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Todos os dias são dias de Mafalda, a “indispensável”

Um novo livro recupera tiras fundamentais para nos lembrarmos que, com Mafalda, Quino emparelhou com mestria irrepetível a beleza e a crueldade, a certeza e a dúvida, o riso e a angústia.

Nasci em 1981, oito anos depois de Mafalda morrer. Não foi uma morte literal, nem sequer anunciada com a pompa que mereceria, mas antes uma vela que se apagou, abruptamente para o leitor, porém a tempo do enfartamento do seu autor, que a soprou com notório alívio. Quino e Mafalda — a menina que em 2024 completa 60 anos de invenção e por isso dá azo ao lançamento pela chancela Iguana de O Indispensável da Mafalda — não tinham uma relação fácil. Como o próprio refere na entrevista dada em 1987 ao jornalista italiano Rodolfo Braceli (conversa essa que completa esta edição que agora chega às livrarias), o cartoonista achava Mafalda “um pouco declamatória, muito exagerada” com um discurso “elaborado, fabricado”. Além disso, fazer tiras durante os apenas nove anos de vida da personagem (de 1964 a 1973, menos tempo do que Calvin e Hobbes, por exemplo) resultou em tempos “cansativos, de certa forma opressivos” que quase lhe custaram a lucidez e o casamento. Muitas vezes, Quino e Mafalda não foram felizes — e quando desistiu de a desenhar, o argentino nunca mais voltou atrás, apesar dos cheques que se acenaram. É como se o monstro de Frankenstein se preparasse para engolir o seu criador, precipitando a sua fuga.

Para mim, esta descoberta de algum antagonismo foi de certo modo um choque. Mafalda era um exemplo a seguir e era impossível que alguém não gostasse dela. Como muitas da minha geração, cresci a ouvir “és mesmo Mafaldinha” de cada vez que era respondona ou colocava algum adulto em causa — uma medalha que carregava ao peito. A mochila do meu primeiro dia de escola era da Mafalda, assim como o estojo, as agendas ao longo dos anos. Mafalda era o meu Mickey, sem que eu percebesse que na verdade quase tudo naquela menina de laçarote era uma metáfora para coisas que eu ainda não compreendia. Até a fatídica sopa, tão constante nas tiras que tem direito a um dos 10 capítulos de O Indispensável de Mafalda, era, segundo Quino, “uma alegoria dos governos militares: algo de que ela não gostava, mas que tinha de suportar”.

A capa de "O Indispensável da Mafalda", de Quino (Iguana)

Quem, como eu, arrastou o calhamaço Toda a Mafalda para todo o lado, talvez não percebesse quanto o título do volume era literal. Estava ali mesmo toda a Mafalda, não haveria mais (tirando raríssimas aparições fora do âmbito das tiras, como as ilustrações em 1977 para a Unicef), era uma separação com a ilusão de reconciliação, mas apenas devido a todo o merchandising que continuava. Quino parou de desenhar a personagem com 41 anos; morreria em 2020, aos 88, tendo desenhado muito, muito mais do que aquela menina que engoliu tudo o que veio depois (e foram muitos volumes de outras obras, igualmente notáveis, mas sempre injustiçadas na comparação).

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Quino, o homem que mostrou que o mundo é uma balbúrdia que vale a pena

O argentino odiava dar entrevistas, era um tímido sem problemas em mostrar o seu frete aos jornalistas. “Não gosto de matérias jornalísticas. E sinto-me um idiota a posar para fotos. Mas como estão a ser lançados esses livros, achei que era melhor fazer”, diz à Folha de São Paulo em 2010. Talvez por, em parte, saber que ia ter sempre de responder a perguntas sobre o seu monstro que se recusava a morrer. Tem saudades da Mafalda? “Não, se a Mafalda quer viver, isso é lá com ela”, respondeu a Braceli. O que ia Mafalda dizer do mundo atual? Que era um “desastre” e uma “vergonha”, seguindo para o tema seguinte a toda a velocidade. E assim por aí adiante.

Mafalda moraria numa gaveta até começar a ser publicada no semanário "Primera Plana", seguindo daí para o "El Mundo" e depois para o "Siete Días" até à sua última tira. Ao longo dos anos, as mesmas tiras foram várias vezes editadas em livro, continuando a ser best sellers muito para lá do fim anunciado em 1974.

Na mesma entrevista a Braceli, é possível perceber que Quino tinha uma outra personagem preferida: Liberdade (protagonista do último capítulo de O Indispensável de Mafalda), uma menina com ainda maior capacidade de provocar incómodo nos adultos do que a sua protagonista, e que foi das últimas a chegar ao grupo. Talvez, num universo paralelo, tivesse sido ela a figura central. As outras personagens, como Susaninha ou o irmão Gui, foram inventadas quando Quino já não sabia o que fazer com Mafalda, na tal tortura do pêndulo constante da publicação em jornais. O cartoonista nunca pensou que iria passar tanto tempo com ela.

Mafalda nasceu numa agência, na qual pediram a Quino uma tira de BD que tivesse publicidade dissimulada a uma marca de eletrodomésticos, a Mansfield. Essa tira, sobre uma família, vagamente baseada na moda dos Peanuts, nunca foi aceite por nenhuma publicação, já que se aperceberam que era apenas um método de propaganda a fazer-se passar por conteúdo. A menina dessa família chamava-se Mafalda, um nome com semelhanças gráficas a Mansfield e, simultaneamente, uma homenagem a uma cena do filme argentino de 1962 Dar La Cara, no qual alguém batiza uma bebé com esse nome (a que alguém reage “tem nome de princesa”). Mafalda moraria numa gaveta até começar a ser publicada no semanário Primera Plana, seguindo daí para o El Mundo e depois para o Siete Días até à sua última tira. Ao longo dos anos, as mesmas tiras foram várias vezes editadas em livro, continuando a ser best sellers muito para lá do fim anunciado em 1974.

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Mafalda ajuda-nos, gradual e pacientemente, a ir descascando camadas de compreensão ao longo da nossa cronologia

SOPA Images/LightRocket via Gett

Quino, de nome oficial Joaquín Salvador Lavado, nasceu em Mendoza, terra de sestas e terramotos. E este contraste, esta ambivalência, faz parte de toda a sua obra, Mafalda incluída. Capaz de emparelhar com mestria irrepetível a beleza e a crueldade, a certeza e a dúvida, o riso e a angústia. Precisa de fazer humor porque dói, e no processo não sabe se há de apaziguar essa dor ou esfregar-lhe gasolina, oscilando entre um e outro conforme encontra a esperança para a perder uns passos mais à frente. Numa entrevista à agência noticiosa espanhola EFE, por ocasião da Feira do Livro de Buenos Aires, disse que gostaria de ser recordado como “alguém que fez pensar as pessoas sobre as coisas que acontecem”. Justo. Só não olhamos hoje para Quino como o pensador, o filósofo que foi pelo preconceito para com aquilo a que ainda chamamos “os bonecos”. Não era um marco intelectual e semiótico que eu esperava das ilustrações da minha tal mochila; nem achava que uma miúda da primária podia partilhar referências com Umberto Eco, que tantas vezes escreveu sobre e elogiou Mafalda (no seu texto de 1969 Mafalda ou a Recusa diz que a personagem assume “o aspeto paradoxal de uma dissidência infantil, de um eczema psicológico de reação à comunicação de massas, de uma urticária moral provocada pela lógica dos blocos, de uma asma intelectual causada pelo cogumelo atómico”).

Senhor Quino: vou contar-te como a Mafalda mudou a minha vida

Quino foi, ao mesmo tempo, moderno e clássico. De um lado, o homem que criou uma personagem verdadeiramente feminista quando tal não existia, muito menos com aquelas características questionadoras e desbragadas. Do outro, o senhor da velha guarda, com tinta e mata-borrão, que na entrevista à Folha de São Paulo, disse nunca ter sequer usado um computador. “Na Europa é muito comum que uma pessoa vá aos correios e não haja uma pessoa para atendê-lo. Vamos a uma máquina, pesamos a carta, vemos quanto temos que pagar e tudo o mais, sem encontrar ninguém para nos dizer que gostou do nosso penteado hoje”, queixou-se.

Na página 110, na secção do irmão mais novo de Mafalda, há uma tira na qual este desenha por toda a casa, encarando no final com espanto uma mãe à beira de um ataque de nervos: "não é incrível tudo o que há dentro de um lápis?". Talvez esta fosse a imagem que deveria estar na sepultura de Quino — a enormidade de tudo o que cabia naquele lápis.

O Indispensável de Mafalda não traz nada de novo ao universo de Mafalda, tirando o mérito de poder fisgar mais uma geração para a inquietação da detestadora oficial de sopa. Esta seleção de tiras publicadas ao longo dos nove anos de vida da pequena argentina está agrupada por temas ou personagens: A Família, O Bairro, A Escola, Assim Vai O Mundo, Mafalda E A Sopa, As Férias, A TV, O Gui, A Susanita, O Filipe, O Manelito, O Miguelito e A Liberdade. Na página 110, na secção do irmão mais novo de Mafalda, há uma tira na qual este desenha por toda a casa, encarando no final com espanto uma mãe à beira de um ataque de nervos: “não é incrível tudo o que há dentro de um lápis?”. Talvez esta fosse a imagem que deveria estar na sepultura de Quino — a enormidade de tudo o que cabia naquele lápis.

Reli Mafalda várias vezes ao longo da vida, porque é exatamente para isso que ela serve: para nos pegar na mão quando somos, aparentemente, parecidas com ela e para depois nos ajudar, gradual e pacientemente, a ir descascando camadas de compreensão ao longo da nossa cronologia. Rio-me aos 41 anos de coisas diferentes do que ria aos 8 e depois aos 18 e depois aos 30. É minha amiga, mesmo que nem sempre tenha sido amiga de Quino. É sempre bom vê-la de volta.

 
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