Onde estávamos nós em novembro de 2020? Provavelmente fechados em casa, totalmente ou semi-enclausurados, cortesia da Covid-19. Desde então, aconteceu tanta coisa, o mundo e as nossas respetivas vidas deram tantas voltas, que é difícil guardar na memória informação que vá além do estritamente necessário. Isso joga a favor de “The Crown”, cuja quinta temporada fica inteiramente disponível na Netflix esta quarta-feira, 9 de novembro. Porque já ninguém se lembra bem do ponto em que estavam as personagens e a história nesse longínquo mês de 2020.
Entre a quarta e a quinta temporadas, a narrativa dá um salto temporal. Estamos agora nos anos 90 e temos novos atores, a terceira fornada desde que a série começou. Imelda Staunton sucede a Claire Foy e a Olivia Colman no papel de rainha Isabel II e é num check-up de rotina que tudo começa. A rainha está longe dos anos vigorosos, uma ideia na qual a série se foca nesta cena específica com o médico, mas também na totalidade dos dez novos capítulos.
Também a produção perde carisma e vigor este ano. Não querendo apontar nomes, mas já apontando, a própria Netflix escolheu uma quarta-feira para o lançamento da nova temporada, sendo que o dia guardado para as maiores apostas da plataforma sempre foi a sexta-feira. Será que isto significa que também a confiança do streaming no projeto está a diminuir?
[o trailer da quinta temporada de “The Crown”:]
Não sou eu que vou responder a isso, mas posso responder a perguntas mais concretas:
Vale a pena ver a quinta temporada de “The Crown”? Sim, nem que seja para fazer um refresh na cronologia da realeza britânica, mas sobretudo para continuar a ver a incrível fotografia, os cenários e o guarda-roupa.
Esta temporada está ao nível das anteriores? Não. Quer incluir diversos arcos narrativos e acaba por não ter um verdadeiro fio condutor entre eles.
A série percebeu que há personagens secundárias que merecem mais destaque, como a princesa Margarida (interpretada primeiro por Vanessa Kirby e depois por Helena Bonham Carter)? Não, infelizmente.
Há erros de casting? Sim, e há um nome em destaque neste campeonato: Dominic West.
A quinta temporada é uma espécie de círculo. Começa com uma Isabel II na terceira idade, a recordar saudosamente a sua versão de 20 anos — há flashbacks com Claire Foy — e do navio real, o Britannia, que acaba por representar a monarca. Antes símbolo de juventude, beleza, imponência e energia, o barco precisa agora de dispendiosas reparações — ou então de ser desativado. É mais ou menos isso que pode também acontecer à rainha, que atravessa uma época frágil, com o seu reinado a ser questionado, minuto sim, minuto sim.
Imelda Staunton, embora uma atriz muito competente no seu papel, não tem armas para competir com as suas antecessoras. É mais espectadora do que protagonista, é remetida para segundo plano e passa mais tempo a ver a vida a acontecer na televisão, lá na imensidão dos seus salões, do que a ser o centro das cenas de “The Crown”. À sua volta está um campo de minas — de um lado, Anne, a filha mais velha, divorciada e a querer casar-se uma segunda vez; do outro, Margarida, ressentida, por lhe ter sido negado exatamente o mesmo direito anos antes; no meio Carlos, a querer divorciar-se e assumir a amante; num canto, André, uma personagem que só apetece pôr de castigo, virada para a parede, sempre que profere a mimada palavra “mummy (mamã”)”; e na extremidade, Filipe, o duque que nunca foi rei e que tem cada vez menos coisas em comum com a mulher.
Se fossem vocês, não quereriam enterrar a cabeça na areia e passar o dia a ver televisão como se nada de urgente se passasse? O problema é que estamos numa série de televisão e esta apatia daquela que começou por ser a personagem principal não nos serve, nem ajuda a que a série continue empolgante.
O maior problema de “The Crown” é que, desta vez, quis abordar demasiados acontecimentos importantes e puxar para o palco central personagens e arcos narrativos que podiam ter ocupado duas ou três cenas, nunca um episódio inteiro. Há um capítulo totalmente focado na ascensão de Mohamed Al-Fayed e na sua obsessão pela elite e monarquia inglesas. Se é interessante? Claro. Se precisava de ser tão pormenorizado? Nada. Vemos também a forma como Martin Bashir conseguiu, sabemos nós agora, enganar a princesa Diana e fazê-la acreditar que havia escutas e traidores por todo o lado, culminando na entrevista ao programa “Panorama” que o mundo inteiro viu e que foi a gota de água para ditar o divórcio do casal real. As conversas privadas entre Carlos e Camila que foram parar aos jornais, as cassetes secretas que Diana gravou para Andrew Morton escrever uma biografia, está lá tudo. E muito detalhado. Até demasiado, porque se há família real sobre a qual já se escreveu e disse tudo é a britânica. Quem esteve minimamente atento ao longo das últimas décadas já sabia isto tudo, não precisava de um resumo desta dimensão, como se estivéssemos a rever toda a matéria para a prova de aferição.
É cada vez mais difícil e desafiante para “The Crown” manter o nível das primeiras temporadas. Agora a história está numa era da qual todos temos recordações. Os anos 90, embora já matematicamente longínquos, estão-nos gravados na pele como as camisas de xadrez por cima das T-shirts de bandas grunge imortalizadas nas fotos dos álbuns de da nossa adolescência. Que Carlos nunca amou Diana? Já sabíamos. Que nunca ninguém lavou tanta roupa suja em público como aqueles dois? Já sabíamos. Que havia uma coleção volumosa de amantes? Já sabíamos. Que a rainha foi a única a casar por amor, usando sempre a desculpa do “dever de rainha” por não ter deixado a irmã e o filho ficarem com quem queriam, sendo a rainha da hipocrisia? Também sabíamos. O que resta de novo? Muito pouco. E percebe-se que o criador, Peter Morgan, está com dificuldade em desviar-se do óbvio. Quando o faz, como numa conversa completamente imaginada entre Diana e Carlos no rescaldo do divórcio que podia ser de um qualquer casal que faz, como as personagens dizem, uma “autópsia” ao que correu mal, o momento é arruinado por uma escolha completamente falhada.
Dominic West é o príncipe Carlos, pegando no papel deixado por Josh O’Connor. Se este era complexo, capaz de fazer-nos odiá-lo e logo a seguir sentir empatia por ele, West nunca parece confortável. E se há quem tenha protagonismo esta temporada, é ele. Por um lado, é um peão dissimulado, prontinho para deixar a mãe encostada nas boxes e ficar-lhe com o trono. Tem encontros com os primeiros-ministros, esfrega as mãos ao ver que uma votação dos súbditos balança para o lado dele, apresenta ideias novas, cansado do mofo da monarquia. Por outro lado, é o protagonista do divórcio do século. Então porque é que nos está sempre entalado na garganta, como uma espinha que não desce nem empurrada com pão? Dominic West não consegue transpor para o ecrã as camadas da personagem (e olhem que o homem já teve grandes papéis: “The Wire”, “The Affair”). Há trejeitos a mais na boca, emoção a menos no olhar e zero química com quem contracena. Chega a ser penoso vê-lo — e fica a sensação de que também foi penoso para ele fazer este papel.
Elizabeth Debicki é Diana. À primeira vista está lá tudo: o olhar de bambi, a cabeça inclinada, a timidez sempre em luta com a provocação. As semelhanças são inegáveis mas também ela tem menos material para trabalhar do que antecessora, Emma Corrin — que teve de personificar a princesa ingénua, acabada de aterrar num palácio e num casamento onde nunca teve hipóteses. Se “The Crown” fosse uma série muda, estava tudo ótimo. Mas não é, e faltam diálogos e ação a esta mulher numa fase completamente diferente da vida. Até o romance com Hasnat Khan, o cirurgião que as revistas cor de rosa sempre venderam como sendo o amor da vida dela, se resume a meia dúzia de cenas com meia dúzia de frases. Embora divorciada, Diana continua presa entre as paredes do palácio e a série parece gostar de a manter ali, sossegadita, como uma pássaro que tem de pedir licença para piar.
A temporada podia ter dado mais história a Margarida, a irmã da rainha. Lesley Manville é uma força mais firme do que aquele cabelo cheio de laca e o que é que lhe oferecem? Uns chás das cinco com a rainha, uns jantares, um reencontro fugaz com o amor da vida dela. Isto não é ficção? Não podiam ter floreado mais? A atriz e a personagem mereciam. O mesmo é válido para Jonathan Pryce e o seu Filipe, atirados para 147.º lugar no ranking de importância deste ano. “Vamos lá mostrar como é que começou a paixão pelas charretes, incluímos aqui uma amizade pouco bem vista e despachamos assim o duque. O que acham?” Será que alguém disse isto na reunião de guionistas da série e toda a gente gritou “bravo”?
Pode parecer descabido, mas talvez não tanto como a decisão de querer enfiar tantos momentos históricos numa única temporada (entrevistas bombásticas, o divórcio real, a eleição de Tony Blair, a ascensão de Al-Fayed, etc). De repente, parece que estamos a ver “Lei & Ordem” e que o capítulo anterior não tem nada a ver com o presente e muito menos com o futuro.
Ao que tudo indica, resta apenas uma temporada a “The Crown”. Não sabemos até que ano irá a história, mas se calhar é melhor acender já uma vela e pedir para que não haja saltos radicais de tempo e uma corrida para chegar aos dias de hoje da família real britânica. A quem é que rezamos mesmo? É ao líder da igreja anglicana? Se continuarmos com Dominic West, estamos perdidos. Ámen.