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“Atos de tortura de extrema gravidade” e “violações de direitos humanos” como parte de um “plano desenhado pelas autoridades para reprimir os opositores ao governo”. A missão internacional independente da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Venezuela publicou, em setembro de 2022, um relatório que denunciava as práticas dos serviços de informações do país e que relata como estes tentam controlar e eliminar qualquer oposição ao regime. O documento fala mesmo em “crimes contra a Humanidade” perpetrados por agentes fiéis ao governo, sendo que a tomada de decisão está intrinsecamente ligada ao Presidente venezuelano e ainda ao seu número dois, Diosdalo Cabello.
Existem duas organizações que coordenam estas atividades contra os opositores. Uma delas é a Direção-Geral de Contrainteligência Militar (DGCIM), mas a mais conhecida — e a que mais assusta todos aqueles que se atrevem a levantar a voz contra o regime — é o Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (SEBIN). No rescaldo das últimas controversas eleições presidenciais, a ONU já veio alertar para uma “nova onda” de perseguições contra líderes políticos da oposição e como este organismo tem entrado em ação. “Estamos a assistir à reativação acelerada da máquina repressiva que nunca foi desmantelada e que agora é utilizada para minar as liberdades públicas”, afirmou uma das especialistas que faz parte da missão internacional, Patricia Tappatá.
[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor]
Apesar de o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) ter declarado a vitória de Nicolás Maduro com 51% dos votos contra 44% do adversário Edmundo González, a oposição venezuelana — liderada por María Corina Machado — garante que estes resultados são fraudulentos, tem convocado manifestações e está a tentar ganhar o apoio da comunidade internacional. Em reação, o regime tem tentado travar os protestos e tem detido opositores.
Só um exemplo: o regime de Nicolás Maduro deteve, na terça-feira, o coordenador político nacional do partido Voluntad Popular (o mesmo de Juan Guaidó, o opositor que está desde 2023 exilado em Miami) e que declarou o apoio a Edmundo González nestas eleições presidenciais, Freddy Superlano. Homens encapuzados sequestraram-no, estando agora em paradeiro desconhecido. Tendo em conta este modus operandi, a missão da ONU indica, com “dados preliminares”, que Freddy Superlano deverá ter sido levado por “membros do SEBIN”.
SEBIN: as secretas que torturam num antigo centro comercial com condições degradantes
É no bairro Roca Tarpeya, no sul de Caracas, que foi construído, numa colina, o edifício futurista helicoide (nome inspirado na sua forma de hélice) no início dos anos 60. Originalmente, seria um centro comercial de luxo, se bem que localizado numa zona pobre da capital venezuelana, a fazer lembrar uma favela. Como conta a CNN internacional, deveria albergar 300 lojas distribuídas por vários pisos, oito cinemas, um hotel e até um heliporto. Contudo, a empresa designada para construir o shopping acabou por entrar em bancarrota e não concluiu a sua construção.
O edifício passou para as mãos do Estado nos anos 70, mas só foi terminado uma década depois. Passou a ser a sede dos serviços secretos em 1985, que instalaram celas nos dois pisos inferiores. Atualmente, o helicoide acolhe vários prisioneiros do SEBIN, um organismo fundado pelo ex-Presidente Hugo Chávez em 2010, num esforço, segundo a ONU, para “planificar, dirigir, controlar e executar” todos os serviços de informações venezuelanos e com o objetivo de neutralizar “ameaças reais ou potenciais para o Estado”.
Inicialmente, o SEBIN estava sob a tutela da vice-presidência da Venezuela, mas, em 2021, passou para o Ministério do Poder Popular para as Relações Internas, Justiça e Paz, que coordena as forças de segurança e judiciais no país. Este organismo dos serviços de informações venezuelanos é o mais temido pelos opositores. Para isso, contribuem as características deste edifício futurista: a ONU denuncia que, como o helicoide foi originalmente construído para ser um centro comercial de luxo, carece de “instalações básicas de higiene, saneamento e recreio para funcionar como prisão”.
O ativista venezuelano Villca Fernández recordou, citado pelo jornal El Razón, os tempos em que esteve detido no helicoide. “Quando cheguei, um funcionário disse-me: ‘Bem-vindo ao inferno’. Não sei se aquilo era o inferno, mas se não o era, parecia bastante.” O dissidente do regime, detido por causa de um tweet, lamentou ainda a “tortura psicológica” que viveu nas celas: “Espancam, eletrocutam e afogam outros presos em frente à tua própria cela”.
São vários os relatos de tortura no helicoide. Quem lá passa recorda o sofrimento que passou. A professora Diannet Blanco conta que foi eletrocutada enquanto esteve detida no helicoide. E detalha as condições indignas em que viveu durante um ano e dois meses: “Partilhei uma cela de 50 metros quadrados com 26 mulheres. Havia presas políticas e presas por crimes. Estávamos apinhadas, tínhamos pouca ventilação, não tínhamos casas de banho limpas e não saia água pela torneia. Por isso, evitava fazer as minhas necessidades fisiológicas. Defecava em sacos plásticos.”
Numa entrevista, o ativista pelos Direitos Humanos venezuelano Lorent Saleh lembrou igualmente os anos em que esteve detidos helicoide: “Era ruído, sujidade, amontoamento, depravação. Presos políticos misturavam-se com alegados corruptos e 200 presos comuns”. “O helicoide é a pura expressão do Estado mafioso. Ali reina a extorsão, sobretudo económica. A níveis que ninguém é capaz de imaginar.”
O relatório da missão da ONU na Venezuela comprova, com base em várias entrevistas a presos políticos, as condições “indignas”, com “celas apinhadas” do helicoide. “As celas careciam, na sua maioria, de luz natural e de água. Como a muitos presos só lhes era permitida uma visita diária à casa de banho, muitos tinham de urinar em garras de plástico”. Mas havia um detalhe curioso no documento — quem tivesse dinheiro e meios podia ficar numa cela “privilegiada com melhores condições”.
“Houve presos que chegaram a pagar 200 mil dólares [cerca de 183 mil euros] em troca de uma cela um pouco melhor. As suas famílias endividaram-se, os seus filhos e netos“, denunciou Lorent Saleh, referindo que depois existem os que são detidos pela prática de alegados crimes económicos. “O SEBIN sabe que um fulano tem dinheiro. Montam algo a simular um facto punível, igual aos presos políticos. Sequestram-no. Detêm-no. Torturam-no. A família de fulano não tem onde denunciar, claro, porque é a própria polícia que o tem sequestrado. E depois dizem-lhe ‘venha, pague tanto’. E o fulano paga.”
Apesar de ser uma prisão temida, a sede do SEBIN não está localizada no antigo centro comercial. Está em cinco pisos subterrâneos — a que dão o nome de La Tumba — de um edifício bem no centro de Caracas, chamado Plaza Venezuela. Quando o prédio foi construído, em 2005, seria inicialmente para acolher escritórios para o metro da capital venezuelana, mas cedo passou a ser a sede deste ramo dos serviços secretos, contando igualmente com celas, conhecidas por não terem luz natural, nem ventilação.
Quem também esteve na tumba, antes de ir para o helicoide, foi Lorent Saleh. As diferenças não podiam ser maiores: o dissidente classifica os cinco pisos subterrâneos como um “laboratório para aplicação de um tipo muito particular de tortura”. “A instituição é a mesma, os métodos são diferentes. A tumba é tecnologia, é tortura psicológica. Tudo brilha. Tudo é limpo e branco. O silêncio é absoluto; a solidão é completa. Parece um manicómio futurista. O helicoide é mau odor, baratas, ratos. A tumba é espelhos, câmaras e paredes brancas.”
“La tumba, siete celdas de tortura en el corazón de Caracas”, creación de Miguel Rodríguez Torres.
Rodríguez Torres NO FUE UN PRESO POLÍTICO, no es ni dejará de ser llamado como lo que es, un violador de DDHH. pic.twitter.com/hvoRtMwuPI
— Majo Chacón (@Soymajochacon) January 21, 2023
Tamara Sujú Roa, uma advogada defensora dos direitos humanos, visitou a prisão e destaca o silêncio — “apenas se ouve o metro a passar acima da cabeça” — e o isolamento: os detidos “não têm noção se realmente é dia ou noite”. Cada piso, prossegue a advogada citada pelo ABC, tem “sete celas de dois por três metros” alinhadas de “forma contínua, uma atrás da outras, pelo que os detidos não se podem ver”. “Paredes brancas, grades cinzentas com uma abertura onde metem a comida. Cama de cimento branco, mesa de cimento branco. Os detidos passam as 24 horas vigiados por câmaras e microfones. Só esticam as pernas quando toca uma campainha interna para irem à casa de banho.”
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a polícia política venezuelana.
Asfixia, crucificação e violações: as torturas do SEBIN
As condições “indignas” onde estão os prisioneiros, muitos deles políticos, estão longe de ser as únicas críticas apontadas pela ONU, outras organizações internacionais e relatadas pelos sobreviventes. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pertencente à Organização dos Estados Americanos, emitiu uma resolução, no final de 2022, em que denuncia as “práticas de tortura e outros tratamentos cruéis contra civis e militares sem liberdade” que as autoridades venezuelanas levam a cabo.
A lista é vasta e bastante cruel. A tortura física consiste, segundo a comissão, na “crucificação, asfixia com químicos, espancamentos e choques elétricos nos genitais”. Já as táticas de tortura psicológica passam por “ameaças de morte ou ameaças de violência, ameaça de violência sexual ou de violação da vítima e dos seus familiares, privação sensorial, luz constante, frio extremo, nudez forçada mesmo em divisões com temperaturas extremamente frias”.
A Organização das Nações Unidas tem mais detalhes, no relatório publicado em setembro de 2022, dos horrores que viveram muitos dos detidos no helicoide ou na tumba, tendo em consideração a investigação da missão da ONU de 51 casos, em que se incluem “castigos cruéis, desumanos ou degradantes”.
“A tortura e os maus tratos costumam acontecer nos primeiros dias de detenção, antes das comparências iniciais perante o tribunal”, prossegue a missão da ONU, que refere que os “atos costumavam acontecer durante os interrogatórios para extrair confissões, informações, palavras-passe dos telemóveis e redes sociais, ou para obrigar as pessoas a incriminarem-se a si mesmas ou a outros, em particular líderes da oposição de alto perfil”.
Os métodos de tortura? A ONU fala de “espancamentos, descargas elétricas, asfixia com sacos plásticos e posições incómodas, assim como ameaças de morte ou violação”. A missão das Nações Unidas assinala mesmo que teve conhecimento de pelo menos “sete casos” em que os agentes do SEBIN perpetraram “atos de violência sexual ou de género contra os detidos”, ameaçando “violar tanto homens como mulheres” e utilizando para o efeito “partes do corpo e objetos”. “Também ameaçaram exercer a violência, incluindo sexual, contra as mulheres da família de quem estava detido.”
Víctor Navarro, um dos detidos no helicoide, recorda os primeiros dias e a tortura psicológica que vivenciou. “Interrogaram-me muitíssimo sobre quem eu era, o que fazia, quem me financiava. Tive muito medo no primeiro dia. Ameaçavam-me e diziam-me que iam violar a minha namorada na altura, diziam que me iam violar. Bateram-me bastante. Um agente sentou-se à minha frente e pôs uma pistola com três balas na minha boca.”
Ao Correio Brasileirense, Gregory Sanabria, estudante de engenharia líder de movimentos estudantis contra o regime, frisou que foi “torturado” em “várias ocasiões”. “Quando cheguei ao local [helicoide], prenderam-me a uma grade com algemas. No entanto, estar preso naquele lugar já é uma tortura. Eles morderam-me, bateram-me, mandaram que [alguém] desfigurasse o meu rosto.” Antes disso, quando foi detido, o jovem já tinha sido “torturado com eletricidade e com sacos plásticos com inseticida na cabeça”.
SEBIN tem um diretor-geral, mas Maduro manda no organismo
Oficialmente, o Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional tem um diretor-geral. Neste momento, quem ocupa o cargo é Gustavo González López, ex-ministro e homem de confiança de Nicolás Maduro. Mas a missão independente das Nações Unidas da Venezuela não tem dúvidas de que o Presidente venezuelano e Diosdado Cabello dão ordens no SEBIN para deter (e torturar) “civis, opositores reais, quem era entendido como tal pelo governo e outros indivíduos críticos de alto perfil” — entre os quais jornalistas, ativistas e líderes estudantis.
O alvo costuma ser definido pelo Chefe de Estado ou por Diosdado Cabello, segundo a ONU. Depois, o diretor-geral dá ordem para que seja constantemente vigiado, através de “escutas telefónicas, intervenção física nas casas e câmaras ocultas”. “Os nomes com maior perfil, como membros da oposição, eram vigiados durante períodos mais longos, ao mesmo tempo que o SEBIN proporcionava várias atualizações diárias ao Presidente Maduro sobre as suas movimentações.”
A detenção é depois concertada entre o Presidente, o diretor-geral e os subordinados que trabalham no SEBIN. Muitas vezes, as pessoas são detidas sem provas, mas sempre em “flagrante delito”, de modo a justificar as “detenções sem ordem judicial”. “O SEBIN raras vezes se baseou em ordens judiciais ou informou as pessoas detidas das razões para a sua detenção. Em vários casos, os agentes usaram excessivamente a força ou a violência, colocando provas ou objetos de contrabando para culpabilizar” os detidos.
Após serem detidos, os opositores muitas vezes ficam incontactáveis durante “horas, dias ou semanas” e raramente têm direito a um advogado ou a falar com a família. Simultaneamente, o SEBIN “recorre com frequência à extorsão”, assaltando as “casas” dos detidos “para lhes roubar dinheiro e objetos de valor”, aponta a missão independente da ONU.
No relatório, a missão das Nações Unidas entrevistou muitos ex-funcionários do SEBIN que admitem que a “tortura era ordenada diretamente pelo Presidente Maduro” contra “pessoas que criticavam o governo, pessoas que alcançavam proeminência ou representavam uma ameaça particular para o governo” e ainda aqueles que participavam em “supostas tentativas de golpes de Estado para derrubar o governo”.
Em entrevista ao El País, Cristopher Figuera, ex-diretor do SEBIN, que entrou em rota de colisão com o regime, admitiu que “Maduro é quem ordena as perseguições políticas”. “Faziam-se perseguições sobretudo no aspeto político. Os direitos políticos estão em risco na Venezuela. Todos aqueles que não estão de acordo com o que estabeleça Maduro é considerado um inimigo”, salientou o antigo responsável dos serviços de informações.
Cristopher Figuera reconheceu que a tortura é uma prática sistemática dos serviços de informações. “É uma maneira de manter aterrorizadas as pessoas. O mais grave é que os companheiros militares que estão em altos cargos não se pronunciam, nem condenam.”
Por sua vez, o regime venezuelano rejeita todas estas acusações da ONU. “A República Bolivariana da Venezuela expressa a mais categórica condenação das falsas e infundadas acusações feitas pela suposta Missão Internacional de Determinação dos Factos, num novo panfleto apresentado […] perante o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas”, criticou o Ministério dos Negócios Estrangeiros venezuelano.
Já o procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab, acusou a Missão Internacional Independente de fazer relatórios com dados recolhidos nas redes sociais, nos meios de comunicação e em conversas com opositores do governo do Presidente venezuelano, destacando que os membros desta organização são politicamente “conotados”. Funcionam, por isso, como “porta-vozes de países e pessoas que procuram destruir a Venezuela”.