Fernanda Martins, de 84 anos, e Maria, de 77, ficaram as melhores amigas, tal qual um duo de adolescentes inseparáveis, no projeto de empreendedorismo social A Avó Veio Trabalhar. A chegada da pandemia não interrompeu o hábito das conversas diárias. Pelo contrário, reforçou-o, sobretudo depois de Fernanda ficar temporariamente desalojada. A Proteção Civil identificou o apartamento onde morava, no Bairro Alto, como estando em risco de colapso e a amiga Maria prontificou-se a oferecer teto. Estão a viver juntas há quatro semanas, o que significa que estão a passar o segundo confinamento na companhia uma da outra. “Eram duas pessoas que viviam sozinhas há imenso tempo, tivemos receio que pudesse dar faísca”, comenta Ângelo Campota, mentor do projeto. Mas a coisa tem corrido bem: partilham as despesas e as tarefas da casa, e fazem serões juntas. Às vezes, diz, estão até às três ou quatro da manhã a conversar.
“A Maria é como se fosse uma pessoa da minha família. Não tinha essa companhia no primeiro confinamento, embora eu seja uma pessoa muito alegre. Costumo dizer que sou uma bocadinho maluquinha”, diz a “avó” Fernanda ao Observador. A pandemia trouxe circunstâncias inesperadas e aproximou ainda mais as duas mulheres, reforçando os laços de amizade num momento de apreensão e medo generalizados. A sociedade pode estar de portas trancadas mas, agora, é mais fácil as “avós” continuarem a fazer “parvoíces” e a descobrir segredos uma da outra: Fernanda nunca diria que Maria, mais reservada, tem o hábito de andar pela casa a cantar.
De acordo com um inquérito online ICS-ISCTE realizado no final de março, sobre o primeiro confinamento, 1% de uma amostra de 11.500 inquiridos (residentes em Portugal e maiores de 16 anos) confinou com amigos. Este grupo minoritário diz essencialmente respeito a pessoas mais jovens e que estavam a estudar. Mas não é só nesta observação que se mede a importância da amizade: numa altura em que a pandemia estava ainda a começar e era, de certa forma, uma novidade, 3% dos inquiridos admitiam estar a prestar apoio emocional e material aos amigos e, entre as dificuldades sentidas durante o recolhimento, a falta de contacto social com familiares e amigos foi uma resposta transversal a todas as idades (ainda que com maior incidência entre os mais jovens). “Foi salientada a falta de amigos no sentido do conforto, do desabafo e do afeto”, explica a investigadora Rita Gouveia, que refere que já no início de tudo era claro que o digital não podia substituir o estar face a face.
É certo que as relações de amizade têm diferentes significados de pessoa para pessoa, que vão mudando ao longo do tempo e são influenciadas por transições, como mudar de escola, entrar na faculdade, começar um relacionamento, ter filhos ou mudar de cidade. É costume dizer que os amigos são a família que escolhemos, verdade até certo ponto. Até estas relações são condicionadas por fatores como a classe social, o capital cultural, a religião ou até o trabalho. “Há eletividade e constrangimentos em tudo”, refere a também socióloga da família Rita Gouveia. Se há amigos que prestam um apoio mais expressivo e estão lá para os desabafos, outros têm uma conotação mais lúdica. Ambos são importantes, mas mais uns do que outros podem ser seriamente afetados pela pandemia que veio restringir contextos culturais. “Se algumas amizades são mais associadas ao que se faz e não ao que significam, então, podem sair danificadas ou beliscadas.” A possibilidade de as manter torna-se mais difícil quando há restrições sociais e confinamentos.
Tensão, vigilância social e até controlo entre amigos
Não é só a falta de contextos lúdicos que pode atrapalhar, nesta fase, uma relação entre dois amigos. A Covid-19 veio trazer uma realidade acrescida: o facto de as pessoas terem formas diferentes de lidar com a crise sanitária e diferentes perceções de risco pode acrescer alguma tensão, vigilância social e até controlo. Ou seja, a forma como reagimos às novas regras desenhadas para combater a pandemia pode ser um novo critério para formar e reformar amizades, tal qual a classe social, a idade ou os gostos em comum. “A questão da confiança têm influência nas práticas, sobre com quem escolho estar ou quem vou convidar para vir a minha casa.” Além disso, “qualquer decisão de interação passa a ser em rede, o que faço com esta pessoa, tal como nas relações sexuais, não passa apenas por mim, mas também com quem vou estar a seguir”, continua Gouveia, falando na hipótese de existir um certo policiamento entre amigos.
Liliana Marques, que no Instagram tem mais de 7 mil seguidores, tem partilhado naquela rede social alguns comportamentos inapropriados registados dentro e fora do período do confinamento, como festas e reuniões ilegais. Após a publicação das primeira denúncias, outras histórias foram chegando. Algumas tiveram palco no Instagram de Liliana, outras nem por isso. O que notou — ela que ganhou mais seguidores do que aqueles que perdeu à conta destas divulgações — foi que as pessoas estavam “desejosas de falar sobre isto”. “Houve muita gente que conhecia as pessoas que estavam naquelas festas, uma até chegou a ser convidada mas recusou”, comenta. Os comportamentos “chocantes” levaram ao desabafo por vezes incrédulo entre os seguidores e a criadora de conteúdos digitais.
Um dos casos que denunciou dizia respeito a uma pessoa mais próxima, pelo que foi “difícil saber o que fazer”. “Não me ia sentir bem a expor a situação sem falar com ele… o caso até ficou mais mediático”, diz, e a divulgação acabou por criar uma cisão entre ambos. “Não era amigo, mas sim conhecido. Ele até falava bastante comigo sobre o que eu estava a denunciar e, depois, acontece aquilo tudo…” Os danos estavam feitos.
O facto de a pandemia conseguir ser tão polarizadora está relacionado com o medo e com a ansiedade, alerta a psicóloga clínica Cláudia Morais. “Em qualquer relação valorizamos o facto de as pessoas se importarem com o que sentimos”, atesta, esclarecendo que o relaxamento face às normas pode até ser visto como um ataque pessoal para quem está no espectro oposto. Mas é preciso reconhecer que a realidade dos outros é, por norma, “mais densa” do que aquilo que observamos e é também necessária “mais compaixão e menos julgamento”, alerta Morais. “Estamos todos muito mais sensíveis e com os sentimentos à flor da pele, até porque ainda estamos a fazer o luto da liberdade que perdemos e isso pode interferir nas relações.”
Rita Gama, de 30 anos, não perdeu nenhuma amizade, mas houve um amigo “com uma visão muito contrária à da pandemia e de conspiração” cuja proximidade entre ambos se esbateu. Nunca chegou a existir uma discussão acesa, antes “debates com ideias divergentes”, mas Rita, que até agora optou por ter uma postura mais cuidadosa face à crise sanitária, recorda como ele insistia para estarem juntos presencialmente. “Eu dizia que não, sentia-me desconfortável… Houve ali momentos em que me senti a má da fita, eu é que estava sempre a dizer que não. Ficámos menos próximos por causa disso.” Rita explica que em causa está uma pessoa cuja amizade vem desde a infância e reconhece que, por isso mesmo, “houve mais tolerância”.
O grande contraste no círculo de amigos de Liliana Marques foi perceber que havia quem pensasse que o regresso à normalidade fosse ser muito rápido. Ela, que já se preocupava ainda antes de haver casos em Portugal, acabou ter, desde o começo, um discurso muito diferente, o que criou “bastante tensão” em algumas amizades. “Houve alturas em que se podiam fazer coisas, sobretudo no verão, em que meti um travão. Não queria colocar ninguém em risco, as minhas atitudes podiam ser um veículo de transmissão, e havia amigas que não percebiam isso.” Por esse motivo, passou ao lado de jantares em casa de amigos, “onde o controlo do número de pessoas presentes não ia acontecer”, e passou também ao lado de férias com as amigas. “A forma como cada um encara o que é importante para a saúde mental é muito íntima, ninguém pode decidir por mim. Não me sentia confortável, nem à vontade. Não queria fingir que estava tudo bem. Naquele momento sei que isso gerou tensão, não percebiam a minha postura, mas as coisas acabaram por ficar bem. São pessoas muito próximas, se não fossem, ou se não houvesse este à vontade, se calhar não se tinha resolvido o conflito.”
As amizades que se rompem com maior facilidade são aquelas que já estão mais moribundas e são mais superficiais e circunstanciais, admite a psicóloga clínica Alexandra Barros, que diz que o confronto entre “covideiros e negacionistas” espelha, de uma forma geral, a intolerância da sociedade pela diferença. “Na ausência de interesse ou compatibilidade momentânea passamos à frente. Mas o medo é o principal potenciador de rutura”, esclarece.
Ó não, mais uma conversa por Zoom
Se no primeiro confinamento houve uma ânsia coletiva para pôr a conversa em dia e uma adesão significativa às videochamadas e suas plataformas, no segundo a realidade é outra: o cansaço é notório e a disponibilidade para falar é mais escassa. Cláudia Morais, psicóloga clínica, confirma a observação: “Isto está relacionado com a novidade. Apesar de todas as perdas e limitações do primeiro confinamento, estávamos muito longe de imaginar quanto tempo isto poderia durar. Encarámos a situação como algo transitório”. Por outro lado, continua, “conseguimos olhar com curiosidade para o que podia surgir pelo facto de estarmos em casa”. Agora, após um ano de pandemia paralisante, as limitações à liberdade coletiva pesam cada vez mais. E ao fim de tantas chamadas via Zoom, ainda há tema de conversa? “Conversa há sempre, pode é não haver sempre a mesma disponibilidade” para falar e para ouvir o outro. “Já não chega cada um estar com o seu copo de vinho”, diz, assumindo a falta da espontaneidade que caracteriza as relações, mas também a falta do toque e da leveza do contacto social.
Falta de abraços, de empatia e do exterior. Como vai crescer esta “geração Covid”?
Apesar disso, a pergunta “Como estás?” nunca fez tanta falta. Ao consultório de Morais não chegaram casos de ghosting entre amigos, mas a psicóloga admite que têm existido equívocos na comunicação dado que, agora mais do que nunca, existem realidades muito distintas. Há casos de algum afastamento, como não devolver chamadas ou desaparecer nos grupos de chats, mas, mais uma vez, Morais pede compreensão.
“Há um ano a adrenalina disparou ligada ao medo, como reação ao perigo. Reagimos: as pessoas fizeram pão em casa, fizeram exercício e reuniram-se nas plataformas online… Com o passar do tempo, acho que as pessoas voltaram ao piloto automático que tinham no início”, acrescenta Alexandra Barros, que salienta ainda o sentimento “de vida suspensa”. Falta, diz, a componente física, o calor humano. “O apoio online, até do ponto de vista psicológico é fantástico, mas não se pode dizer que a relação online substitui a presencial, jamais!”
“A conversa é padronizada e as pessoas estão fartas disso”, atira Rita Gama. “Já ninguém tem nada de novo a dizer.” Embora não considere que tenha ficado menos comunicativa no decorrer do novo confinamento, que marca o arranque de 2021, sente esse distanciamento emocional nos amigos que já não estão tão à vontade para falar. Antes havia mais chamadas e mensagens, agora, evitam queixar-se com receio de serem um disco riscado.
Júlia Gonçalves, estudante universitária de 20 anos, pertence a uma geração marcada pelo avanço da tecnologia. Apesar disso, não é fã de chats ou videochamadas e não dispensa o contacto presencial por nada. Se há coisa que a pandemia lhe ensinou, diz ao Observador, foi a valorizar as relações de amizade mais profundas e não despender tanta energia com aquelas ditas circunstâncias, ainda assim, a espontaneidade nas interações pessoais faz-lhe muita falta. “O contacto informático não é suficiente. Neste confinamento, tenho acumulado coisas por dizer à espera de estar com os amigos”, conta. Durante um mês e meio, Júlia não trocou mensagens com os amigos, mesmo com os mais importantes. “Quando voltei a ter contacto, porque são amigos e quero perceber como estão, eles perceberam. Não ficaram chateados, sabiam que precisava daquele tempo para mim.” Quando o confinamento terminar e a normalidade for restaurada, diz, vai querer dançar com os amigos. Até lá, dança à frente de um espelho.
Mas a pandemia e as restrições associadas não têm trazido apenas desafios às relações de amizade. Curiosamente, a criadora de conteúdos digitais Liliana Marques destaca a importância que ganharam amizades mais antigas, formadas noutros tempos e noutras circunstâncias, e que antes da pandemia não estavam tão presentes. Os contactos esporádicos, diz, deixaram-no de o ser: “É muito interessante voltarmos a contactar pessoas que durante muito tempo não fizeram parte da nossa vida e que ainda fazem sentido num mundo virado do avesso.” Quando antes havia esforço na comunicação e reuniões “uma vez por ano”, agora o contacto é “essencial” e uma “forma de nutrição”.
O desafio de manter relações de amizade é idêntico ao que já existia antes da pandemia, embora talvez agora tenha outra intensidade. Mantermo-nos atentos às pessoas de quem gostamos é essencial, mesmo quando estas vivem numa bolha e têm tendência a optar pelo isolamento. Não que isso seja necessariamente fácil nesta fase, até porque “as pessoas têm muita coisa com que lidar, não é fácil manter os níveis de atenção, conseguir reparar que a pessoa A ou a B não está a dar sinal de vida ou não entra no grupo de Whatsapp”, diz Cláudia Morais. Embora seja mais fácil encarar isso como falta de tempo, mostrar que queremos saber do outro cria “sentimento de pertença de amparo”. “Isso é impagável, sobretudo agora. Há pessoas que vivem sozinhas, entregues aos pensamentos mais catastrofistas. Às vezes não nos lembramos que há quem passe um fim de semana sem falar com ninguém.”
Foi precisamente isso que aconteceu a Ângelo Campota, o psicólogo e mentor do projeto “A Avó Veio Trabalhar”. Depois de uma temporada em casa dos pais, no Porto, na sequência do primeiro confinamento, regressou ao apartamento em Lisboa “sem varanda” onde vive com os dois cães. Na vinda para a capital, e dada a maior consciência da pandemia, começou a privar-se de estar com pessoas “pelas questões óbvias”. Isto apesar de ser “muito seduzido para jantares, festas em casa de amigos e after parties”. “Recusei tudo porque estava com medo”, conta ao Observador, lembrando também a responsabilidade para com as “avós”. Sem que desse conta, Ângelo foi passando cada vez mais tempo sozinho, tentando a ocupar as intermináveis 24 horas do dia com tarefas atrás de tarefas. O facto de não ser adepto das redes sociais e de não gostar de estar ao telefone deixou-o ainda mais isolado. “Fui-me afastando das pessoas e dei por mim a ter menos disponibilidade emocional. Houve quem entendesse e quem tivesse ficado ofendido.” Ângelo não nega que, em alguns casos, houve um “afastamento radical” e está ciente de que, mesmo havendo uma retoma da normalidade, há relações que já não vão voltar a ser o que eram.
Onde param as pausas para o café?
Apesar da pandemia, Rita Gama tem motivos para estar feliz: está grávida e em breve vai mudar de país. A crise sanitária não interferiu, aliás, muito com o seu dia a dia. Já antes trabalhava em casa. O curioso é que, a nível laboral, também a vida melhorou, até porque antes sentia-se a outsider: “Aconteciam muitas coisas no escritório que eu só sabia mais tarde ou das quais não ficava a par e nas reuniões eu era a única no ecrã”. Com a pandemia, conta, todos foram para casa e, atualmente, todos estão em pé de igualdade nas reuniões por videochamada. Mas nas relações pessoais com colegas Rita nota o afastamento emocional. “Falamos muito de trabalho, já não partilhamos tanto a vida pessoal. Durante a pandemia perderam-se vínculos.”
Para Carla Porto, psicóloga da organizações e com um empresa de consultoria apostada no desenvolvimento pessoal e organizacional, vivemos há quase um ano em “profunda solidão”, até porque o teletrabalho tem sido dominante. Nesse sentido, diz que são muitas as empresas a apostar em ações online de team building para que os colaboradores não se sintam tão sozinhos. Apesar disso, os contactos online com os colegas não substituem as tão saudosas pausas para o café, os também chamados “momentos de descompressão”, essenciais sobretudo no final de uma tarefa. São tidos como promotores da saúde mental e também da produtividade. A pandemia quase mutilou as relações entre colegas, alguns dos quais também amigos entre si, sendo que estas pequenas interações fazem diferença no nosso bem-estar emocional, mesmo quando a proximidade não é assim tanta.
Quem tem mantido este tipo de contactos são as “avós” do projeto “A Avó Veio Trabalhar”. O grupo de Whatsapp criado por Ângelo Campota está ainda mais ativo depois de todos terem ido para casa. “Começámos a conversar mais por Whatsapp para manter a rede de suporte, manter as amizades e desmistificar algumas notícias falsas”, diz o mentor da iniciativa ao Observador. É desta forma que muitas as “avós” mantêm o contacto diário umas com as outras, com o grupo a estar ativo das 08h às 02h. Não substitui os jantares ou almoços em casa ou os convites de outros tempos para o Coliseu, mas ajuda a esbater a distância física. Enquanto a pandemia não passa, cabe à “avó” Isabel Martins, a “expert em redes sociais”, animar o grupo “para alimentar relações de amizade e combater a solidão”.