Reportagem em Banguecoque, Tailândia
“Nós não queríamos acreditar.” Thapanee Rodjam, trabalhadora da Airports of Thailand (AOT) e colega de Saman Gunan, recorda o momento em que ouviu dizer pela primeira vez que o ex-fuzileiro tinha morrido na operação de resgate aos Javalis Selvagens, na caverna de Tham Luang. “Dizíamos uns para os outros nos corredores: ‘Não digas uma coisa dessas, não digas uma coisa dessas’. Estávamos em negação total. Só quando as notícias saíram é que percebemos que não era um rumor. Infelizmente, era 100% realidade.”
Saman Gunan, de 38 anos, morreu na passada sexta-feira, por volta da 1h da manhã (hora local). Perdeu os sentidos quando estava a regressar do fundo da gruta de Tham Luang, depois de ter ido levar garrafas de oxigénio à zona onde os 13 rapazes e o seu treinador estavam encurralados. O mergulhador que seguia com ele tentou reanimá-lo, mas já não havia nada a fazer. Sam, como é conhecido pelos amigos, acabaria por morrer no local e tornar-se a única vítima fatal de toda a odisseia de Tham Luang.
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Na sede da AOT, em Banguecoque, os colegas ainda se estão a recompôr do choque. Gunan, fuzileiro retirado, trabalhava como segurança no aeroporto Suvarnabhuma, da capital tailandesa, desde 2007 e mantinha uma vida muito ativa, amparada pelas atividades proporcionadas pela empresa. Fazia parte do clube de ciclismo — gerido por Thapanee —, mas também do de atletismo. Para além disso, participava em provas de triatlo e de endurance. Era um atleta completo — e, garantem os colegas ao Observador, um ser humano ímpar.
“Assim que saíram as notícias de que os miúdos estavam desaparecidos, ele foi o primeiro daqui a usar dias de férias dele para ir lá, por pura iniciativa própria. Isto foi ainda antes de a Marinha pedir voluntários”, conta Thapanee. Partiu então para Mae Sai, a quase 900 quilómetros de distância da sua casa, para oferecer os seus serviços como antigo militar da Marinha. “Vamos trazer os miúdos para casa”, prometeu num vídeo antes de partir.
Rapidamente os trabalhadores da AOT se mobilizaram para fazer turnos que acabassem por ir render Sam e os restantes voluntários da empresa. Enquanto esteve em Tham Luang, o mergulhador ia mantendo os amigos informados através do sistema de mensagens Line: “Dizia ‘precisamos disto, tragam aquilo’ para que o próximo turno de voluntários levasse coisas para a gruta”, relata Dilokkun Nopakkun ao Observador. Amigo próximo de Sam, também ele trabalha como segurança no aeroporto — ao contrário dos restantes trabalhadores, a farda denuncia-lhe o cargo imediatamente — e pedala com ele no clube de ciclismo. “Nos últimos dias ele andava a escrever mensagens a dizer que estava cansado de carregar tantas garrafas de oxigénio e que estava ansioso para que tudo acabasse bem e viesse a prova que temos marcada para agosto.”
A última mensagem que Sam enviou para o grupo da AOT foi às 8h da manhã do dia quatro de julho. Acabaria por morrer menos de 48 horas depois.
Um desportista que até “corria pela cidade ao sair do trabalho”
O percurso militar de Sam nos fuzileiros terminou há mais de 10 anos. Apesar disso, o tailandês “continuou a manter contacto com os antigos companheiros” de armas e a participar nas provas desportivas militares, como a própria Marinha tailandesa anunciou em comunicado. “Os seus esforços e a sua determinação serão para sempre recordados no coração de todos os mergulhadores”, disse a organização.
Contudo, o seu passado como militar não era tema que abordasse frequentemente, como explica ao Observador Korakot Phraepriungam, do departamento de Landside. Embora não fosse próximo de Sam, classifica-o como “uma das pessoas mais trabalhadoras que já conheceu na vida”. “Ele não falava muito sobre isso porque, quando se é fuzileiro, não se anda por aí a dizer a toda a gente. A maior parte de nós sabia apenas porque, como esta empresa em tempos foi geridas pelos militares, os concursos para entrar favorecem quem tem experiência militar, que era o caso dele.” Claro que, assim sendo, esse se tornou um segredo de polichinelo — e muitos colegas, como a jovem Chumpunuch Waree, tratavam-no carinhosamente por “Sargento Sam”.
Na AOT, só uma pessoa conhecia o Sargento dos tempos da Marinha: Annsit Yodprang, antigo membro da Força Aérea, que já tinha criado o que chama de “uma ligação militar fraterna” com Sam, alimentada pelo gosto pelo desporto. “Eu gosto de futebol, ele gostava de escalada, ciclismo e de todos os desportos malucos. Desde que ele começou a trabalhar aqui, tornámo-nos ainda mais próximos. Eu entrei em 2006, ele em 2007, os dois como seguranças. Depois acabámos por ficar a trabalhar em departamentos diferentes, quando eu vim para o [Departamento de] Airside, mas mantivemo-nos próximos.”
Todos os colegas ouvidos pelo Observador falam desse amor pelo desporto. Thapanee revela que o antigo fuzileiro era o representante da empresa nas competições de ciclismo e atletismo contra outras empresas públicas. “E todos os anos trazia uma medalha, esse era o padrão dele”, resume. Para além disso, nos tempos livres, ainda praticava triatlo e participava em provas de endurance com a North Face Adventure Team, para a qual foi convidado.
O seu dia-a-dia era guiado pelo desporto. Se estava escalado para o turno das 8h às 17h, era certo que ia treinar para a pista do aeroporto no final. Se estivesse no turno contrário, entrava mais cedo para ir correr ou pedalar. “E quando não tinha tempo de ir treinar na pista”, conta o segurança Dilokkun, interrompendo a narrativa para se rir um pouco e abanar a cabeça, incrédulo, “corria pela cidade quando saía do trabalho!”
Preocupava-se com nutrição, dava conselhos aos outros sobre o que comer. Preocupava-se com o físico e fazia vídeos a ensinar rotinas de treino, fazendo flexões e outros movimentos. Mas não era auto-centrado, dizem os colegas, nem obcecado apenas com o físico. Antes pelo contrário.
“Era um homem com muito humor”, recorda Thapanee — e capacidade de se rir de si próprio. Como exemplo, a ciclista lembra-se de uma prova em que havia um concurso de máscaras a seguir para o qual a AOT não tinha sido avisada. “Ele disse ‘Não faz mal, eu resolvo’. Pegou num tecido aos quadrados que é muito típico aqui na Tailândia, enrolou uma parte à volta das pernas, outra na cabeça e disse: ‘Pronto,estou mascarado de camponês’. Os outros eram o Batman, o Capitão América, com máscaras todas profissionais… e ele era o camponês!”, conta, entre gargalhadas.
O amigo Dilokkun recorda outras atitudes mais sérias, mas igualmente tocantes: “O clube de ciclismo tem feito um evento todos os anos que é pedalar de Banguecoque a Khao Yai, são cerca de 200 quilómetros. Nós dividimo-nos em dois grupos, o dos ciclistas mais fortes e o dos menos fortes, e os mais fortes seguem à frente. O Saman, que era o mais forte de todos, ia para o fundo do pelotão e ficava literalmente a ajudar a empurrar pelas costas os que tinham mais dificuldades. E ia dizendo ‘tu consegues!’”, diz o segurança, mostrando uma fotografia para ilustrar a situação. “Ele era assim, sempre a puxar pelos outros.”
“Parecia que o céu também estava triste com a partida dele”
Fora do trabalho, Sam dedicava-se a passar tempo com a mulher e a montar o seu novo negócio — uma quinta de perus. “Tinha recebido o primeiro equipamento no dia 15, a empresa estava a começar. Infelizmente, não conseguiu ver o seu sonho a realizar-se…”, lamenta-se Dilokkun.
A mulher do sargento, Waleeporn Gunan, confirmou à BBC o caráter altruísta do marido: “Ele adorava ajudar os outros, contribuir para questões de caridade, fazer as coisas andar”, resumiu. “Sinto-me como se tivesse morrido, mas ainda estou viva”, declarou.
Waleeporn esteve na base militar de Chon Buri, para onde o corpo de Sam foi inicialmente levado, antes de ser transportado para a sua região natal de Roi Et — será aí o funeral, este sábado. Dilokkun também lá esteve e ajudou a carregar o caixão. O Rei da Tailândia já anunciou que assumirá as despesas do funeral, a Marinha ofereceu-se para subir a patente de Gunan e a AOT tem como política dar apoio económico à família em caso de morte súbita de um dos seus trabalhadores. Nas redes sociais, as homenagens de tailandeses e estrangeiros multiplicam-se, com a expressão “herói” a ganhar lugar de destaque. Waleeporn e os amigos apreciam os gestos, mas sabem que nenhum dinheiro nem nenhuma homenagem poderão ser suficientes, porque não trazem Sam de volta.
“Congratulations kids, take care. I have to go.” RIP Sgt Saman Gunan – the “hero of Tham Luang cave”. #thaicave #thaicaverescue #thamluang pic.twitter.com/C67XCwFcvA
— James Massola (@jamesmassola) July 10, 2018
De qualquer das formas, para tentar lidar com a dor, as homenagens continuam a ser feitas também pelos mais próximos. No dia da morte de Sam houve uma cerimónia improvisada no aeroporto Suvarnabhuma, organizada pelo clube de ciclismo. “Demos uma volta à pista, todos, em homenagem. Estava a chover muito… Parecia que o céu também estava triste com a partida dele”, comenta Chumpunuch.
Aos colegas e amigos, restam as memórias das várias histórias em que Sam foi protagonista. Como aquela em que ajudou um bombeiro exausto, no final de uma prova, levando-o ao hospital e permanecendo à beira da cama até este ter alta. “Quando contaram agora ao bombeiro que o Sam tinha morrido, ele não conseguia parar de chorar”, acrescenta Thapanee.
Dilokkun, o segurança e amigo mais próximo de Sam no aeroporto, tem de regressar ao trabalho. Mas não parte sem antes mostrar uma fotografia ao Observador: “Está a ver esta menina? Apareceu numa das provas, ainda andava numa bicicleta sem pedais, estava a aprender. O Sam virou-se para ela, apertou-lhe a mão e disse-lhe ‘continua a aprender, um dia vamos correr juntos’. E depois fizeram continência um ao outro. O Sam era assim. Motivava as pessoas, levava-as a fazer o seu melhor. Não só no desporto, mas também na vida.”