Para a minha geração – adolescentes ali pelo fim dos anos 80 e início dos anos 90 – o ano de 1989 foi poderoso em imagens. Duas destacam-se: o muro de Berlim a desfazer-se – ou melhor, a ser desfeito pelos habitantes de Berlim dos dois lados — e a dos militares chineses esmagando os protestos dos estudantes em Tiananmen a 4 de junho. E o simbolismo simétrico delas não terá escapado a ninguém. Se na Alemanha (e todo o bloco de Leste) o comunismo colapsava e os países sonhavam com a democratização e a liberdade, na China a resposta violenta aos protestos garantia que as veleidades de maior liberdade e democracia estavam por lá engarrafadas por muitos e bons anos e que o Partido Comunista Chinês (PCC) estava, ao contrário dos europeus, alive and kicking. No primeiro evento os adolescentes líricos exultaram, no segundo, choraram pela má sorte dos colegas do outro lado do mundo.
Os chineses são supersticiosos com o número quatro (si), porque é homófono do verbo morrer. Talvez tenham razão, porque coisas más aconteceram aos chineses em dias 4. Também se pode dizer que a vida de Deng Xiaoping como o homem forte da China, o topo da pirâmide do poder efetivo – Deng nunca foi presidente da China nem do PCC, mas quem disse que a informalidade da cadeia de comando não funciona nas ditaduras? – começou e terminou em dois dias 4. Ambos em Tiananmen. E os dois como manifestações de luto.
Vamos ao primeiro. 1976, 4 de abril, dia do festival Qingming, festividade em que chineses homenageiam os seus mortos. Uma multidão acorreu a Tiananmen para depositar flores pela recente morte de Zhou Enlai, o primeiro-ministro. Era uma crítica simbólica pouco subtil ao todo-poderoso imperador Mao. Viviam-se tempos ainda de Revolução Cultural, os chineses estavam devastados pela turbulência e violência dos últimos dez anos. Já não escondiam que consideravam Mao culpado por todos os infortúnios e pela proteção ao muito odiado Gangue dos Quatro, o grupo dos radicais que mais incitaram à violência e aplicaram vinganças numerosas aos seus opositores. Eram, para acrescentar às aleivosias, inimigos declarados do moderado Zhou Enlai, o falecido. (Bom, moderado por comparação, nunca esquecer que se trata de uma ditadura do proletariado.)
Mao viu a sincera e ostensiva demonstração de luto por Zhou como uma afronta pessoal. (Tinha razão: era.) Os militares varreram as flores de Tiananmen algumas vezes, mas as flores regressavam. As multidões também. No dia 5, os militares desocuparam à força os manifestantes da praça, com mortos e feridos abundantes. A Revolução Cultural continuou mais uns meses até Mao morrer em setembro. As populações perceberam o recado para se pacificarem.
Porém as esperanças depositaram-nas naquele dia em Deng Xiaoping, o vice de Zhou Enlai, herdeiro da linha política moderada e mais compassiva. As esperanças não foram defraudadas. Pouco depois de Mao morrer e de o sucessor designado Hua Guofeng se tornar presidente da China e do PCC, Deng tratou de organizar um golpe. Deixou Hua com a posição oficial, mas vazia de poder. E tratou ele próprio, ocupando meramente um cargo informal de uma comissão consultiva, de comandar a China. Ninguém lhe levou a mal nem protestou. Na verdade, os chineses suspiraram de alívio com este desfecho.
[Veja no vídeo como os sobreviventes viveram as seis semanas de ocupação de Tiananmen]
Os anos que se seguiram à Revolução Cultural foram de anticlímax e os mais arejados para a liberdade dos chineses das últimas décadas. Deng iniciou as reformas económicas, com as suas quatro (outra vez) liberalizações, e a prosperidade chinesa nasceu e ainda por cá anda. Chegaram ao ponto de introduzir a possibilidade de eleições na constituição chinesa em 1982 – foi a loucura liberalizante. E, de facto, apenas com interrupção nos anos a seguir a 1989, existem até hoje regularmente eleições locais nas zonas rurais. (Adivinhamos todos que o número de pessoas que se candidatam contra o PCC nestas eleições anda consistentemente nos zero, certo?)
A liberdade de expressão teve uma época dourada. Aceitavam-se críticas abertas aos oficiais malignos do PCC dos últimos anos maoistas. Os órgãos de comunicação social multiplicaram-se. A literatura floresceu. Eram publicados relatos das agruras dos anos da revolução – e, se não se culpava explicitamente o PCC (essa continuava a ser heresia punida), o subtexto não era difícil de entender, afinal o PCC e os seus líderes haviam permitido, até promovido, que as calamidades ocorressem. Deng Xiaoping não se incomodou com as críticas aos oficiais do partido, veladas ou evidentes, ao contrário de outros destacados membros do PCC. Peng Zhen ou Chen Yun, por exemplo, alarmavam-se por verem descritos tão cruamente o caos e violência da Revolução Cultural. Propuseram mesmo uma campanha contra a ‘poluição espiritual’ que a literatura dos anos oitenta, diziam, representava. No entanto, pelo seu lado, Deng até elogiou expressamente as obras da shenghen wenxue, ou ‘literatura da cicatriz’ (ou ‘literatura dos feridos’), que contavam histórias de sofrimento durante a Revolução Cultural. Deng usou este apoio aos autores para ilustrar o corte que ele próprio havia feito com as políticas maoístas. A única característica que o incomodava não era a crítica política, mas sim a pieguice e choraminguice que o prático Deng ‘não interessa se o gato é branco ou preto desde que cace ratos’ Xiaoping vislumbrava nestas obras.
Avancemos para 1989. A 15 de abril morre Hu Yaobang, depois de um ataque cardíaco numa reunião do Politburo uma semana antes. Hu era uma raridade: um comunista do topo do PCC que propunha a democratização do regime. Tinha sido despromovido dois anos antes por demasiada simpatia e mão excessivamente leve com os protestos de estudantes em 1986 (e porque propunha a democratização do regime). Os estudantes gostavam de Hu, que consideravam um aliado, e as manifestações de luto e pesar foram espontâneas. Inicialmente, nem sequer politicamente motivadas.
No entanto, os universitários de 1989 eram crias do ambiente mais liberto que Deng permitira. E tinham razões de queixa, tanto coletivas como do seu destino individual. Desejavam, para a comunidade, mais democracia, mais liberdade, uma política mais compassiva, menos corrupção. E, para si próprios, liberdade para fazerem as suas escolhas profissionais, em vez de terem os empregos designados pela burocracia estatal, bem como maior liberdade de movimentos. Sem planeamento, cada vez mais estudantes acorriam à praça Tiananmen. Às tantas, as reivindicações políticas dos estudantes surgiram e impuseram-se.
Podemos dizer que entre os estudantes e o PCC houve alguns erros de perceção mútua. Os estudantes nunca supuseram que as autoridades usassem a força contra o seu protesto pacífico. Com a crescente simpatia que as populações de Beijing lhes dirigiam, tal como os intelectuais e até os jornais (estatais e controlados pelo PCC), convenceram-se que era possível um entendimento com o partido. A comunicação social aos dias tantos teve ordens para deixar de dar notícias sobre o que se passava em Tiananmen – para não dar ideias a outras cidades e porque os jornalistas eram demasiado parciais com os estudantes.
Já ao topo do PCC não ocorria a possibilidade de os estudantes não obedecerem às ordens para debandarem depois de marcarem simbolicamente a sua posição. Deng, já octogenário, manteve-se sempre informado e reservando-se a decisão final. Por outro lado, via os sobressaltos dos países comunistas da Europa de Leste e temia que algo parecido sucedesse na China. Sem paciência para a duração dos protestos, a 26 de abril ordenou um ríspido editorial do Renmin Ribao, o Diário Popular que acumula com jornal oficial do regime, criticando duramente os estudantes, declarando que se tratava de um ataque à liderança do PCC e ao sistema socialista, ameaçando os que persistissem.
Os jovens serão jovens e a afronta do editorial do Renmin Ribao evidentemente inflamou-os mais. Nos dias seguintes demonstrações, que chegaram a ter mais de um milhão de pessoas, protestaram contra o ralhete que lhes tinha sido dirigido via jornal oficial. As posições foram endurecendo até que a 13 de maio, sem que Nossa Senhora tenha aparecido, os estudantes entraram em greve da fome. Não era uma greve muito estrita – alguns bebiam líquidos alimentícios, outros comiam ocasionalmente – mas ainda assim durante os onze dias que durou, mais de oito mil estudantes (segundo estatísticas oficiais) foram levados para os hospitais próximos. A greve de fome exponenciou a simpatia da população pelos universitários. As autoridades, não querendo mortes, prestaram todo o tratamento aos estudantes que desmaiavam pela praça.
Enquanto isso, na cúpula do PCC as facas aguçavam-se. Li Peng, o primeiro-ministro, era o promotor da linha dura que advogava nenhuma tolerância para os estudantes. Do outro lado, Zhao Ziyang, o secretário-geral do PCC e considerado herdeiro de Deng Xiaoping, defendia diálogo e entendimento com os estudantes. A 4 de maio, no septuagésimo aniversário desse outro movimento de intelectuais e estudantes em 1919 (teve este ano o centenário), Zhao fez um discurso no Banco Asiático de Desenvolvimento apelando ao apaziguamento. Defendia junto dos seus pares que o PCC se devia retractar do editorial de 26 de abril, e propôs até que se declarassem as manifestações dos estudantes um movimento patriótico. Sem surpresas, Zhao era o líder político mais popular junto dos estudantes.
O fim da história sabemos todos. Prevaleceu a linha dura de Li Peng e Deng Xiaoping e na noite de 3 de junho foi dada ordem ao exército para esvaziar a praça. Na madrugada de 4 de junho, os 150 mil militares que se concentraram em Beijing arrastaram para fora da praça Tiananmen os cerca de cem mil estudantes desarmados que ainda lá permaneciam, atirando sobre eles e atropelando os que os tanques apanhavam pela frente.
O número de mortos permanece desconhecido (o da revolução Cultural também, e do Grande Salto em Frente, pelo que é o manter de uma tradição). O relatório preliminar chinês (não houve definitivo) contava 241 mortos, incluindo 23 soldados. A Cruz Vermelha inicialmente estimou os mortos em 2600, e o embaixador suíço que visitou os hospitais estimou um número de 2700. (Às demais consequências já lá vamos.)
Porém, nos degraus para o clímax violento houve algumas histórias de redenção, de coragem e de disponibilidade para pagar o preço por manter princípios inalienáveis (não usar violência contra a própria população desarmada, por exemplo). Mesmo na rígida ortodoxia hierárquica do comunismo chinês houve quem se rebelasse quando, a 20 de maio, Deng declarou a lei marcial (que preconizava, viam autoridades e populações civis, eventos sangrentos). O referido Zhao Ziyang, que ficaria responsável por implementar a lei marcial, demitiu-se para não o fazer. A 28 de maio foi colocado em prisão domiciliária (e teve o beneplácito de assim ficar até morrer em 2005).
O major-general Xu Qinxian, o líder da divisão de elite 38.º Grupo do Exército, recusou receber verbalmente, de Li Peng, as ordens da instituição da lei marcial, e informou que não participaria no que se preparava. Passou cinco anos na prisão e foi expulso do PCC (o que era, quiçá, ainda mais grave).
Algumas dezenas de oficiais e soldados revoltaram-se contra as ordens, mas a insubordinação mais surpreendente e bonita veio da população civil. Nos dias seguintes à imposição da lei marcial, os militares de outras regiões viajaram até Beijing. Mas os civis, numa multidão imensa com o objetivo de impedir que os militares usassem a força sobre os estudantes, bloquearam as entradas da cidade, impedindo os carros militares carregados de soldados de passarem. Todas as divisões tiveram de voltar para trás, para a sua origem.
A proteção dos habitantes de Beijing aos estudantes – costumavam ir levar-lhes comida e agasalhos – foi tal que teve de ser organizada uma entrada camuflada de militares na cidade. Os soldados viajaram à paisana nos autocarros e comboios normais, as armas foram transportadas em camiões civis. No dia 3, ao verem as armas sendo descarregadas para o Grande Hall do Povo (onde se reuniu grande número de tropas), a choradeira popular foi geral em Beijing. A população não queria que a fúria do PCC se abatesse sobre os pacíficos e bem-dispostos manifestantes.
Para os estudantes, as semanas antes do crackdown final foram de libertação. Não só pela adrenalina dos protestos, também pelo ambiente de liberdade que lá viveram. Namorados passavam pela primeira vez noites juntos, universitários saíam da redoma do cuidado controlador dos pais tigre chineses. O fotógrafo Patrick Zachman, que assistiu aos protestos e os fotografou divinalmente, recorda-se do ambiente festivaleiro e chama-lhe o ‘Woodstock chinês’.
E depois?
Voltando ao que escrevi no início, este dia 4 em Tiananmen, junho de 1989, foi o fim do tempo de Deng como o todo-poderoso da China. Não por contestação interna dentro do PCC pela violência daquele dia – que os líderes chineses não são propensos a incomodarem-se com meia dúzia, ou duas mil e quinhentas, de vidas perdidas – nem por exigência popular. O próprio Deng entendeu que deveria puxar a cortina e passar o testemunho a uma geração mais nova. Em maio, ainda antes dos ‘incidentes de Tiananmen’, Deng escolheu Jiang Zemin, de Shanghai, para próximo secretário-geral. Depois de limpa a situação, Deng retirar-se-ia totalmente. Não previa contestação pela mão pesada em Tiananmen, em todo o caso alguma nódoa Deng compreendeu que ficaria, porque um dos atributos positivos de Jiang Zemin era não ter estado de modo nenhum envolvido com a repressão das manifestações dos estudantes.
Ainda assim, conta Ezra Vogel na sua biografia de Deng Xiaoping (ao longo de vários quilos de livro), que este nunca se mostrou arrependido nem considerou o uso de força excessivo naquele dia 4. Fez o que tinha de fazer. O próprio Vogel, que escreveu uma obra incontornável sobre Deng, ensaia justificações para o que se passou. A China teve depois décadas de paz e prosperidade e etc e tal. Enfim, não foi o primeiro nem será o último autor a ter uma paixoneta intelectual pelo objeto da sua escrita, ficando com a imparcialidade toldada.
Nos dias seguintes à violência em Tiananmen, o escritor Yu Hua, no livro China em Dez Palavras, recorda-se de ver na televisão, em peças constantemente repetidas, as imagens dos líderes dos estudantes sendo presos. A mensagem para os chineses de todas as extrações sobre o destino de quem contestava o PCC era clara. Depois da repetição incessante dos prisioneiros, o assunto Tiananmen desapareceu das notícias. Os locutores trocaram o sobrolho carregado, por causa da gravidade da turbulência que os inimigos do PCC, em versão universitário angelical, tinham provocado, pela boa disposição das notícias da crescente prosperidade económica chinesa numa comunidade em paz. E por trinta anos nunca mais foram referidos ‘os incidentes’ (o eufemismo para a mortandade; bom, afinal os milhões de mortos do Grande Salto em Frente também ocorreram nos ‘três anos de calamidades naturais’, que as políticas agrárias de Mao não tiveram culpa nenhuma).
Louisa Lim, num livro sobre várias experiências pessoais de vários protagonistas dos protestos de Tiananmen, publicado há cinco anos, chamou-lhe sintomaticamente The People’s Republic of Amnesia, Tiananmen Revisited. A violência sobre os estudantes de Tiananmen a 4 de junho de 1989, é uma espécie de batalha de Alésia dos livros do Astérix e Obélix: ninguém a refere e toda a gente se faz desentendido se lhe perguntam. A amnésia é promovida pelo PCC, claro, que não permite a referência aos ‘incidentes’ na comunicação social, os livros que a refiram publicam-se em Hong Kong e Taiwan mas de modo nenhum na China, os historiadores que nem cheguem perto do tema para o pesquisarem. Como Louisa Lim refere, os chineses têm uma ‘técnica de esquecer a História’. Desde logo porque não olhar para o passado é ‘um ato de sobrevivência’. A icónica fotografia de Jeff Widener, com um homem sozinho na rota de quatro tanques de guerra, reconhecida abundantemente no Ocidente, foi apenas identificada por quinze estudantes chineses em cem a quem Lim a mostrou.
Ao mesmo tempo que impunha uma amnésia coletiva, o PCC carregou no simbolismo para estreitar os laços dos chineses ao partido reinante. A cerimónia matinal de levantar a bandeira da China na mesma Tiananmen, passou, em 1991, de ocupar três guardas para se tornar num acontecimento pomposo com 36 guardas. Em 25 anos, mais de duzentos milhões de chineses assistiram à cerimónia.
Outro fenómeno aproveitado pelo PCC foi a nostalgia dos tempos maoistas que perpassou os anos 1990 – consequência mais dos sobressaltos do crescimento económico, do despedimento nas fábricas cada vez mais mecanizadas dos trabalhadores que durante o maoismo pouca educação formal tinham obtido, das crescentes desigualdades sociais, que da bondade das condições de vida sob Mao. O partido que na década de 80 incentivou que se criticassem a loucura e o caos dos últimos anos do maoismo, foi o mesmo que patrocinou uma exposição de fotografias dos jovens durante a Revolução Cultural, de nome ‘A Nossa Ligação Espiritual ao Solo Negro’, inaugurada a 25 de novembro de 1990. Foi visitada por 150 mil pessoas, desencadeou uma enorme reação emocional nos que tinham sido adolescentes durante a Revolução Cultural e enviados para as zonas rurais por Mao. Onde foi a exposição? No Museu de História de Beijing, em Tiananmen.
Em todo o caso, os chineses foram cúmplices da amnésia imposta pelo PCC. Para terminar bem (é como quem diz: citando novamente Yu Hua), na China pós 4 de junho, a vontade de intervir politicamente evaporou-se: “As paixões políticas que tinham explodido em Tiananmen – paixões políticas que se tinham acumulado desde a Revolução Cultural – tinham-se finalmente gasto completamente num ato calamitoso, para serem substituídas pela paixão de enriquecer”. Com Tiananmen, os chineses deixaram-se de veleidades e ousadias políticas para se concentrarem em ganhar dinheiro.