Um atleta, um cantor, um ator ou qualquer outra figura com exposição pública, percebe que atingiu um estatuto pouco habitual de relevância quando entra naquilo que pode ser chamado de domínio do nome próprio. Ou seja, quando é facilmente, obviamente e imediatamente reconhecido apenas pelo primeiro nome — sem necessidade de apelidos, de profissões, de parentescos. Cristiano não mais precisará do Ronaldo logo a seguir para que se saiba de quem estamos a falar; Bruce e Freddie raramente são confundidos mesmo que Springsteen e Mercury não surjam na mesma frase; Meryl, no mundo do cinema e em todos os outros, é uma das atrizes mais celebradas de sempre sem ser Streep. Na ginástica, Simone Biles já pode ser só Simone. Na ginástica, no desporto, nos Estados Unidos e um pouco por todo o lado, Simone já entrou no domínio do nome próprio.
A vida da ginasta norte-americana — que um dia, sem sombra de dúvidas, dará origem a um filme daqueles biográficos estilo blockbuster que vai bater recordes nas salas de cinema tal como ela bateu nas competições — podia estar dividida em capítulos. O capítulo da infância, entre uma mãe problemática mas uma solução feliz que culminou com a entrada no desporto; o capítulo do passo rumo ao topo, quando deixou a escola dita regular e começou a ter aulas em casa; o capítulo de 2016, que precisa de poucos adjetivos; o capítulo Larry Nassar, cujos adjetivos serão sempre parcos; e o capítulo 2019, uma espécie de ressurreição de quem nunca desapareceu e só decidiu mostrar ao mundo inteiro que nasceu para dar voltas no ar durante aquilo que parecem por vezes minutos. Ao contrário do que acontecerá no filme daqueles biográficos estilo blockbuster, a vida de Simone Biles ainda não tem capítulo final. Esse, pelo menos no que diz respeito à vida profissional que a tornou apenas Simone, poderá ter lugar no próximo verão. Até lá, é preciso recordar como é que a mulher que mudou o paradigma da ginástica no mundo inteiro e para sempre chegou onde nunca ninguém tinha chegado.
Esta semana, Simone Biles conquistou a 21.ª e a 22.ª medalhas da carreira em Mundiais de ginástica ao vencer com a equipa norte-americana a prova coletiva e ainda a prova individual e tornou-se a mulher mais medalhada de sempre da história dos Mundiais — para além de se sagrar campeã do mundo pela quinta vez. Algo que só aconteceu porque aos seis anos, no início do novo milénio, uma visita de estudo lhe mostrou pela primeira vez um ginásio, um trampolim e atletas a dar piruetas no ar. Algo que só aconteceu, muito provavelmente, porque Nellie e Ron tomaram uma decisão da qual nem todos seriam capazes. Nellie e Ron, literalmente falando, são os avós maternos da ginasta (ainda que, biologicamente, só Ron o seja, já que Nellie é a segunda mulher do antigo controlador aéreo). Mas Nellie e Ron, legalmente falando, são os pais da ginasta. Simone e os três irmãos, dois mais velhos, uma mais nova, entraram no sistema de acolhimento de crianças graças aos problemas de alcoolismo e toxicodependência da mãe, Shanon. Quando descobriram que os quatro netos estavam a saltar de casa em casa, de família em família, Nellie e Ron acolheram as crianças temporariamente, numa altura em que já tinham três filhos. Em 2003, quando a ginasta tinha seis anos e o período de acolhimento se esgotou, o casal avançou para a adoção formal de Simone e da irmã mais nova, enquanto que a irmã de Ron, tia-avó das quatro crianças, adotou os dois irmãos mais velhos.
No dia da visita de estudo, voltou para casa com um formulário de inscrição e disse que gostava de experimentar. “A primeira vez que a vi ela estava sentada no chão com as pernas esticadas. Pôs as mãos de lado e puxou as pernas direitas até à barriga. Aos seis anos. Isso não é normal. E a musculatura dela no geral. Estava à espera da vez dela nas barras e não conseguia ficar quieta. E depois vi que passou de estar sentada para estar em pé apenas com um movimento, num colchão normal. Aquilo era tudo energia cinética do corpo dela. Pensei: ‘Wow, esta miúda é qualquer coisa'”, recordou Aimee Boorman ao The Undefeated. Boorman treinou Simone Biles desde o primeiro dia, desde esse dia em que a viu deixar de estar sentada para passar a estar em pé apenas com recurso à força nas pernas, até 2016 e ao pós-Jogos do Rio de Janeiro. Para a treinadora, foi imediata a certeza de que Simone Biles tinha “uma noção do ar sobrenatural”. “Não é algo que se ensine. Sabem aquelas pessoas que têm um equilíbrio incrível? Bem, imaginem ter esse equilíbrio sem os pés no chão enquanto estão a rodar e a girar e saber exatamente quando é que têm de aterrar para não morrer”, completou Boorman.
Simone começou a treinar. Não faltava um treino, aliás, mesmo que estivesse doente. Durante todo esse tempo, apesar da dedicação absoluta, nunca teve o momento típico do filme biográfico estilo blockbuster em que entende que o ginásio, o trampolim, as barras e as argolas são os sítios onde pertence. “Era muito nova e só sabia que era muito divertido e queria fazer aquilo tudo. Mas não era aquela sensação de ‘oh, pertenço mesmo aqui'”, explicou ao The Guardian há algum tempo, acrescentando depois que só percebeu que tinha de tomar uma decisão — entre avançar para construir uma carreira ou abrandar e fazer da ginástica um hobby — quando estava no nono ano. Para entrar na elite, treinar o máximo de horas por semana e tornar-se profissional, teria de começar a ter aulas em casa. Nellie, a mãe, explicou-lhe que isso significava não ir ao baile de finalistas, não ter atividades extra-curriculares, não estar com os amigos depois da escola. Depois de um fim de semana de ponderação, Simone escolheu a ginástica — o que não significa que os anos seguintes tenham sido fáceis.
“Estava sempre muito solitária. Tinha saudades dos meus amigos e da escola e de tudo isso. Mas pronto, no final, tudo resultou. Houve um clique. Decidi que queria ser melhor. Não queria apenas mostrar a minha capacidade, queria que a minha capacidade fosse boa de ver”, recordou a ginasta. Os anos que se seguiram foram de constante evolução: foi campeã do mundo em 2013, 2014 e 2015, campeã nacional em todos esses anos e depressa começou a apontar baterias ao Jogos Olímpicos de 2016. Treinava 32 horas por semana, uma vez por dia às segundas, quartas e sábados e duas vezes por dia às terças, quintas e sextas. Domingo, o único dia de folga, era o dia da família. O dia em que Nellie, Ron, Simone e a irmã Adria iam à igreja e jantavam em conjunto.
Nesta altura, no filme biográfico estilo blockbuster, assistiríamos a uma montagem de imagens de Simone Biles a treinar, cada dia mais forte, cada dia melhor, numa sequência que recordaria Sylvester Stallone em modo Rocky Balboa a treinar pelas ruas de Filadélfia para derrubar Apollo Creed. Nos Jogos Olímpicos do Brasil, em 2016, a ginasta que na altura tinha apenas 19 anos conquistou quatro medalhas de ouro e uma de bronze e garantiu, praticamente sozinha, que a equipa dos Estados Unidos tivesse uma medalha em cada evento de ginástica pela primeira vez desde 1984. Com os quatro ouros, Simone tornou-se a atleta norte-americana mais medalhada na ginástica numa única edição dos Jogos e a primeira a ganhar quatro provas desde a romena Ecaterina Szabo, 32 anos antes. Na cerimónia de encerramento, o Comité Olímpico dos Estados Unidos escolheu-a para transportar a bandeira do país, tornando-a a primeira ginasta a assumir essa responsabilidade. O Brasil, os Estados Unidos e o mundo pararam para ver, aplaudir e elogiar Simone — quer soubessem aquilo que estava a fazer quando não tinha os pés no chão ou não — e a atleta tornou-se uma celebridade a nível global. Mais do que isso, abriu um precedente e mudou o paradigma da ginástica internacional.
Até 2016, até ao Rio e até Simone Biles, existia a ideia sempre subjacente de que as ginastas, assim como as bailarinas, tinham de ser esguias, sem musculatura, com as medidas perfeitas e com um pouco natural encobrimento da puberdade e da evolução do corpo da mulher. Esta, sem tirar nem pôr, era a definição de elegância. Simone, com as coxas musculadas, os braços firmes, o torso forte e as mãos pequenas e robustas, mostrou que a elegância podia ser algo ambíguo: e que uma ginasta com um aspeto mais corpulento do que esguio podia ser tão ou mais elegante do que uma ginasta estilo bailarina. Esta inversão naquilo que havia sido uma regra durante décadas veio mudar também a forma como a evolução das ginastas é pensada e efetuada — até Simone, a noção de que uma atleta de ginástica tinha de começar muito pequena, por volta dos três anos, para realizar uma formação ao longo da idade e chegar ao nível profissional e competitivo na altura dos 16 anos, era praticamente uma lei. Porquê? Porque nesse curto espaço de tempo, entre os 16 e os 19 anos, a puberdade, o alargar das formas, a passagem de um corpo de menina para um corpo de mulher eram ainda possíveis de ultrapassar. A partir daí, a carreira de uma ginasta, pelo menos das norte-americanas, tornava-se de desgaste ultra rápido e as mais novas tinham sempre prioridade em relação às mais velhas. Simone, com 19 anos, com formas e com um corpo que já não era de menina, mostrou que um corpo musculado de mulher podia ganhar medalhas. E, no caso dela, tornar-se o melhor de sempre.
Depois dos Jogos Olímpicos, e numa decisão que Simone já conhecia antes de viajar para o Rio, Aimee Boorman deixou o ginásio onde treinava há décadas e deixou a ginasta. No círculo mais próximo da atleta, soaram os alarmes: existia a forte possibilidade de, depois de ter conseguido praticamente tudo aquilo que queria no Brasil e depois de ficar sem o pilar que a acompanhou durante toda a formação, Simone Biles decidir terminar a carreira aos 19 anos. “Sim e não. Naquele momento, senti mesmo que estava tudo feito. Mas existia uma pequena chance de querer voltar. Toda a gente me dizia ‘ah, tu vais voltar’. E eu acho que até combati essa ideia”, explicou a ginasta à CNBC. Depois dos Jogos, limitou-se a anunciar que ia parar durante um ano — e ninguém sabia se esse era um primeiro passo para uma paragem permanente ou se era uma porta aberta a um regresso. Durante o ano sabático, escreveu a autobiografia “Courage to Soar” em conjunto com uma jornalista, participou no programa de televisão “Dancing With The Stars” e escolheu novo treinador, o franco-americano Laurent Landi. No início de 2018, anunciou que tinha voltado aos treinos. Mas o início de 2018 significou muito mais para Simone Biles do que um simples regresso aos treinos.
Logo em janeiro, quase um ano depois de o escândalo surgir pela primeira vez na comunicação social, a ginasta confirmou que foi uma das centenas de jovens atletas abusadas por Larry Nassar, o antigo médico da seleção olímpica de ginástica dos Estados Unidos. “Eu também sou uma de muitas sobreviventes que foram sexualmente abusadas pelo Larry Nassar. Existem muitas razões que me deixaram relutante quanto à decisão de partilhar a minha história, mas eu sei que a culpa não é minha”, escreveu Simone Biles no Twitter, numa publicação que também incluía a hashtag #MeToo. No dia seguinte, o antigo médico foi condenado a 175 anos de prisão. E a ginasta, que recentemente confessou que lhe é difícil “confiar” na USA Gymnastics depois de tudo o que aconteceu, reconheceu que o passo mais complicado de dar foi precisamente aquele que sublinhou assim que partilhou a história: o de entender, aceitar e perceber que não tinha culpa de nada.
“As estatísticas dizem que uma em três raparigas é abusada sexualmente. Isto é ridículo. Ensinamos às raparigas que têm de se tapar em vez de ensinarmos aos rapazes a não tocar nas raparigas? Culpam as roupas, aquilo que as raparigas vestem, dizem que estão a pedi-las. Lamento, mas ninguém pediu nada. Nunca é culpa da rapariga e acho que foi isso que mais me custou entender — que não era culpa minha”, disse Simone ao The Guardian. As nódoas negras deixadas por Larry Nassar e por todo o mediatismo do caso, por muito que só se tenha associado ao escândalo numa reta final, ensinaram a ginasta a encontrar ferramentas para cuidar dela própria e desenhar limites. “Faço terapia para lidar com tudo porque tive dias em que não queria pôr um pé no ginásio. Mas vou deixar que isso me afaste da minha paixão e dos objetivos que ainda tenho? É só mais um obstáculo para ultrapassar (…) As emoções e a dor, és ensinado a lidar com isso. Mas hoje em dia, se não estou 100% concentrada, não vale a pena ir e fingir. Porque o que eu faço é perigoso, é de alto risco. Quando somos mais novos, não temos escolha: vamos para o ginásio até se estivermos doentes. Mas se eu me sentir doente, para que é que vou torturar-me?”, explicou.
Em 2018, voltou a ser campeã nacional e mundial (com um cálculo renal) e marcou a diferença ao usar um maillot verde-petróleo, a cor designada internacionalmente para representar as vítimas de agressão sexual. Até que chegamos a 2019. Este ano, ao ser novamente campeã absoluta nos Estados Unidos, tornou-se a primeira mulher em 70 anos a conquistar este título seis vezes: e como se isso ainda não chegasse, decidiu ser a primeira mulher na história a executar na perfeição um triple double, um duplo salto mortal com três rotações. No final da performance, ciente de que tinha alcançado aquilo a que se tinha proposto e mais ainda, riu-se, festejou e não escondeu a alegria. Antes, na trave, já se tinha tornado a primeira ginasta de sempre, homem ou mulher, a conseguir uma saída perfeita de duplo mortal com dupla pirueta. Dito assim, tudo parece simples e quase sem significado; com as imagens, percebe-se que Simone Biles é um atentado à gravidade. De forma expectável, aquilo que fez durante aquele fim de semana de agosto teve todo o destaque na comunicação social norte-americana e internacional. Mas foi o USA Today, através de um artigo de opinião, que melhor descreveu o que significa para a ginástica aquilo que a ginasta alcançou.
Normal heart rate:
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/⠀ ⠀ ⠀ ⠀ /When @Simone_Biles becomes the first woman in history to hit a triple-double:
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⠀ /⠀⠀ /⠀⠀ /#USGymChamps pic.twitter.com/C4AcN6dMWG— Team USA (@TeamUSA) August 12, 2019
“Imaginem Muhammad Ali no Rumble in the Jungle. O jogo em que o Michael Jordan estava com gripe. A vitória da Serena Williams no Open da Austrália enquanto estava grávida. O Michael Phelps a ultrapassar o Milorad Cavic para ganhar a sétima medalha de ouro nos Jogos de Pequim. Há noites (…) em que somos recordados de que estamos a ver grandeza à frente dos nossos olhos. E não é a grandeza de que se fala quando se trata de todos os atletas acima da média. A verdadeira grandeza é aquela que as pessoas vão recordar durante décadas, reproduzindo os detalhes como se tivesse acontecido apenas um ou dois anos antes”, escreveu Nancy Armour. O passar dos anos, da experiência e da vitória, levou Simone Biles a criar e a inventar cada vez mais, executando movimentos inéditos e que nunca tinham sido vistos em competição: hoje em dia, existe um Biles no trampolim, um Biles na trave e um Biles e um Biles II nos exercícios de solo. Se a ginasta já só precisa do primeiro nome, o apelido vai ficar para sempre ligado ao desporto que a catapultou para o sucesso.
Tudo isto, mais do que torná-la um símbolo feminista do empoderamento das mulheres, tornou-a também um símbolo racial do empoderamento das mulheres negras — assim como Serena Williams no ténis, por exemplo. Algo que, para Simone, não faz qualquer sentido. “Para mim, eu sou apenas a Simone. Nunca penso ‘ah, sou a primeira afro-americana a ganhar isto ou aquilo. Toda a gente enfia isso nas nossas cabeças. Nunca penso ‘oh meu Deus, sou a primeira isto, a primeira aquilo’. Faço ginástica porque gosto de me divertir. Nunca trago a raça para nada disto”, garantiu a ginasta, que entretanto foi ainda abalada pela acusação de triplo homicídio feita a um dos irmãos.
Em março, antes dos campeonatos nacionais e mundiais, anunciou que os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, devem ser os últimos em que participa. Aos 22 anos, em entrevista ao programa “Sportswomen” da Sky Sports, explicou que não se sente com condições físicas para continuar a treinar da forma exigida por uns Jogos. “Planeio definitivamente que os Jogos de Tóquio sejam os últimos. Sinto que o meu corpo já passou por muita coisa e está a cair aos pedaços. Tenho dores durante grande parte do tempo”, afirmou, numa linha de pensamento que foi ao encontro de uma entrevista dada no mesmo mês ao Daily Mail. “A dor é algo com que vivo e isso é um pouco estranho para a minha idade, certo? Parece estranho quando não tenho dores. Tenho tido alguma sorte com as lesões mas têm acontecido algumas coisas. Já rasguei um dos gémeos duas ou três vezes, parti uma costela em 2016 e tenho um dedo do pé que está destruído em cinco pedaços desde os últimos Jogos. Se andamos a saltar no ar o tempo todo, às vezes a gravidade diz que não”, explicou, acrescentando depois que costuma dizer que vai “estar numa cadeira de rodas aos 30 anos” e que sente que o corpo “está a gritar e a berrar” para que pare de competir. A dúvida, a única que permanece, é se o adeus imediato é apenas aos Jogos Olímpicos ou se a ginasta vai deixar todas as competições pouco depois de completar 23 anos.
Esta semana, nos Mundiais que estão a decorrer em Estugarda e antes de conquistar as duas medalhas que já fizeram história, Simone Biles surgiu nos treinos com um maillot prateado com o apelido escrito nas costas e a representação de um bode por baixo (goat, em inglês, o acrónimo para greatest of all time, melhor de todos os tempos). É, atualmente e desde há vários anos, a atleta mais dominante do mundo: Serena Williams perde partidas, Roger Federer perde jogos, Michael Phelps perdia corridas, Lewis Hamilton perde provas; Simone Biles não perde uma competição em que participa há seis anos. Compete apenas contra ela própria há muito tempo e aprendeu a não deixar que isso crie demónios. Afinal, Simone Biles é a melhor de sempre a manter o equilíbrio e a aterrar de pé.