Um grupo de cidadãs ucranianas que chegaram a Portugal como refugiadas de guerra alega ter sido forçado a abandonar a cidade da Guarda e a fixar-se em Fornos de Algodres no final de abril. Uma das mulheres do grupo, Olga (que pediu para que o apelido não fosse revelado), conta, em declarações ao Observador, que a mudança foi comunicada pelo chefe de gabinete do presidente da Câmara da Guarda e justificada como sendo uma “ordem” do Alto Comissariado para as Migrações — tinham “uma hora” para arrumar tudo e fazer a viagem. A autarquia atira a decisão para o organismo que é responsável pelo acolhimento e pela integração de refugiados. Ao Observador, o Alto Comissariado justifica a transferência com o facto de só naquele outro local ter sido encontrada uma casa para realojar todo o grupo.
Olga foi uma das primeiras ucranianas a chegar a Portugal depois do início da guerra, a 24 de fevereiro. Viajou de autocarro desde a Polónia, com a filha de 8 anos, e chegou à Guarda a 9 de março. Num primeiro momento, foi colocada na Pousada da Juventude da cidade mas, passado um mês, foi informada de que seria transferida, juntamente com a filha de 8 anos e outros seis elementos de um grupo de 100 pessoas, para as instalações do Centro Apostólico D. João de Oliveira Matos, numa zona poucos quilómetros a norte.
“Vieram umas pessoas falar connosco e disseram-nos que teríamos de ir para o Centro Apostólico, mas que poderíamos ficar ali o tempo que fosse preciso até arranjarmos trabalho e orientarmos a nossa vida”, recorda a ucraniana de 27 anos. “Levámos a nossa roupa, e passámos a viver com outras 100 pessoas, entre mulheres, alguns homens e muitas crianças”, todos na condição de refugiados (alguns, originários da Índia e do Paquistão, de religião muçulmana, que trabalhavam na Ucrânia quando a guerra começou). Foram todos acolhidos pela Câmara Municipal da Guarda, alguns dos quais com uma passagem por Lisboa antes de serem levados para a região da Beira Alta. Os problemas começaram logo nas primeiras semanas após a chegada.
Dois meses de conflitos e um grupo minoritário sinalizado
Há versões contraditórias sobre o que se passou nos dois meses em que as refugiadas foram acolhidas na Guarda, até serem informadas de que teriam de partir.
Do lado do grupo de ucranianas, ouvem-se queixas sobre as condições que estavam a ser oferecidas no centro apostólico. “Houve dias em que a comida não chegava. Estávamos sem dinheiro, perguntávamos por que razão não havia comida suficiente, porque queríamos saber onde estavam os documentos que nos permitiam começar a procurar trabalho, porque tinham falado em 10 dias e já estávamos ali há um mês.” Alguns também falam da questão da carne não adequada aos muçulmanos.
As explicações que a autarquia deu sobre esta questão concreta foram escassas. Mas o Observador sabe que o grupo é acusado de ter mostrado uma atitude hostil em relação a outros refugiados que foram sendo acolhidos no centro nas semanas seguintes à sua própria chegada. Entre os relatos recolhidos, há acusações de que o acesso a alimentos era controlado por elementos desse grupo sinalizado pelo Alto Comissariado para as Migrações. Num determinado momento, e depois de as autoridades policiais serem mesmo chamadas ao centro, foram encontrados sacos com alimentos que estavam guardados nos quartos individuais de algumas destas mulheres, de forma a que os restantes não tivessem acesso a determinadas frutas e legumes disponibilizados pela autarquia.
Novamente do lado das refugiadas, ouviram-se também queixas sobre a pessoa colocada pela câmara no centro apostólico, em regime de voluntariado, para acompanhar o grupo. Olga fala numa “mulher da Rússia” que ajudaria na tradução entre as línguas ucraniana e portuguesa e de quem o grupo estava em grande medida dependente para comunicar com os responsáveis da autarquia, com elementos da escola onde os filhos tinham sido colocados e com os serviços públicos portugueses (como o SEF, as Finanças e outros).
Dois dias antes de serem informados de que deveriam abandonar o alojamento na Guarda, o grupo questionou a voluntária designada pela câmara sobre a forma como as crianças — todas com menos de 8 anos —, que estavam a ser integradas nas escolas do município, eram deixadas a largas centenas de metros do centro apostólico ao final da tarde e de como se esperava que percorressem o resto do caminho a pé, sozinhas.
A discussão escalou, houve gritos e a voluntária terá lançado a ameaça: “Se vão falar assim comigo, tenho poderes para tirar-vos daqui”, relata Olga ao Observador.
Na Guarda — ao contrário do que aconteceu em Setúbal, onde um cidadão russo interrogou vários refugiados que foram colocados no concelho sobre os familiares que ficaram na Ucrânia, sobre o seu local de origem e outros dados pessoais — não houve recolha de informações que pudessem pôr em causa a segurança dos que ficaram para trás para combater contra os militares russos. Mas a presença dessa voluntária teve um efeito sobre o grupo. “Não percebemos porque é que uma mulher da Rússia estava connosco. Com tudo o que se está a passar na Ucrânia, é horrível que nos tenham feito isto”, desabafa Olga. “Nunca percebemos porque é que ela tinha sido colocada junto do grupo.”
O Observador questionou a autarquia sobre a nacionalidade da voluntária, sobre a relação com o município e sobre as funções que exercia junto do grupo. Sem fazer referências o país de origem da mulher, o chefe de gabinete do presidente da Câmara da Guarda disse apenas que “existe alguém responsável pelo espaço, como é natural, e indicada também pela comunidade ucraniana” da cidade. Ao que o Observador apurou, a voluntária, Natália, vive há cerca de duas décadas na Guarda e, sempre que um processo judicial assim exige, a sua empresa é contratada pelo tribunal para serviços de tradução de russo e ucraniano para português.
15 minutos de tensão e um ultimato: “Têm uma hora para apanhar as vossas coisas”
Esse apoio na comunicação entre os elementos do grupo de refugiadas e os responsáveis da autarquia terá sido uma das razões para que a voluntária do centro estivesse também presente na reunião para que Olga e as restantes mulheres foram convocadas no dia 21 de abril. O encontro deveria servir para falar sobre oportunidades de “trabalho” e sobre o início das “aulas de português” para o grupo, mas o tema acabou por ser muito diferente.
Nessa reunião, o grupo deparou-se com três elementos da Câmara Municipal da Guarda: a responsável da autarquia pelo acolhimento de refugiados, Alice Pereira, a voluntária da autarquia e o chefe de gabinete do presidente da autarquia.
Olga e outras mulheres do grupo foram então informadas de que teriam, nesse mesmo dia, de reunir os seus bens pessoais e partir — iam ser transferidas para outro local. “Tivemos hoje a informação de que vai haver uma transferência de pessoas daqui para Fornos de Algodres, também no distrito da Guarda”, anunciou o chefe de gabinete do presidente da Câmara da Guarda, António Aguiar Silva, assim que o encontro começou. “Esta indicação é do Alto Comissariado para as Migrações, nós não temos qualquer influência nesta decisão”, acrescentou. Dois minutos depois, já as mulheres sobrepunham as suas vozes à do responsável da autarquia, nalguns momentos em inglês, logo a seguir em ucraniano.
Apesar de o Alto Comissariado para as Migrações ser o organismo responsável pela gestão dos processos de acolhimento e integração de refugiados em Portugal, foi à autarquia que coube comunicar ao grupo que seriam enviados para outra localidade. Ao Observador, a Câmara da Guarda refere que a informação foi transmitida “através do Gabinete de Crise Para Apoio aos Refugiados da Ucrânia” e que os responsáveis autárquicos se limitaram a “proceder conforme indicação do ACM”.
“Disseram-nos que tinham recebido queixas sobre nós, que éramos maus”, relata Olga. O grupo tentou saber de onde tinham partido as queixas mas ficou sem resposta. Quis perceber por que razão só aquele grupo de oito pessoas — seis mulheres e duas crianças — teria de deixar a Guarda, mas foi-lhes garantido que não seriam os únicos. “Hoje são vocês, amanhã são outros”, assegurou António Aguiar Silva.
Numa resposta por escrito às questões colocadas sobre este caso, e em que se procurou perceber o que motivou a designação destes refugiados para a transferência, a autarquia garante “desconhecer” a existência de queixas específicas contra os elementos deste grupo. E justifica que o acolhimento de refugiados “é um processo dinâmico, onde durante o período de permanência em Portugal as pessoas podem ser deslocalizadas, sempre de acordo com as informações e indicação do ACM até se encontrar uma integração e habitação definitiva”.
Mas o Observador sabe que, no encontro do dia 21, o chefe de gabinete do presidente da Câmara da Guarda se justificou com o “facto” de terem sido apresentadas “imensas reclamações” — só não especificou às refugiadas que tinha à sua frente qual o conteúdo das reclamações nem qual a sua origem. E, até este momento, mais nenhum refugiado foi retirado do centro apostólico e transferido para outro local.
Naquela tarde de 21 de abril, a tensão subiu ainda quando o chefe de gabinete do presidente da Câmara da Guarda ditou: “Têm uma hora para apanharem as vossas coisas, porque às 16h o autocarro chega para transferir-vos” para as novas instalações, a 40 km dali. “Dão-me uma hora para ir arrumar as minhas coisas?! Para ir buscar a minha filha à escola? A sério?! A sério?!”, reagiu Olga, em inglês, perante os responsáveis da autarquia.
Mas não foi preciso ir buscar a filha à escola. Por essa altura, enquanto Olga e as outras mulheres pediam explicações e se recusavam a abandonar a cidade, as duas crianças — de 4 e 8 anos —, que tinham começado a frequentar as aulas poucos dias antes, eram recolhidas por um “homem desconhecido”, segundo o relato da ucraniana. Os detalhes daquilo que terá acontecido nesse momento ficaram registados na queixa que, nessa mesma noite, o grupo apresentou na esquadra da PSP e a que o Observador teve acesso.
“No final da nossa conversa sobre esta mudança, Vera e Olga ouviram as vozes das suas crianças. Depois da conversa com os nossos filhos, descobrimos que um homem desconhecido, sem avisar os pais, levou as crianças das aulas, sem deixar que levassem as coisas pessoais.” A descrição continua: “Por causa disso, D. [a criança de 4 anos] ficou muito assustado e fez xixi nas calças e chorou muito todo o caminho. R. [a criança de 8 anos, filha de Olga] ficou afetada por pensar que fez algo de errado, por ser assim levada da escola no meio da aula.”
As duas crianças não falavam português; o “homem desconhecido” que as recolheu não falava ucraniano. A autarquia diz tratar-se de “pessoal devidamente identificado” e “reconhecido nas respetivas escolas” e considera não ter “ocorrido uma situação anómala” naquela recolha. Mas nada diz sobre uma comunicação prévia às mães sobre a recolha antecipada e não anunciada dos dois menores. Pouco depois da recolha, as crianças foram entregues às mães.
Tinham uma hora para partir. Saíram ao fim de cinco dias
Esse dia 21 de abril foi o culminar de um crescendo de tensão entre parte dos 100 refugiados instalados na Guarda.
Olga, de 27 anos, e os restantes ucranianos continuaram a recusar deixar a Guarda. Depois da reunião em que foram informados de que teriam de partir, apresentaram queixa na PSP para relatar o episódio em que as crianças foram levadas da escola, alegadamente sem o consentimento dos pais.
Quase uma semana mais tarde, houve nova tentativa para transferir o grupo para Fornos de Algodres. Nesse dia 26 de abril, além dos funcionários da autarquia, estava presente uma pessoa que se apresentou como membro da secção do Porto do Alto Comissariado para as Migrações.
“Reuniu-se com o grupo todo, as 100 pessoas, e explicou-nos os nossos direitos, disse-nos que poderíamos trabalhar em Portugal, que íamos receber todo o apoio necessário. Mas também insistiu: tínhamos de ir embora da Guarda”, conta Olga ao Observador. Ao representante do Alto Comissariado, voltaram a pedir informações sobre as queixas em que teriam sido visadas e sobre as razões pelas quais estavam a ser forçados a mudar de localização. “Mostre-nos o papel. Mas ele não mostrou nada.”
Ao Observador, o Alto Comissariado para as Migrações confirma a decisão de transferir o grupo da Guarda para outro local. “Os dez cidadãos acolhidos pela Câmara Municipal da Guarda encontravam-se no espaço de acolhimento de Nível II (alojamento coletivo temporário com utilização até 90 dias) há dois meses, aguardando uma alternativa de habitação autónoma (Nível III), que permitisse acolher um agregado desta dimensão”, começa por explicar esta que é a instituição que integra a task force do Governo de resposta à situação de Emergência na Ucrânia e de apoio às pessoas deslocadas da Ucrânia para Portugal.
Sem detalhar as razões que levaram a que este grupo, em concreto, tivesse sido selecionado para ser transferido, o ACM refere que “a alternativa” para o acolhimento “surgiu em Fornos de Algodres, numa habitação T4”. Em resposta por escrito, a instituição garante que “o agregado aceitou a transferência, que se realizou no dia 26 de abril, estando a família satisfeita com o alojamento”.
De facto, nesse dia, o grupo decidiu partir. Ainda terá sido pedido aos responsáveis da Câmara Municipal da Guarda que um dos elementos, que tinha conseguido uma proposta de emprego em Lisboa e tinha viagem marcada para a capital no dia seguinte, pudesse ficar mais uma noite na Guarda. Não pôde.
Olga, a filha e os restantes elementos estão há quase duas semanas em Fornos de Algodres. E, agora, não pensam em voltar à Guarda. Nas últimas semanas, foi pesquisando no YouTube por vídeos em português que a ajudassem a aprender a língua, mas ainda só arranha um “obrigada”, um “bom dia” e pouco mais. “Agora, ficamos aqui. Não temos mais nada, só queremos obter a [autorização de] residência em Portugal e trabalhar. Não queríamos vir para Portugal mas, depois, começou a guerra e viemos. Não viemos para ficar a viver de ajudas, só queremos trabalhar. E queremos paz.”
Do lado da autarquia, além de não serem avançados ao Observador detalhes sobre todo este processo — nem sequer sobre os conflitos descritos ao Observador como tendo sido provocados pelos elementos deste grupo de seis mulheres —, a postura é de discrição total. “Não temos conhecimento oficial de qualquer problema. O espaço é o mesmo e as pessoas alojadas na Guarda têm tido as condições físicas e humanas capazes para estarem confortavelmente instaladas.”