Numa sala no primeiro piso da Culturgest, em Lisboa, Tiago Rodrigues desliza a caneta sobre o papel. Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, a peça-fenómeno do mais internacional encenador português, acaba de ser publicada em livro. No chão, várias caixas com exemplares aguardam por uma assinatura. O espetáculo (que fez tanta tinta correr como bilhetes esgotar) continua em digressão pelo mundo, mas a cada nova apresentação, algo muda. “Sabemos que a peça carrega uma espécie de anúncio, que a cada vez que a representamos parece mais próxima da realidade”, diz o também diretor artístico do Festival de Avignon. Quatro anos depois de imaginar uma distopia em que a extrema-direita tomava o poder, reflete: “Não queria fazer nenhuma profecia política”.
Numa curta passagem por Portugal, antes de rumar a Avignon, onde vai apresentar a programação deste ano do festival, Tiago Rodrigues, 47 anos, comenta a vida política portuguesa e internacional, desfaz o mistério sobre as reações efusivas do público no teatro e antecipa uma nova criação, sobre trabalhadores em ajuda humanitária. Na Medida do Impossível sobe ao palco da Culturgest, em Lisboa, de 17 a 25 de abril, encerrando uma digressão de dois anos que levou o espetáculo a teatros e festivais em todo o mundo.
Há quatro anos, quando Catarina e a Beleza de Matar Fascistas se estreou, questionaram-lhe sobre situar a peça em 2028. Respondeu: “É um tempo em que a deterioração da democracia poderia chegar a permitir que o discurso populista e demagógico ganhasse uma maioria parlamentar em Portugal”. Portugal juntou-se à viragem da Europa à direita e o Parlamento vai passar a ter 50 deputados do Chega, partido conotado com a extrema-direita — conotação que o partido rejeita. Reconhece o carácter premonitório da peça que muitos lhe imputam?
Reconheço, infelizmente. De alguma forma é sempre o objetivo e ao mesmo tempo o pesadelo de quem escreve histórias em contextos distópicos: imaginar que o mundo pode evoluir num sentido em que aquilo que preferimos que não acontecesse acontece, mas em que os sintomas da sociedade nos diz que é uma das possibilidades. É verdade que quando escrevi esta peça havia um único deputado de extrema-direita na Assembleia da República e já isso era vivido como um choque na sociedade portuguesa, porque era a primeira vez que acontecia desde o início da democracia. Em quatro anos, essa realidade piorou tremendamente e a presença da extrema-direita na Assembleia da República multiplicou-se por 50. Evidentemente, quando apresentamos hoje o espetáculo, como vamos fazer já este mês de abril, em Berlim, na Schaubühne, é, por um lado, um grande acontecimento artístico para nós — porque é um dos grandes teatros mundiais, porque é Berlim. Ao mesmo tempo, sabemos que a peça carrega uma espécie de anúncio que, a cada vez que a representamos e apresentamos, parece mais próxima da realidade.
Por outro lado, guardo o otimismo de que a premonição de uma evolução da sociedade e a confirmação dessa promulgação não seja um fatalismo. Vivermos os 50 anos do 25 de Abril num momento em que a extrema-direita populista, radical, se torna uma terceira força política, muito próxima das forças mais votadas em Portugal é, por um lado, um sintoma de erosão da democracia, um alerta enorme para os democratas e para as democratas, mas, ao mesmo tempo, clarifica o desafio. O desafio que, de alguma forma, esta peça carregava, em 2020, quando a estreámos, e que provocava, da parte de muitos espectadores, é uma reação.
Confesso que não queria fazer nenhuma profecia política, queria escrever uma peça com esta dimensão distópica, porque falar do que pode acontecer me parece muito mais interessante como ponto de debate do que apenas falar do que está a acontecer. É talvez uma das coisas que o teatro possa oferecer, e que, com mais dificuldade, o jornalismo pode fazer. Há questões deontológicas e de objetividade que impedem uma jornalista de especular, a menos que seja num artigo de opinião, e mesmo aí, espera-se que seja minimamente fundamentado. No teatro podemos especular sobre o que vai acontecer e misturar o político com a intimidade. O que é para mim importante nesta peça, no Catarina, é que tentamos examinar, não apenas projetando em 2028 com uma extrema-direita no poder em Portugal, mas examinar também como é que as pessoas vivem isso, os perigos que isso pode carregar, ao mesmo tempo com um espírito bastante forte de autocrítica em relação à democracia. Porque a questão que se coloca é, de alguma forma: como pode a democracia reagir a uma invasão de não-democratas que utilizam o sistema para chegar ao poder?
Na altura, em entrevista ao Observador, dizia que “da mesma forma que desconfia do futuro, é um espetáculo que confia plenamente no presente, no teatro e no público”. Depois dos resultados eleitorais, mantém a mesma confiança no presente e no público?
Absolutamente. Não é a primeira vez na minha vida que estou descontente com a decisão da maioria dos eleitores. Respeito o voto dos outros, mas, democraticamente, discordo desse voto e acho que, desta vez, aquilo que estamos a viver permite-me, por um lado, respeitar o voto e, ao mesmo tempo, renovar a minha vontade, não apenas de combater o resultado do voto, ou seja, combater quem foi eleito pelos votos que deram mais lugares à extrema-direita na Assembleia da República, mas também poder combater os valores que permitem que essa representatividade exista. Uma boa parte do resultado destas eleições deve-se, por um lado, a um sentimento completamente legítimo de abandono de uma parte dos eleitores, um sentimento de não reconhecimento no sistema político daquilo que são as suas necessidades e as suas urgências. Ao mesmo tempo, foi sempre em momentos de crise de representatividade que os extremos e o populismo, e, historicamente, o fascismo ascendeu, precisamente com essa capacidade de manipular o descontentamento generalizado numa população e o traduzir em votos com um discurso demagógico, populista, predador dos medos e do pior das nossas naturezas.
Não é uma realidade exclusiva de Portugal. O que está a acontecer em Portugal é um bocado a primeira temporada de uma série que eu, que vivo em França, já assisto na terceira temporada. Não posso deixar de olhar para aquilo que se passa em Portugal com a surpresa, o choque e a deceção de um português e, ao mesmo tempo, a sensação de alguém que já conhece os últimos episódios. A ascensão da extrema-direita, às vezes mais assumidamente de extrema-direita, às vezes de um populismo de inspiração radical de extrema-direita, mas mais ou menos alinhada ideologicamente, é uma realidade em muitos países do mundo, infelizmente. Tem a ver também com mecanismos de propaganda e de persuasão que estão ligados às redes sociais, à desinformação… O que me faz, por exemplo, olhar para Portugal e perceber que a negligência com que os meios de comunicação social estão a ser tratados em termos empresariais, levando a greves de jornalistas, levando à necessidade de reivindicações fortes por parte dos jornalistas, é algo que me mobiliza muito porque penso que uma boa parte daquilo que possa ser uma defesa da democracia passa por uma defesa do jornalismo, da deontologia jornalística e da veracidade da informação que está disponível às pessoas.
Falando de veracidade, mencionava há pouco as reações que a peça teve, algo que motivou um intenso debate, em particular se as insurreições do público no final do espetáculo foram orquestradas, combinadas, ou espontâneas. Pode esclarecer?
Não são. Todas as reações que o espetáculo Catarina e a Beleza de Matar Fascistas provoca no público, nomeadamente na zona final do espetáculo em que, de forma geral — não em todos os espetáculos, mas diria em nove em cada dez espetáculos — o público reage de uma forma muito expressiva para lá daquilo que é o normal da reação de um público em teatro, sobretudo durante a representação. Nunca, desde a primeira representação, desde há quatro anos até hoje, provocámos fosse o que fosse. É uma das regras do espetáculo: se o público não reagir, temos silêncio até ao fim, como numa representação normal. Isso também já aconteceu, mas a verdade é que a esmagadora maioria das vezes, o público reage, canta, sai da sala, insulta, às vezes vai para lá daquilo que é também aceitável, com alguns momentos de alguma agressividade um bocado exacerbada. Mas é uma reação do público depois de ter visto um espetáculo que termina mal, porque é uma tragédia, de alguma forma, esta peça.
Como muitas tragédias, termina mal, mas termina mal com um discurso que remete o público para algo que ouvem constantemente, cotidianamente, e também para uma sensação de derrota. A peça conta a história da derrota da democracia. De alguma forma, tentando problematizar, não acho que a democracia vá perder, mas acho, se isto fosse um jogo de futebol, estávamos a perder e tínhamos que fazer o melhor que pudéssemos para ganhar no final do jogo. Mas nunca houve nenhuma manipulação de nenhum espectador, todas as reações são genuínas, não são controladas, às vezes percebemos um bocadinho que tipo de reação é que é, outras vezes há reações que não compreendemos como é que foram tão longe.
Antecipou tamanhas reações quando fazia o espetáculo?
É qualquer coisa que durante os ensaios começámos a pressentir quando cheguei com o final da peça e com o texto que o Romeu Costa trabalhou, numa cena final de quase 30 minutos. Ele trabalhou à parte comigo durante algumas semanas, sem mostrarmos ao resto do elenco. Quando mostrámos vimos a que ponto o mal-estar se instalou e muita gente estava perturbada. Na altura ainda tínhamos dúvidas sobre acrescentar essa cena final ao espetáculo. Sabíamos que quando apresentássemos esta cena final, se o fizéssemos, teríamos reações muito fortes do público. Mas não sabíamos quais. Fomos aprendendo e agora, com apresentações em Portugal, em França, em Itália, na Suíça, numa série de países, e previstas na Alemanha, nos Estados Unidos, no Canadá, sabemos que há um padrão em praticamente todos os países: essa reação vem.
É uma reação tão extraordinária, percebo que no público se comece a dizer “ah, eles fazem de propósito, há pessoas plantadas no público”, mas é completamente genuíno, não temos ninguém. No início, aliás, nas primeiras vezes que aconteceu não sabia como é que havia de ajudar os atores. Achava que era uma coisa que estava a correr mal e só queria que o espetáculo terminasse o mais depressa possível. Depois, aos poucos, fomos discutindo e percebemos que é uma reação que faz parte do espetáculo. Em qualquer espetáculo o público pode reagir, essa é uma das belezas do teatro. Em qualquer momento alguma coisa pode correr mal, um espectador pode interromper o espetáculo. Estamos ao vivo com pessoas reais na mesma sala, há sempre essa noção da imprevisibilidade do jogo teatral. Aqui, essa imprevisibilidade do jogo teatral concretiza-se de uma forma mais visível, mais audível do que é habitual. Isso lembra-nos também da beleza e do risco de fazer teatro. Foi uma coisa com a qual fomos aprendendo a trabalhar e a gerir, e que faz com que este espetáculo tenha uma aura um bocadinho extraordinária, excecional para nós. É um espetáculo onde a relação com o público se desenvolve de uma forma pouco habitual.
Pedro Penim: “O teatro tem muitos interesses, mas não tem necessariamente muitos amigos”
O texto foi agora editado em livro, em português, muito depois de ter sido editado em francês. Por que demorou tanto tempo a fazê-lo? Teve dúvidas em querer disponibilizar este texto em português?
Tem a ver com as realidades. A primeira vez que publiquei um dos meus textos em livro foi em França, porque há um editor, Les Solitaires Intempestifs, que em 2014 me convenceu que devia publicar as minhas peças, coisa na qual nunca tinha pensado. Gosto de fazer espetáculos e uma das coisas com que contribuo na construção dos espetáculos é com o texto, como com a encenação, ou se participo com um ator. Mas o que me interessa, o que me apaixona, é fazer espetáculos. Portanto, a coisa do livro nunca esteve na minha cabeça. Sou muito apaixonado por livros e por autoras e autores e talvez achasse que era demasiado importante para mim. Nunca me levei a sério enquanto autor. Foi esse editor, o François Berreur, que dirige o Les Solitaires Intempestifs, em França, que me convenceu a editar pela primeira vez. É a casa que editou mais textos meus. Estão mais publicados em francês do que em Portugal, o que também faz um retrato da paisagem editorial de teatro em Portugal.
Portanto, não tinha pressa necessariamente de editar o livro, mas também ninguém me solicitava muito para que o livro fosse editado. Enquanto estive à frente do Teatro Nacional D. Maria II, alguns dos meus textos foram editados no TNDMII e eu previa que isso pudesse acontecer com o Catarina. Eis senão quando a Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China, me diz que gostava muito de editar esse texto e começaram as conversas que permitiram que o texto seja agora finalmente publicado. Estou muito feliz do livro existir e de ser lançado mas, ao mesmo tempo, o que preciso mesmo de fazer são espetáculos. Fico muito contente que alguém tenha interesse em ler o livro e em conhecer o texto, fico sobretudo orgulhoso porque é o resultado do trabalho que fiz com um grupo de atores, com artistas que discutiram cada palavra comigo, cada frase e que são precisamente por isso também mencionados no livro. Não teria escrito este texto se não para estas pessoas e com estas pessoas. O livro, de alguma forma, deixa-me orgulhoso também porque é uma espécie de memória de uma coisa que vivemos e estamos ainda a viver juntos desde há quatro anos. Além disso, o livro vem acompanhado de um ensaio, um posfácio longo do jornalista Gonçalo Frota que acompanhou todo o processo de criação do espetáculo e que, de alguma forma, permite que este livro seja o texto do espetáculo, mas também uma visita aos bastidores do espetáculo muito mais detalhada, muito mais interessante do que aquilo que eu possa dizer sobre o espetáculo. Embora também goste de fazer entrevistas, regra geral, o espetáculo fala muito melhor de si mesmo do que aquilo que eu consigo falar depois sobre os espetáculos.
A peça esteve sempre esgotada nos palcos portugueses, muitos pedem uma reposição. Há algum plano de voltar a mostrá-la em Portugal?
Há muita vontade. Há algumas conversas. A peça já foi apresentada em várias cidades portuguesas. Já fez carreira em Lisboa em três ocasiões. Gostávamos muito de poder voltar a apresentá-la em Portugal e de poder voltar a apresentá-la em Lisboa também, mas não só, no resto do país. Há algumas conversas a decorrer. Neste momento temos muita digressão marcada para 2024 e 2025 e algumas datas ainda em confirmação. Entre essas datas que estão em confirmação, há possibilidade de regresso a Portugal em 2025. Mas a peça vai viajar pela Ásia, América do Norte, América do Sul, Oceânia. É uma peça que ainda vai ter uma vida longa, pelo menos até o final de 2025, esperando que, até lá, os números de presença da extrema-direita na Assembleia da República não continuem a crescer porque senão vou começar a convencer-me que a peça é uma espécie de maldição para a democracia portuguesa.
No texto de divulgação de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas consta uma pergunta: “Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor?”. Na sinopse de Na Medida do Impossível, há uma outra: “Como continuar quando sabem que não vão mudar o mundo?”. A dúvida deu lugar a uma resignação com o estado do mundo?
São histórias diferentes sobre realidades diferentes. De alguma forma, o Catarina não é sobre violência, é sobretudo sobre a dúvida. A dúvida de como pode a democracia defender-se dos extremismos que a ameaçam. E faz parte dessa dúvida um dilema, que é o chamado paradoxo da tolerância, que é o dilema entre dever ser tolerante com os intolerantes e, portanto, praticar sempre uma ação democrática, mesmo correndo o risco de, face aos intolerantes, a tolerância falhar e, portanto, a democracia ser derrotada, ou, na defesa da tolerância, ter o direito de ser intolerante, mas, então, aí arriscando ir contra os nossos próprios valores e, portanto, não ser democráticos na defesa da democracia. E isso implica, por exemplo, o uso de violência. O uso de violência, muitas vezes, discutido assim, choca algumas pessoas. Recordo que há muitas democracias que entram em guerra, que é uma forma de violência, e que é institucionalmente completamente legítima e aceite, mesmo pelo direito internacional, como uma forma de violência legítima em determinadas circunstâncias.
A existência de Forças Armadas…
Sim. Quando as pessoas me dizem: “Não, não há nada que justifique a violência!”, pergunto sempre a essa pessoa se, então, acha que Portugal não devia ter Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana, Forças Armadas. Regra geral, as pessoas dão logo um passo atrás e começam a relativizar. Ninguém põe em causa a resistência francesa contra a ocupação nazi. Era uma resistência violenta, com assassinatos políticos. Ai de quem hoje se afirme democrata e diga que a resistência francesa não deveria ter existido porque não há nada que justifique a violência. Portanto, acho que o debate é interessante. O debate não quer dizer que eu defenda que a violência é um caminho, pelo contrário, não tenho problema nenhum em assumir que, face ao paradoxo, prefiro continuar a jogar o jogo democrático. A prova disso é que faço teatro. Discuto sobre a violência no teatro. Depois, quando ouço pessoas criticarem, seja o título, seja o espetáculo… Normalmente a crítica é ao título, porque há mais gente que contacta com o título do que com o próprio espetáculo, mesmo que o espetáculo tenha tido muitos espectadores.
O que aconteceu em Itália — em que representantes de dois partidos políticos, a formação de extrema-direita Fratelli d’Italia (Irmãos de Itália) e a formação populista de centro-direita Forza Italia, tentaram proibir a peça — aconteceu antes mesmo de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas se estrear, certo?
Sim. A tentativa de censura em Itália e muito daquilo que foi a controvérsia à volta deste espetáculo, fosse em Portugal, França ou noutros países, está muito ligado ao título, mas também ao facto de a peça falar de violência, como se a peça fizesse a apologia da violência. Ora, nem é preciso ir ver o espetáculo. Não peço isso a ninguém que o faça, mas peço que não haja um debate público sobre um espetáculo com a arrogância de não precisar ver o espetáculo para participar do debate. Se vamos discutir Os Miseráveis, do Victor Hugo, no mínimo temos que ler. A esmagadora maioria dos artigos de opinião que saíram em Portugal antes da estreia da peça para mim fazem parte das caricaturas, da anedota do artigo de opinião. Não se pode debater uma obra que nem existe ainda a partir do seu título. Pode-se discutir o título, mas daí a dizer que se discute a obra é muito complicado. A coisa em si que tem que ser debatida, se quisermos efetivamente debater, é sobre a dúvida. É sobre a dúvida de como defender a democracia. A peça coloca a questão da violência de uma forma completamente absurda e ficcional, e a questão do assassínio político, porque isso provoca um debate. O que me interessa é o debate, e é por causa disso que faço teatro, porque não tenho as respostas. Se tivesse as respostas fazia política. Como não tenho as respostas, faço teatro, faço perguntas. Com o Na Medida do Impossível é toda uma outra história, porque partiu do meu fascínio pelos trabalhadores em ajuda humanitária.
Surgiu como?
Conheci alguns trabalhadores em ajuda humanitária, precisamente fazendo digressão na Suíça, em Genebra. Foi aí que contactei com vários trabalhadores em ajuda humanitária, porque há várias organizações de ajuda humanitária, como os Médicos Sem Fronteiras, ou a Cruz Vermelha Internacional, que têm sede em Genebra. Comecei a ler sobre o assunto, a interessar-me. Acho que o facto de ser filho de uma médica me torna também particularmente…
Desperto?
Admirador. Admiro muito as pessoas que curam, as pessoas que tomam conta do outro: paramédicos, condutores de ambulâncias, enfermeiros, o pessoal que trabalha em hospitais. São pessoas que me impressionam muito. Talvez porque tenha testemunhado ao longo da minha vida a minha mãe a trabalhar e visto como são profissionais em que a natureza do trabalho deles é ultrapassar o profissional. Estão sempre num gesto de cuidar de alguém. Vai para lá do trabalho normal. Há uma dimensão de vocação, de espírito, de missão nessas pessoas que sempre me impressionou. E embora nem toda ajuda humanitária seja médica, ainda hoje se manifesta muito pela ajuda médica em situações de perigo, de conflito, de catástrofe natural. São médicos ao quadrado, no sentido em que se metem em perigo, em que se deslocam da sua vida habitual para praticar esse cuidar dos outros.
A certa altura, a Comédie de Genève, um grande teatro de Genebra, convidou-me a criar uma peça lá, com eles. Correspondia ao final do meu percurso no Teatro Nacional, mas antes ainda de chegar a Avignon. Portanto, era ali num intervalo entre duas aventuras. Rapidamente pensei que podia trabalhar sobre ajuda humanitária, por estar muita gente em Genebra. O espetáculo é o resultado de mais de 30 entrevistas com trabalhadores e trabalhadoras de ajuda humanitária, pessoas muito diversas, desde quem faz ajuda humanitária há 30 anos, até pessoas que começaram há três anos e que fizeram poucas missões ainda. Pessoas que trabalham no lado médico, no lado dos advogados, da logística, da organização. A peça é a tentativa de perceber estas pessoas que vivem entre dois mundos, não necessariamente entre o mundo desenvolvido e os outros, porque há muitos humanitários em países em desenvolvimento, mas há muitos trabalhadores em ajuda humanitária que trabalham no seu próprio país. A realidade de ajuda humanitária de que são europeus brancos que vão para o resto do mundo ajudar transformou-se muito nos últimos anos. É assim que nasce, mas evoluiu e hoje é um fenómeno globalizado. Muitas das entrevistas que fiz são a pessoas que não são europeias, que são de outros continentes e que trabalham em ajuda humanitária. Mas, de alguma forma, são sempre pessoas que vivem entre dois mundos: um mundo em que têm acesso aos direitos básicos, aos bens essenciais, e um mundo onde trabalham, para onde se deslocam, onde, por causa de conflitos ou de catástrofes naturais, estão lá para ajudar pessoas que não têm acesso a quase nada. Viver entre estes dois mundos, que nós na peça chamamos o “possível” e o “impossível”, é também saber que estes dois mundos estão sempre a mudar. Há três anos, a Ucrânia fazia parte do possível e há dois anos passou a fazer parte do impossível. As coisas mudam muito rapidamente. Há 70 anos, quase toda a Europa fazia parte do impossível. Basta um conflito estalar. A ideia de que o mundo é dividido em possível e impossível movimenta-se. O mapa-mundo está sempre a mudar, porque há catástrofes e conflitos a estalar em sítios diferentes do mundo, em permanência.
Procurei literatura, cinema… Há pouca coisa que venha da voz e da experiência da ajuda humanitária. São vozes, experiências, a que raras vezes temos acesso. A questão que queria colocar é: será que estas pessoas que trabalham em ajuda humanitária e que têm esta dupla vida e esta dupla experiência têm uma perceção particular do mundo, veem o mundo de uma forma diferente? Nestas centenas de horas de entrevistas que fizemos percebemos uma coisa transversal: o momento em que começam a fazer mesmo bem o seu trabalho em ajuda humanitária é quando percebem que não vão mudar o mundo. A função é ajudar uma pessoa de cada vez o mais que puderem e isso é uma forma de ganhar tempo esperando que o mundo mude para melhor. Mas não são eles que vão mudar o mundo.
Há testemunhos que descrevem situações muito duras. A dada altura, ouve-se:“Há coisas que vemos no nosso trabalho, coisas tão obscenas, tão horríveis, que não deveriam ser mostradas em palco”. Como é que decidiu o que devia ou não contar no espetáculo?
Como representar as centenas de histórias que recolhemos foi uma questão desde o início que se nos colocou e para a qual fomos fazendo evoluir uma resposta. Percebemos que não queríamos mostrar a história que nos estavam a contar a acontecer. Porque a maior parte das histórias era quase impossível de imaginar fazer sem estar a explorar sentimentalmente a história que nos está a ser contada. Fazendo teatro muitas vezes agimos em palco para que o público veja essa outra coisa que terá acontecido ou que poderia acontecer ou que alguém imaginou. Quando há uma cena de luta no Hamlet não estamos mesmo a lutar, o que estamos a fazer é mostrar o duelo que o Shakespeare imaginou e que acha necessário o público imaginar também e ver representado em palco. Mas aqui era tão à flor da pele, tão próximo… Conhecemos as pessoas que viveram estas histórias, contaram-nos as histórias. Representar é também um contrato ético. Foi preciso inventar o código deontológico para fazer este espetáculo. Uma das coisas que muito rapidamente percebemos é que quando nos contam a morte desta criança nós não podemos mostrar uma criança a morrer em palco. Não podemos fingir que há uma criança que morre em palco. Então o que é que vamos fazer? Rapidamente a peça se transformou não numa peça que conta as histórias, mas uma peça que conta pessoas que contam histórias. Percebemos que as cenas deviam ser com trabalhadores em ajuda humanitária a contar histórias e não as histórias a acontecer em palco.
Por isso é que, de alguma forma, a peça encena o que nós vivemos com eles. São trabalhadores em ajuda humanitária a contar histórias em entrevista e depois, a pouco e pouco, vão entrando em situações e há cenas que se começam a desenvolver, mas voltamos sempre muito rapidamente para uma situação de alguém que está a contar qualquer coisa a outra pessoa. E essa outra pessoa é o público. É a história de pessoas que estão a contar histórias. Há uma emoção quando alguém nos conta uma história, imaginamos o que essa pessoa viveu. É bonito ver alguém a contar uma história. Há uma relação com a imaginação de quem ouve. Mas depois havia histórias que quando as tentávamos dizer em voz alta, eram demasiado violentas. Histórias que nós sentimos que nos assombraram, que nos deram insónias, histórias que eram demasiado duras. Essas histórias no espetáculo estão presentes pela música do Gabriel Ferrandini. A bateria do Gabriel conta o que nós não podemos contar. Havia mesmo histórias que eram obscenas no sentido etimológico da palavra, são de fora de cena. Na tragédia grega nunca se mostrava um momento em que, por exemplo, alguém arrancava os olhos a alguém. Há sempre um mensageiro que vem e diz que alguém arrancou os olhos a alguém e depois entra alguém com uma ligadura, talvez com sangue, a fingir que os olhos foram arrancados, mas não vemos o gesto violento porque ele é obsceno, portanto, fora de cena.
No final do espetáculo, já depois da saída de todos os atores há um momento de solo do Gabriel que, de alguma forma, é o destilar de todas essas histórias que não se podiam contar porque eram demasiado violentas, tristes e trágicas para que nós as pudéssemos dizer em palavras.
A Beatriz Brás, a única atriz portuguesa na peça, canta um fado de Amália Rodrigues, O Medo.
São daqueles acidentes de ensaios.
Porque escolheu este fado em particular? As personagens parecem ter tudo menos medo.
Estávamos em Genebra em ensaios. Depois de uma entrevista particularmente dura estávamos todos um bocado em baixo porque passar semanas a ouvir estas histórias a certa altura começa a mexer connosco. Fomos todos para um dos apartamentos em que estávamos a morar, depois de um primeiro copo, como havia portugueses, alguém disse à Beatriz Brás, que canta muitíssimo bem, “canta aí um fado”. Foi muito bonito porque de alguma forma o fado correspondia à tristeza que nós estávamos a sentir, mas ao mesmo tempo era uma forma de estarmos juntos e de contrariar essa tristeza que estávamos a sentir todos porque tinha sido um dia duro. E a Beatriz cantou O Medo, da Amália, e muito bem. É um fado de que sempre gostei muito. Enquanto ela cantava o fado pensei que este fado era incrível para usar na peça.
A história que tínhamos ouvido nesse dia é precisamente a história na qual o fado é utilizado [na peça]. É uma história de violação de todas as mulheres de uma aldeia depois do assassinato dos seus maridos e filhos. Eram mulheres que tinham obviamente muito medo, mesmo de serem ajudadas e de tentar sair da aldeia. Tinham preferido ficar e arriscar morrer onde não havia comida nem nada para beber do que tentar ir para uma outra aldeia e correrem o risco de serem violadas de novo. Portanto, toda essa história é sobre o medo dessas pessoas e como é que a pessoa que nos conta a história, uma trabalhadora em ajuda humanitária, tentou fazê-las superar esse medo depois do trauma total de verem metade da aldeia massacrada. Era toda uma história sobre o medo. Acho que a Beatriz não pensou nisso quando começou a cantar O Medo naquela noite, mas a meio do fado eu já estava a pensar como é que ia convencê-la a cantar este fado. Ou talvez ela tenha pensado, nunca falei com ela sobre isso. Pareceu-me estar a cantar a canção certa para a história que nos tinha perturbado nesse dia e que eu não tinha a certeza se queria ter no espetáculo. Achava que era uma dessas histórias muito difíceis. De repente, a forma como essa trabalhadora em ajuda humanitária as tentou animar foi pô-las a cantar juntas baixinho. Um bocado como quando as ceifeiras cantam no trabalho, essa ideia de criar um espírito de corpo que de alguma forma nos faz continuar a avançar. Aproveitamos a voz maravilhosa da Beatriz e a sua capacidade de interpretação e ela construiu uma versão do fado à capela para o espetáculo que é absolutamente maravilhosa.
Às vezes o que vemos num espetáculo é uma espécie de retrato do tempo que vivemos juntos. Na Medida do Impossível é também isso. Quando vejo espetáculos que fiz, sou transportado para o tempo que vivi com aquelas pessoas a construir aquele espetáculo. O tempo é precioso, saber com quem o passamos é fundamental. Fazer teatro é um trabalho em que passamos muito tempo juntos. Formam-se laços profundos, às vezes familiares. Gosto de trabalhar com pessoas de quem gosto. Mesmo quando trabalho com alguém pela primeira vez é porque tenho o pressentimento que temos um futuro juntos e que vamos querer passar muitos anos juntos. A vida é tão curta, poder escolher com quem se passa o tempo é um grande privilégio. Para mim é sempre o mais importante nos espetáculos. Nem é a ideia para o espetáculo, é com quem é que vamos trabalhar. Depois a ideia às vezes mantém-se ou então transforma-se por causa daquelas pessoas, mas o grupo de pessoas é sempre o mais importante.
A propósito da celebração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, há muitos espetáculos em torno da efeméride e ancorados no espírito da revolução, mas nos últimos anos já havíamos assistido a peças altamente politizadas. Ou o teatro foi sempre político?
Acho que o teatro foi sempre político. O teatro pode às vezes ter uma versão mais explícita dessa dimensão política, ou seja, às vezes pode ser mais explicitamente político.
Vivemos esse momento?
Não particularmente. O teatro português que conheço melhor é necessariamente do meu tempo, portanto dos últimos 20 anos. Julgo que há sobretudo uma evolução, uma incidência grande do teatro que poderíamos chamar teatro documental, um teatro do real que trata a história ou o presente reais e a atualidade. Andei ou ando por vezes por esse território. Essa vaga de trabalho em Portugal, que tem sido crescente nos últimos 15, 20 anos, de teatro documental, pode nos dar a sensação de uma maior politização do teatro, mas acho que é sobretudo uma questão estética de como tratar esse lado político do teatro. O teatro documental por vezes trata-o de uma forma mais explícita, mas necessariamente o teatro português é um teatro muito politizado há muitas décadas, mesmo antes da democracia. A escolha de repertório, seja uma afirmação política mais ou menos explícita, tem uma dimensão política. Porque é que fazemos Tennessee Williams em vez de fazer Harold Pinter? Sarah Kane em vez de fazer [Jean] Racine? Há uma dimensão política nesta escolha e muitas vezes essa dimensão política é menos visível, mas não quer dizer que não esteja presente.
Em 2018, então diretor do Teatro Nacional D. Maria II, cancelou a sua participação num festival em Jerusalém decidindo aderir ao boicote cultural a Israel. “Não aceito que o meu trabalho artístico seja usado com motivos políticos sem o meu acordo”, disse. A sua ação política extravasa o teatro?
Absolutamente. Não acho que o teatro seja política. O teatro é arte e é uma arte que, como toda arte, tem uma dimensão política. No caso do teatro, escolho, muitas vezes, que o teatro que faço tenha uma dimensão mais explicitamente política ou não. Quando faço um espetáculo como António e Cleópatra (2014), que poderia ser só um revisitar e uma reescrita de uma história de amor mítica e de uma tragédia shakespeariana, acho que também há uma dimensão política. Embora seja, sobretudo, uma história de amor, há uma dimensão política porque o Marco António e a Cleópatra são pessoas de culturas diferentes que escolheram ficar juntas. Acho isto profundamente romântico e, ao mesmo tempo, político. A capacidade de ver o mundo através dos olhos do outro é qualquer coisa que nos faz tremendamente falta na sociedade hoje. Portanto, há sempre uma dimensão política, mesmo que ela possa ser muito poética, naquilo que faço. Mas não é política. É criação artística. Há uma outra dimensão minha, de cidadão, que me conduz a uma participação cívica. Não sou militante de nenhum partido, mas tento participar civicamente. Tento, quando julgo que é necessário, ter uma voz enquanto cidadão e, sobretudo, com a dimensão de ser uma figura relativamente pública e a minha voz poder, também, de alguma forma, ter ressonância noutras e noutros.
É o primeiro artista não francês ao comando do Festival de Avignon. Disse que ser português terá influenciado negativamente a presença do teatro e da dança lusófona na primeira edição do festival por si concebida, por uma espécie de “pudor muito português”, mas que estes teriam um espaço forte no futuro, pela “sua enorme qualidade”. Na edição deste ano do Festival de Avignon a língua convidada é o espanhol. De que forma é que esta promessa se refletirá no futuro próximo?
Embora tenha havido artistas portugueses, penso no Vitor Roriz e Sofia Dias, dupla de coreógrafos que participou num projeto mais largo com vários artistas europeus no festival, é verdade que não houve uma presença muito grande de artistas portugueses neste primeiro ano que dirigi. Acho que é importante, enquanto diretor do festival, deixar bem claro que a minha nacionalidade não é um critério de escolha dos artistas. Há um simbolismo em não ter muitos artistas portugueses na primeira edição do festival que tem a ver com poder ter a legitimidade de poder dizer que não pratico propriamente uma preferência por questões de nacionalidade. Por outro lado, seria tremendamente estúpido que o facto de ser português prejudicasse muitos artistas de enorme qualidade, que têm todo o espaço para se apresentar no Festival da Avignon. Seria um comportamento tacanho, quase mesquinho, prejudicar o trabalho de artistas que são fenomenais porque têm a mesma nacionalidade do que eu.
Além disso, claro que o meu conhecimento do teatro e da dança em Portugal me permitem dar a descobrir a outros públicos, nomeadamente o francês, mas também o público europeu e mundial que se desloca para o Festival de Avignon, criações artísticas e artistas portugueses. Portanto, obviamente que nos próximos anos haverá uma presença. Aliás, já desde este verão haverá uma presença mais expressiva da criação portuguesa em Avignon.