A peça “Catarina e a beleza de matar fascistas”, do encenador e antigo diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II Tiago Rodrigues, está a ser contestada em Itália — país onde está agora a ser apresentada — por representantes de dois partidos políticos: a formação de extrema-direita Fratteli d’Italia (Irmãos de Itália) e a formação populista de centro-direita Forza Italia. A última foi fundada pelo antigo primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi.

As críticas foram relatadas esta quinta-feira pelo próprio encenador português, vencedor do Prémio Pessoa e nomeado para próximo diretor artístico do Festival d’Avignon. Tiago Rodrigues, que se tornará assim o primeiro diretor estrangeiro na história daquele que é considerado o mais importante festival europeu de teatro da atualidade, publicou na sua conta de Facebook (aberta) uma notícia de um meio de comunicação italiano em que são difundidas as críticas à peça.

A publicação de Tiago Rodrigues no Facebook

Na base das críticas estará uma interpretação literal do título da peça, que, acreditam estes dois partidos italianos, faz uma apologia da violência contra fascistas e defende a legitimidade da mesma.

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Atribuir culpas ao que não se conhece e não se tentou conhecer é a própria definição de preconceito. Estes candidatos a censores são profundamente preconceituosos, talvez porque são ignorantes (o que é possível) ou porque são mentirosos (o que é provável)”, reage Tiago Rodrigues.

O encenador português revela que o partido italiano de extrema-direita Fratelli d’Italia já tentara censurar uma apresentação da peça “em Roma, há duas semanas” e voltou agora a tentar travar as suas apresentações no Teatro Storchi, em Modena, agendadas para esta quinta-feira e sexta-feira (28 e 29 de abril). Desta vez, está acompanhado pelo Forza Italia, que se juntou nas críticas a “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”. As apresentações em Itália foram apoiadas pelo ERT, teatro nacional (público) do país.

No meio de comunicação italiano que difunde as críticas — o jornal Il Resto del Carlino, de Modena — , é citada a posição do partido Fratelli d’Italia, que considera “desapropriado” que “uma peça lance o debate sobre se é correto ou não matar um ser humano por causa das suas convicções ideológicas”. Da parte do Forza Italia, diz-se que “há um limite para tudo” e acusa-se a peça, “financiada com fundos públicos”, de veicular “mensagens de ódio e elogios de práticas criminosas”. Algo, note-se, que a peça não faz, nem sequer com fins meramente artísticos e ficcionais.

O próprio jornal de Modena nota que a protagonista da peça, uma personagem chamada Catarina, recusa-se a “matar fascistas”. O encenador e os atores partem desta premissa para uma reflexão em que se questionam se “há lugar para a violência na luta por um mundo melhor?”.

“A peça falar de violência não a torna num apelo à violência”

Em reação às críticas dos dois partidos políticos italianos, Tiago Rodrigues refere: “Tentam censurar uma obra que não viram, cujo texto não leram, fazendo acusações que qualquer pessoa que tenha visto o espectáculo percebe serem absurdas e infundadas“. E acrescenta:

O facto desta peça falar de violência não a torna num apelo à violência, do mesmo modo que a história de Norman Bates em Psycho não torna Hitchcock num adepto do matricídio. Não compreender isso é não compreender o que é o discurso artístico, a representação, a ficção, uma simples história. Posto isto, a estreia em Modena é hoje, às 20h30. E será.”

Já publicada em livro em França, e apresentada em várias cidades europeias depois de ter sido exibida em Portugal, “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” é uma produção do Teatro Nacional D. Maria II, sucedendo a outras peças de Tiago Rodrigues aclamadas pela crítica como “Sopro” e “By Heart”.

Quando a peça se estreou em palco, em Portugal, Tiago Rodrigues dizia ao Observador: “Há várias perguntas na peça sobre a legitimidade da violência como arma política e sobre a violência como ferramenta para a construção de um mundo melhor. Não se pretende, porque também não seria possível, dar uma resposta. Através da ficção, da narrativa do teatro, a peça pretende contar uma história que nos permita questionarmo-nos a nós próprios e ao público, o que está acompanhado por uma dimensão poética, de beleza, de humor”.

Na mesma entrevista, o encenador dizia também: “O meu ponto de vista em relação à vida, e digo-o com a maior das convicções e facilidades, é o do pacifismo, sim, da não-violência, o que não quer dizer que alguém que tem uma posição não-violenta não possa questionar-se sobre a violência. (…) Considero-me um democrata, um pacifista, mas não posso deixar de levar para palco diversos pontos de vista que não são os meus, são os das personagens. Tenho confiança na arte teatral e no público, que sabe distinguir uma frase dita por uma personagem daquilo que é uma convicção do autor de uma peça“.

Tiago Rodrigues: “Populismo de extrema-direita é tratado como se tivesse lugar à mesa da democracia”

Mais tarde, em declarações à Agência Lusa, Tiago Rodrigues descreveu a peça como versando sobre a “ameaça da ascensão de populismos de extrema-direita, de tendência fascista, para não lhe chamar efetivamente fascistas”.

Em Portugal, a peça chegou a ter uma primeira sinopse que detalhava que “Catarina e a beleza de matar fascistas” versaria sobre “a história de um rapto, ficcional mas apenas por agora” de “um juiz português que existe mesmo, com um polémico historial de decisões a favor de homens que agridem mulheres”: Neto de Moura. O texto foi posteriormente substituído e Tiago Rodrigues explicou porquê ao Observador, à época: “A iniciativa de alterar o texto foi minha, este texto é mais adequado às ideias do espetáculo”.

O texto anterior fora escrito “no contexto artístico, com ironia”, dizia ainda Tiago Rodrigues, garantindo que não tivera “qualquer objetivo de apelar a qualquer espécie de conduta que não seja legal ou cívica” e rematando: “A ironia também é uma figura de estilo acessível aos jornalistas e à imprensa. No entanto, reconheço que era um texto que podia levar a leituras erróneas e também já não se adequava à evolução do espetáculo”.  A sinopse que substituiu a anterior versão não deixava “de recorrer à ironia”, mas era “mais cuidadosa” para evitar extrapolações do discurso artístico para uma apologia de violência fora do teatro.

Um “rapto de Neto de Moura” no teatro: Tiago Rodrigues alterou o texto de apresentação porque “podia levar a leituras erróneas”