorada na vida quotidiana. Bak escreveu uma refutação das críticas publicadas, e afirma que há hoje provas irrefutáveis, provenientes de experiências psicológicas, apoiadas em estudos de neuroimagiologia, no sentido de que os cérebros dos bilingues e os dos monolingues funcionam de maneira diferente. Os métodos experimentais dos detratores, defende, têm falhas.

Bialystok concorda, acrescentando que, por existirem tantos fatores em jogo, é impossível testar até que ponto o bilinguismo contribui para a melhoria dos resultados de uma prova de avaliação escolar de uma criança. No entanto, afirma, “uma vez que, no mínimo dos mínimos, não faz qualquer diferença – nenhum estudo até à data demonstrou que afetasse negativamente o desempenho – e tendo em conta as muitas e variadas vantagens sociais e culturais de saber outra língua, creio que o bilinguismo devia ser incentivado.” Já no que às vantagens financeiras diz respeito, estima-se que o valor do conhecimento de uma segunda língua pode chegar aos 128 mil dólares ao longo de 40 anos.

Os resultados do meu teste no laboratório de Athansopoulos sugerem que passar apenas 45 minutos a tentar aprender outra língua pode melhorar a função cognitiva. O estudo em causa ainda não está concluído, mas foi já determinado por outras investigações que estes benefícios podem ser alcançados rapidamente. A questão é que desaparecem se não forem usados – e é improvável que eu torne a usar a linguagem inventada dos flocos de neve! Aprender uma língua nova não é a única forma de melhorar a função executiva – jogar jogos de computador, aprender a tocar um instrumento musical e até alguns jogos de cartas podem ajudar – mas tendo em conta que usamos a linguagem em permanência, é provável que se trate do melhor aparelho de exercícios de função executiva que temos ao nosso dispor. Qual será então a melhor forma de aplicar este conhecimento na prática?

Uma hipótese é ensinar as crianças em mais do que uma língua. É o que acontece em muitas partes do mundo: muitas crianças indianas, por exemplo, utilizam na escola uma língua diferente da sua língua materna ou da que é falada na povoação em que vivem. Mas esta não é uma situação comum em países onde o inglês é a língua dominante. No entanto, o movimento em torno da chamada imersão linguística, um método de aprendizagem em que as crianças têm aulas numa língua diferente durante metade do tempo, tem vindo a ganhar força. O estado do Utah, nos EUA, é pioneiro nesta abordagem, e em muitas das escolas públicas é dada a possibilidade de imersão linguística em mandarim ou espanhol.

Como demonstra a investigação recente, não é tempo perdido. O bilinguismo pode ajudar as nossas cabeças a trabalhar melhor e até mais tarde, pela velhice dentro, o que pode vir a ter um enorme impacto na forma como ensinamos os nossos filhos, assim como na nossa relação com os idosos.

“Adotámos um modelo de meio-dia, por isso a língua-alvo é usada para dar aulas de manhã, e à tarde usa-se o inglês – nalguns dias funciona ao contrário, já que alguns alunos têm mais facilidade a aprender de manhã e outros à tarde”, explica Gregg Roberts, membro do Ministério da Educação do Estado do Utah e um dos grandes defensores da aprendizagem de imersão naquele estado. “Temos visto que os miúdos estão pelo menos ao nível dos monolingues, sendo que a maioria tem resultados melhores. Os bilingues demonstram uma maior capacidade de se concentrar e de prestar atenção, assim como mais autoestima. Sempre que aprendemos uma língua diferente, conseguimos perceber muito melhor a nossa própria língua e cultura. Tem vantagens ao nível social e económico. Temos de ultrapassar o monolinguismo.”

Esta abordagem também está a ser testada no Reino Unido. Neil Strowger, diretor da secundária de Bohunt, em Liphook, no Hampshire, introduziu a imersão linguística em chinês nalgumas aulas.

Vou assistir a uma aula de artes de uma turma de jovens de doze anos, orientada por dois professores: um fala inglês e o outro chinês. Os alunos estão atentos, mas em silêncio, concentrados na tarefa de aprender várias ideias. Quando falam, muitas vezes fazem-no em chinês – e há algo de surreal em ver adolescentes no Reino Unido a discutir sobre o street artist britânico Banksy em mandarim. Os próprios explicam que decidiram aprender em chinês porque acharam que podia ser “divertido”, “interessante” e “útil” – conceitos que não podiam estar mais longe das recordações que tenho das aulas enfadonhas de francês na minha escola.

A maior parte dos alunos desta turma de artes irá fazer os exames finais de chinês do ensino secundário com vários anos de avanço, mas Strowger assegura-me que, para além dos resultados académicos, o programa deu origem muitos outros benefícios, incluindo a melhoria geral do empenho e da satisfação dos alunos, que demonstraram também estar mais atentos às outras culturas, o que faz deles cidadãos globais mais aptos, expandindo os seus horizontes e melhorando as suas perspetivas de emprego.

E o que pode fazer quem já não anda na escola? De forma a manter os benefícios do bilinguismo é preciso ir usando as línguas adquiridas, e isso pode ser difícil, sobretudo para pessoas mais velhas, que podem ter menos oportunidades de as pôr em prática. Talvez precisemos de clubes de línguas, onde as pessoas se possam encontrar para falar noutros idiomas. Bak levou a cabo um pequeno estudo piloto com idosos que aprenderam gaélico na Escócia e deu conta de melhorias significativas ao fim de apenas uma semana. Agora pretende conduzir um estudo bem mais alargado.

Nunca é tarde para aprender uma língua nova, e a experiência pode ser muito gratificante. O britânico Alex Rawlings é um poliglota profissional que fala quinze idiomas: “Cada língua traz consigo todo um novo estilo de vida, uma nova camada de significado”, afirma. “É viciante!”

“Há quem diga que é demasiado difícil aprender línguas em adulto. Mas eu diria que se torna bem mais fácil a partir dos oito anos de idade. Um bebé demora três anos a aprender uma língua, ao passo que um adulto consegue fazê-lo em poucos meses.”

Como demonstra a investigação recente, não é tempo perdido. O bilinguismo pode ajudar as nossas cabeças a trabalhar melhor e até mais tarde, pela velhice dentro, o que pode vir a ter um enorme impacto na forma como ensinamos os nossos filhos, assim como na nossa relação com os idosos. Entretanto, faz todo o sentido falar, hablar, parler, sprechen, beszél, berbicara e to speak em tantas línguas quantas nos for possível.

Tradução: Francisca Cortesão

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.