O investimento na ligação em alta velocidade ferroviária entre Lisboa e Porto não vai dar lucro. A análise de custo-benefício para o projeto conclui que terá um défice de financiamento de 4,1 mil milhões de euros num horizonte até 2060 para um arranque de exploração em 2030. Esta análise, que é uma condição para concorrer a fundos comunitários, aponta no entanto para um efeito económico positivo da mesma ordem de grandeza — quatro mil milhões de euros. O valor resulta da diferença entre o défice financeiro e a soma de vários benefícios económicos e ambientais que resultam da sua realização, como a redução dos custos de transporte, dos tempos de percurso, de emissões de CO2 e acidentes rodoviários.
Em causa está um investimento de 6,5 mil milhões de euros (a preços de 2023) para a construção das primeiras duas fases da linha até ao Carregado, as que foram aprovadas em resolução de Conselho de Ministros. Apesar de estarem previstos apoios comunitários — foi para evitar a perda de 730 milhões de euros que o Governo pressionou a oposição a votar a favor do projeto no Parlamento — o TGV (sigla francesa para comboio de alta velocidade) exigirá também dinheiro do Orçamento do Estado, para além capitais privados, com recurso a endividamento, que terão de ser reembolsados e remunerados em 30 anos, ao abrigo do modelo das parcerias público privados (PPP). O modelo financeiro aposta ainda numa grande contribuição do Banco Europeu de Investimentos (BEI).
Apesar do consenso político reconquistado em redor do TGV, uma das vozes que tem levantado publicamente dúvidas sobre este projeto é a do presidente da UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamenta). Em entrevista ao Observador, Rui Baleiras avisa que há “demasiadas perguntas” em aberto sobre o projeto para se ter avançado para um compromisso financeiro primeiro.
A análise elaborada pela consultora TIS para a Infraestruturas de Portugal, a que o Observador teve acesso, procura responder a algumas dessas dúvidas, seguindo os guias da Comissão Europeia para análises custo-benefício para projetos de investimento no quadro da política de coesão 2014-2020 e para o horizonte de 2021-2027. E uma das conclusões é a de que o projeto tem um défice de financiamento, ou valor atualizado líquido negativo, de 4,1 mil milhões de euros, face ao cenário de não se fazer a obra. E corresponde a uma taxa de rentabilidade (negativa) de -1,97%. Os valores negativos baixam para 3,5 mil milhões e para -1,6% (taxa de rentabilidade) quando se incorpora um financiamento europeu para 35% dos custos elegíveis.
O que é o VAL?
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O valor atualizado líquido (VAL) é um indicador usado para avaliar o viabilidade dos investimentos públicos num horizonte temporal alargado. O cálculo é o resultado da diferença entre os custos esperados do investimento e da exploração e o valor das receitas esperadas, a valores atualizados. Associado ao VAL está a TIR (taxa interna de rentabilidade) que corresponde à taxa de atualização dos cash flows (meios libertos) do projeto para a qual o VAL é nulo.
As contas avaliam também o retorno económico e as externalidades deste investimento a partir dos benefícios estimados para passageiros e mercadorias e tendo como termo de comparação os modos de transporte concorrentes — automóveis, transporte público e aéreo para passageiros e transporte rodoviário e ferroviário para as mercadorias. Benefícios que vão desde os tempos de percurso até aos acidentes e sinistralidade, passando pela poluição e alterações climáticas e emissões.
Com estes critérios, o VAL (valor atualizado líquido) chega sempre a um valor positivo, bem como a taxa de rentabilidade interna.
No entanto, “foi efetuada uma simulação de risco considerando os indicadores VALf (valor atualizado líquido financeiro) e VALe (valor atualizado líquido económico)”, que “mostra que o VALf na perspetiva do projeto nunca será positivo”. Mas essa análise de risco mostra, no entanto, que “o impacto no VALe será sempre positivo, com valores que variam entre os cerca de 2,7 mil milhões de euros e 5,8 mil milhões de euros”, mesmo quando é introduzida uma variável negativa que considera o impacto do atraso na construção dos troços da PPP2 (Oiã/Aveiro e Soure) e da PPP2 (Soure e Carregado) — atualmente está a concurso a PPP 1 entre Porto e Oiã/Aveiro. O resultado indica que “o projeto é viável neste cenário, com indicadores económicos muito positivos”. Neste caso o valor apurado é de 3,2 mil milhões de euros e a taxa de rentabilidade de 8,93%.
O estudo parte da análise das estimativas de procura elaboradas pela mesma consultora, e cujas conclusões foram publicadas pelo Observador, e compara dois cenários de referência — um sem os investimentos da alta velocidade e o outro com as intervenções previstas no projeto. São avaliados dois cenários de oferta em função dos dois tempos de distância entre Lisboa e Porto (e serviços intermédios) previstos para o final da fase 1 e da fase 2. E incluídas previsões para o tráfego de mercadorias.
Que obras vão ser feitas?
A chamada ligação de alta velocidade entre Lisboa e Porto é composta por vários troços novos construídos faseadamente e em paralelo à Linha do Norte até ao início da próxima década e que envolvem vários enlaces com a atual infraestrutura, o que permite ir potenciando a capacidade e tempo de percurso dos atuais serviços.
A Fase 1 passa pela construção de 143 quilómetros de uma nova linha com via dupla que prevê uma nova estação em Vila Nova de Gaia, a remodelação das estações de Campanhã, Aveiro e Coimbra B, uma nova ponte no Douro, a quadruplicação da linha do Norte entre Taveiro e Bencata. Há também investimentos em 47 km para cinco ligações em via única entre a nova linha e a convencional, nomeadamente na estação de Aveiro para ligar a Ovar e a Espinho (Linha do Norte) e em Coimbra B. Está ainda prevista uma ligação suplementar em via única em Soure para ligar as duas linhas (alta velocidade e Norte).
Entre os projetos complementares a esta fase estão a quadruplicação da linha do Norte entre Castanheira do Ribatejo e Azambuja, a modernização dos troços Alverca-Castanheira e Braço de Prata-Sacavém e a reformulação da Gare do Oriente. Esta fase está dividida em duas parcerias público privadas (PPP), das quais a primeira teve concurso lançado em janeiro. Tem um calendário de obra até final da década e permitirá cortar o tempo de viagem entre Lisboa e Porto em 45 minutos para cerca de duas horas, bem como reforçar a oferta diária de 24 serviços de longo curso para 31.
A Fase 2 é a construção do troço entre Soure e Carregado com uma extensão 123 quilómetros num prazo de execução estimado entre 2027 e 2031. Esta fase, a desenvolver através de uma única PPP, prevê a realização de três ligações entre a linha de alta velocidade e a rede convencional para permitir a conexão entre Leiria e a Linha do Norte perto do Carregado. Com a conclusão deste troço, o tempo de viagem direta entre as duas maiores cidades do país cairá para 1h20 e a oferta diária passará para 60 serviços por sentido.
Associadas a esta fase estão a reformulação da estação de Leiria e a duplicação da Linha do Oeste para ligar esta cidade à nova linha de alta velocidade.
A Fase 3 não é analisada neste estudo porque o calendário e a solução de traçado da entrada em Lisboa não estão definidos, uma definição que aguarda também a localização do novo aeroporto de Lisboa.
Quanto custa e as receitas esperadas
Os custos do investimento inicial na linha de TGV, a realizar em duas fases entre 2021 (estudos, gestão e projeto) e 2031, foram calculados em 6,5 mil milhões de euros, ao qual acrescem 70 milhões de custos de renovação. O maior esforço financeiro corresponde às partes de construção civil — cerca de mil milhões de euros — e às chamadas obras de arte que em engenharia civil são viadutos e pontes — 1,9 mil milhões de euros — e túneis — 650 milhões de euros.
Os custos de operação e manutenção foram estimados em 1,5 mil milhões de euros, usando como referência o modelo de gestão e financiamento da Infraestruturas de Portugal. A fatura só cobre a infraestrutura e não o material circulante e a conta feita considera a prestação dos serviços definidos no pacote mínimo de acesso para um comboio usar um canal horário.
As receitas consideradas resultam da estimativa de montantes efetivos pagos pelos utilizadores finais, passageiros ou preço das mercadorias, bem como as tarifas pagas pelos operadores ferroviários pelo uso da infraestrutura (e que são cobradas pela Infraestruturas de Portugal) e outros valores cobrados por venda ou aluguer de espaços e serviços. Para chegar a uma taxa de uso de referência de 1o euros por comboio/quilómetro, os consultores usaram os montantes cobrados em Espanha e França aos comboios de alta velocidade.
A receita depende ainda dos níveis de procura que foram calculados a partir do primeiro ano de exploração plena em 2031 e até 2060. O estudo de procura usa como referência o preço atual das viagens em Alfa Pendular, na casa dos 40 euros, mas a IP tem cálculos que apontam para uma exploração rentável com valor inferior por passageiro (25 euros), considerando comboios com mais capacidade do que os atuais.
O valor total das receitas (sobretudo de passageiros, mas também mercadorias) foi estimado em 2,6 mil milhões de euros, o que, com uma taxa de desconto de 4%, dá um valor atualizado de 1.077 milhões de euros. Divididos por anos, estes cálculos começam com uma receita 17,2 milhões de euros em 2030 e chegam a 2060 com um valor de 89 milhões de euros.
O défice de financiamento apurado de 4,1 mil milhões de euros corresponde, então, à fatia do custo de investimento atualizado que não é coberta pelas receitas líquidas atualizadas. O fluxo de caixa negativo acumulado neste período (até 2060) atinge os 2,7 mil milhões de euros.
De onde vem o financiamento e é sustentável?
A análise custo-benefício faz também os cálculos a um cenário em que os fundos europeus cobrem 35% dos custos elegíveis no montante de 1.853 milhões de euros. Nesta hipótese, o VAL financeiro negativo cai para os 3,5 mil milhões de euros com uma taxa interna de rentabilidade de -1,62%.
Com números tão negativos como assegurar a sustentabilidade financeira da alta velocidade? O estudo aponta para uma solução que combina o regime de PPP (contratos para construção, financiamento e manutenção) com as receitas líquidas do projeto e as indemnizações compensatórias e verbas do Orçamento do Estado.
No quadro das PPP, caberá aos privados assegurar as necessidades de financiamento não cobertas por subsídios e pagamentos do Estado, com capitais próprios e alheios durante a fase de construção. Os privados só terão receita com os pagamentos por disponibilidade da infraestruturas após o início da exploração ferroviária. Na fase de investimento, o modelo financeiro prevê que o Estado entre com 25% do investimento para reduzir os pagamentos futuros aos privados. Uma das apostas mais decisivas para a equação financeira é a obtenção de financiamento do BEI (Banco Europeu de Investimentos) que, assume o estudo, pode chegar a cobrir 50% das necessidades, “conduzindo a menores custos financeiros”.
Da perda financeira ao ganho económico
Tempo é dinheiro é uma frase feita que encaixa na fundamentação dos benefícios económicos (não financeiros) atribuídos à alta velocidade ferroviária. A redução do tempo entre os percursos — um fator que abrange toda a população do eixo litoral a norte de Lisboa, mas também os passageiros das linhas convencionais que se vão ligar e beneficiar da redução de tempo nas viagens — é um dos ganhos relevantes apontados pelo estudo, atribuindo-lhe um VAL positivo de 1,1 mil milhões de euros.
Este ganho tem expressão na conquista de quota de mercado aos meios concorrentes: automóvel privado e avião, sobretudo. E em menor escala ao transporte público rodoviário.
Os estudos de procura apontam para que o transporte individual seja a principal fonte de alimentação do TGV com 4 milhões de passageiros desviados no primeiro ano de operação (após a conclusão da 2.ª fase) e os benefícios resultantes da redução de custos que acompanha esta transferência são dos mais expressivos. Se bem que nem todos percebidos, refere o estudo. A fatura do combustível é evidente — sendo o VAL desta componente de 524 milhões –, a que se juntam os custos de manutenção e depreciação do valor do carro que são pouco considerados na hora da comparação e representam um valor atualizado líquido estimado de 2,5 mil milhões de euros. O custo percebido dos combustíveis, o VAL positivo apurado é de 524 milhões de euros.
O relatório faz ainda as contas aos ganhos gerados pela diminuição do nível de congestionamento nos segmentos de passageiros e mercadorias cujo VAL positivo é estimado em 1,6 mil milhões de euros.
Do lado da oferta, ou seja, de quem está a explorar o serviço, o estudo sinaliza um VAL positivo de 1,153 mil milhões de euros, que resulta do saldo entre os custos de aquisição, manutenção e exploração, incluindo a fatura de energia, e as receitas com os novos serviços.
Do lado dos benefícios entra também um conjunto de externalidades positivas associadas ao projeto e que passam por impactos ambientais e de qualidade de vida como a redução das emissões de CO2, de poluição sonora, mas também por ganhos de segurança com a diminuição dos acidentes rodoviários. O benefício associado ao corte nas emissões é dos mais significativos: da ordem dos mil milhões de euros. A redução da sinistralidade surge com um VAL positivo de 615 milhões de euros. Os danos ao habitat são o único destes critérios que surge com um VAL negativo de 62 milhões de euros
São referidos ainda ganhos não quantificáveis como o reforço da coesão territorial, o aumento do nível de conforto dos passageiros e a pontualidade e fiabilidade da alta velocidade face ao atual serviço de longo curso ferroviário.
A soma dos benefícios económicos quantificados totaliza os 8,698 mil milhões de euros de VAL (valor atualizado líquido) até 2060, o que retirando os custos de investimento (4,481 mil milhões de euros) e os custos operacionais (465 milhões de euros), e considerando ainda um valor residual positivo de 377 milhões de euros nos dá o tal VAL económico positivo de 4,1 mil milhões de euros.
Desta avaliação faz parte uma análise de risco, segundo a qual a única variável crítica são os custos de investimento. Do trabalho efetuado conclui-se que apenas uma redução de 80% nos custos de investimento levaria um valor atualizado líquido (VAL) financeiro igual a zero (sem défice). Por outro lado, seria necessário um aumento de 92% do investimento, ou seja para quase o dobro, para que o VAL económico fosse zero.