“Entendemos a posição do Bloco de Esquerda como definitiva”. A tarde de domingo, a três dias da votação do Orçamento do Estado, ficou marcada pelos novos episódios do drama orçamental que pareceram afastar definitivamente bloquistas e socialistas. Depois de o Bloco ter confirmado que se prepara para votar contra o Orçamento, apesar de se dizer disponível para negociar até ao último minuto, o Governo não demorou a contra-atacar e a dar, publicamente, a negociação por encerrada. E, nas últimas horas antes de ser conhecida a posição do PCP, nenhuma das partes acredita que haja margem para voltarem a conversar — o que deixa tudo nas mãos dos comunistas.
Quando os jornalistas foram avisados de que o Governo se preparava para fazer uma conferência de imprensa, informaram, em direto, uma Catarina Martins apanhada de surpresa. A líder bloquista acabava de anunciar, a partir da sede do BE em Lisboa, que o partido mantinha a intenção de votar contra o documento, acusando o Governo de “desperdiçar” o momento de alívio das regras orçamentais europeias para tomar medidas “duradouras para a economia e para a sociedade”.
Ainda assim, com uma ressalva: “Se até à próxima quarta-feira o Governo entender negociar o Orçamento, o Bloco responderá com disponibilidade e clareza”. “Não temos muito tempo, mas ainda há tempo”. A essa hora, nas hostes bloquistas garantia-se que não só existia “tempo” como também margem: nas pensões, o Bloco não pede apenas o corte puro e duro do fator de sustentabilidade, que o Governo rejeita liminarmente, mas também o recálculo de pensões mais penalizadas; no trabalho, havia medidas a considerar além daquelas que têm estado no centro da discórdia, como o fim da caducidade da contratação coletiva.
Fosse como fosse, e enquanto no Bloco se garantia que esta disponibilidade para negociar até ao fim não se trataria de uma manobra de “bluff”, no Governo preparavam-se as munições para a conferência de imprensa seguinte. Passava apenas cerca de uma hora desde que Catarina Martins tinha acabado de falar quando o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e a ministra da Saúde, Marta Temido, se sentaram em frente aos microfones para fazer a sua própria declaração orçamental, com Cordeiro a começar por registar e “lamentar” o anúncio do Bloco. Minutos depois, e apesar de frisar várias vezes a “disponibilidade” — não “retórica” — do Governo para negociar, sentenciaria: o anúncio do BE fora visto no Governo como definitivo.
A guerra pelo controlo da narrativa
O objetivo da declaração aos jornalistas seria resumido, alguns minutos depois, também por Cordeiro: “Os partidos já viabilizaram Orçamentos que não tinham nem de perto nem de longe os avanços que este tem. São matérias que registamos e que temos obrigação também de projetar para fora”.
Por outras palavras: tanto Bloco de Esquerda como PCP já deixaram, noutros anos, passar Orçamentos com menos medidas para a esquerda — pelo que, deixou implícito, não se compreenderia se este não fosse aprovado, tendo em conta as cedências que o Governo foi fazendo pelo caminho. Um argumentário conveniente para uma altura em que rejeitar o ónus de uma possível crise é essencial… mas que poderia servir igualmente bem para um argumentário eleitoral, caso a crise se confirme.
E o Governo tem “obrigação” de “projetar para fora” essas cedências, continuou. Ou seja: não existia qualquer medida nova ou anúncio para fazer; mas, confrontado com a conferência de imprensa em que o Bloco anunciou publicamente que o Governo acumulara “recusas” atrás de recusas, o Executivo decidiu contra-atacar e tentar ganhar o controlo da narrativa mediática.
Para isso, Cordeiro tinha ao seu lado as ministras de duas das pastas que abrangem medidas mais importantes para a esquerda, e que durante largos minutos recapitularam todas as cedências que o Executivo fez nestas semanas de negociação. A ideia era clara: passar a ideia de que o Bloco “se fechou”, como o secretário de Estado descreveu, num nicho muito específico de propostas — são nove, sobre Saúde, leis laborais e pensões — e não está a avaliar o documento como um todo, mesmo depois de na sexta-feira, na Comissão Política Nacional do PS, António Costa ter revelado mais um conjunto de alterações orçamentais.
“Não vale a pena estarmos aqui com retóricas se mantivermos as regras”, sugeriu Cordeiro, que insistiu uma e outra vez em lembrar que — apesar das críticas globais que o BE faz ao Orçamento — tem apresentado propostas sempre naquelas três áreas, o que torna “difícil” haver margem de manobra na negociação.
Minutos depois da conferência de imprensa, praticamente dedicada por inteiro a desconstruir os argumentos do Bloco, a distância aumentava: um membro do Executivo dizia ao Observador que o Bloco “não pediu reuniões” nem “a análise de mais nenhuma proposta para além das nove”. “Não vemos o que se pode alterar entretanto”, até quarta-feira, resumia.
Do lado dos bloquistas, o desalento era semelhante: “Encerram assim”, comentava-se depois da conferência de imprensa do Governo. “Não parece” haver espaço para negociação, depois de o Governo se ter limitado a “reapresentar o Orçamento”, criticava fonte bloquista.
Comité Central já se reuniu. Tudo nas mãos do PCP
Se do lado do Bloco se colocam vários cenários — a atitude do Governo pode explicar-se por vários motivos, desde estar ainda a colocar as suas fichas num acordo com o PCP a querer ir a eleições, como têm sugerido os dirigentes bloquistas nos últimos dias — certo é que o nó só poderá ser desatado, ou ainda mais apertado, quando o PCP transmitir as conclusões da reunião do Comité Central, esta segunda-feira.
A decisão está, por agora — e matematicamente falando — com os comunistas: o Bloco até conseguiria, sozinho e com uma abstenção, viabilizar o documento. Mas depois da tarde de declarações e contra-declarações (que ainda incluiu uma intervenção da líder parlamentar socialista, Ana Catarina Mendes, acusando o partido de empurrar o país para as mãos da direita) o fosso entre Bloco e PS tornou-se ainda mais profundo. A confirmar-se esse voto contra, só PCP, somado a PEV e PAN (que anuncia o sentido de voto segunda-feira de manhã) poderá deixar o Orçamento passar.
Com isto em mente, António Costa foi, na sexta-feira, à Comissão Política do PS pedir apoio — que obteve — para seguir em frente com as negociações e incluir no Orçamento uma série de medidas que tocam sobretudo as áreas prioritárias para o PCP: alargar a gratuitidade das creches, os aumentos nas pensões (que passam de pensões até apenas 658 euros para 1087 euros), o mínimo de existência (com mais 170 mil pessoas isentas de pagar IRS), entre outras. Mas Costa também fez uma ressalva: os partidos já conheciam estas propostas — o que significa que, ao criticarem o documento, já estariam na posse desta informação, que poderia não ser então suficiente para mudarem de posição.
No sábado, a TVI noticiava que, apesar da posição dura que os comunistas assumiram este ano nas negociações, a ronda negocial do PCP pareceu, ainda assim, mais frutífera do que a do Bloco: o partido de Catarina Martins arrumou o assunto com um comunicado enviado aos jornalistas logo após sair de São Bento, garantindo não ter havido novas aproximações, embora frisando “abertura” para negociar. Já o PCP manteve-se em silêncio, mas voltou, da parte da tarde, para nova reunião, segundo o canal de televisão.
Neste esforço final para tentar fazer o Orçamento passar e evitar um cenário de eleições antecipadas é certo que António Costa conta com o apoio de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente da República também decidiu entrar no episódio do drama orçamental deste domingo, vindo à tarde dizer ver com “apreço” o “esforço para alterar bastante a proposta inicial do Orçamento” e registando que este “é talvez o ano em que há mais alterações fruto da negociação”. Algumas dessas alterações até “são muito profundas”, e “isso significa um esforço que continua a ser feito para se chegar a bom porto”, elogiava o chefe de Estado.
Marcelo tem, nas suas múltiplas declarações sobre Orçamento, deixado claro que prioriza — sobretudo em tempos de aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência, mas também de um possível regresso da pandemia — a estabilidade política e o esforço de todas as partes para chegarem a acordo, sob pena de convocar eleições se não houver um entendimento. Seria “uma solução radical” e uma “complicação”, tem respondido António Costa. Nesse capítulo, Presidente e primeiro-ministro parecem, a julgar pelas declarações públicas, estar de acordo. Mas isso não chega: falta saber se os últimos esforços de Costa podem ter surtido algum efeito junto do até agora irredutível PCP.