Um homem levanta-se e oferece o corpo às balas. “Senhores deputados”, começa Miller Guerra, deputado da Ala Liberal, na linha da frente da Assembleia Nacional. “A paz, a verdadeira paz é fruto da liberdade dos cidadãos, e de forma nenhuma do resultado da política imposta pelo grupo que está no poder”. O chinfrim é imediato, que atrevimento, em plena ditadura e Guerra Colonial, fevereiro de 1973. “Então, senhores deputados, eu continuo: a paz, a verdadeira paz…”. “Não apoiado!”, grita a plateia; “Protesto!”, acrescenta o deputado Casal-Ribeiro. Miller Guerra prossegue impassível, repete exatamente a mesma frase, e segue por aí fora, a chamar os bois pelos nomes, desde a PIDE à censura, e declara o Estado Novo “um regime autocrático-reacionário”. “E com isto, senhor presidente e senhores deputados, despeço-me de vossas excelências e peço a renúncia do mandato.”
Enquanto Miller Guerra incendeia a Assembleia Nacional, uma comissão apura a morte de Amílcar Cabral — “secretário-geral do Partido Africano da Independência da Guiné Portuguesa e das ilhas de Cabo Verde foi assassinado em Conakry” — e Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, confidencia a embaixadores que, mais tarde ou mais cedo, o governo vai declarar a independência das colónias. Neste regime em morte lenta, o mês mais curto do ano parecia nunca mais acabar.
No final de fevereiro, o principal meio de comunicação do regime organizou enfim uma noite de descanso, o Festival RTP da Canção; durante algumas horas, milhões de portugueses reúnem-se tranquilamente em frente a um televisor, sem guerra ou oposição política, de boletim de votos na mão, em amena cavaqueira. Contudo, ao invés de água na fervura, foram achas na fogueira. Naquele televisor a preto e branco, entra em cena um homem com feitio de miúdo, ouve uma trombeta e ri-se — é o toque de entrada da tourada, qualquer português o conhece — ergue um braço, e toda uma canção, em jeito de desafio.
[a atuação de Fernando Tordo no Festival da Canção de 1973:]
“Não importa sol ou sombra
Camarotes ou barreiras
Toureamos ombro a ombro as feras
Ninguém nos leva ao engano
Toureamos mano a mano
Só nos podem causar dano esperas
Entram guizos, chocas e capotes
E mantilhas pretas
Entram espadas, chifres e derrotes
E alguns poetas
Entram bravos, cravos e dichotes
Porque tudo mais são tretas”
As tretas são claras, nem Miller Guerra o diria melhor, entra no ringue político um “poeta” — Ary dos Santos — e um “bravo” — Fernando Tordo — que aproveitam a “Praça da Primavera” (Marcelista) para pegar o país “pelos cornos”, os “empresários moralistas”, os “antiquários e fadistas” e o “lucro aos milhões”. “Conseguimos que a canção passasse pelo crivo fechadíssimo da censura e aconteceu o inexplicável: venceu”, recorda Fernando Tordo, 50 anos depois da vitória de “Tourada” no Festival da Canção de 1973, a 26 de fevereiro. Esta é a história que conhecemos: a canção driblou a censura miraculosamente. Mas como se justifica que, naquele ano conturbado, com um Exame Prévio vigente, a “Tourada” tenha iludido a implacável censura?
“O Festival da Canção tem muitas ambiguidades. A ação da censura funcionava de forma diferente”, elucida Sofia Vieira Lopes, a investigadora do INET que vai defender em breve a tese de doutoramento Música, Televisão, Memória e Representação: um estudo do Festival RTP da Canção (1964 – 2020), o primeiro estudo académico de musicologia sobre o Festival RTP da Canção. “No festival da Canção era confiado ao júri de seleção que ele soubesse o que era próprio para passar na televisão. Era uma censura tácita.” Ou seja, em termos práticos, não havia Exame Prévio, o que significa que o júri selecionou propositadamente a “Tourada” para enfrentar o regime. Afinal, a história é outra, quase uma conspiração para colocar os holofotes na música inflamatória de Fernando Tordo e Ary dos Santos.
“Não é normal celebrar o aniversário de uma canção”, reflete Fernando Tordo. “Mas esta extravasa o simples âmbito do objeto. E não é tanto uma canção política, é uma sátira social, dura e objetiva. Uma sátira que continua, de alguma maneira, a retratar aspetos da nossa sociedade que não muda”. A canção continua e vai ser entoada 50 anos depois, este domingo, dia 26 de fevereiro, no Tivoli BBVA, em Lisboa, e dia 11 de março, na Casa da Música, no Porto, com a companhia de Jorge Palma, Picas e Ricardo Ribeiro.
Seis letras de Ary dos Santos. Uma feliz coincidência?
O histórico não era brilhante: em quatro edições seguidas do Festival da Canção, Fernando Tordo nunca conseguiu sequer o segundo lugar. E pior: no certame anterior, em 1972, ficou mesmo em último. “O oitavo lugar no Festival da Canção não foi, para mim, nenhuma derrota, como já não tinha sido derrota o facto de ter ficado em terceiro lugar o ano passado”, minimizou então ao Diário de Lisboa. E anuncia que depois da quarta tentativa falhada, o que mais pode fazer? Recusa-se a concorrer novamente. “Já antes do certame deste ano eu tinha afirmado que seria o último em que eu entraria. Assim será”.
“Era uma forma de poder ir à televisão”, justifica hoje Fernando Tordo, que felizmente decidiu no final de 72 voltar a concorrer. “A questão de ir ao festival era poder aparecer. Mostrar. Eu sou compositor, este meu amigo é poeta, há gente a fazer arte em Portugal. Concorríamos para poder aparecer na televisão”. O orquestrador Jorge Costa Pinto, proprietário da editora Tecla, desafiou Fernando Tordo a assinar contrato; começam os preparativos para o Festival da Canção de 1973 e o músico compôs quatro canções candidatas, que entregou a Ary dos Santos para compor as letras. “Era ainda o início da minha colaboração com o Ary. A ‘Tourada’ era apenas um dos quatro temas enviados para o Festival da Canção. E depois foi a surpresa de uma canção com as características da ‘Tourada’ ter sido escolhida para o festival. Fui sem nenhuma ideia ou intenção de ganhar, até porque cantei duas canções. A intenção era mostrar cantigas”.
Em dez cantigas a concurso, duas são interpretadas por Fernando Tordo (“Tourada” e “Carta de Longe”) e seis são letras de Ary dos Santos, este último, um reconhecido opositor político, filiado ao clandestino Partido Comunista Português e com um antecedente de controvérsias, desde “Quem faz um filho/ Fá-lo por gosto” a publicações apreendidas pela PIDE. Ary dos Santos por seis vezes em frente a milhões de espectadores. Uma feliz coincidência? “As canções concorriam de forma anónima, mas a verdade é que a escrita do Ary dos Santos é fácil de identificar”, argumenta Sofia Lopes, que investigou o processo de seleção do júri. “Não me parece inocente que o júri tenha selecionado uma maioria de canções do Ary dos Santos”. O realizador do Festival da Canção de 1973, Luís Andrade, revelou mais tarde que Ramiro Valadão, presidente do Conselho de Administração da RTP, exigiu que a “Tourada” fosse riscada da seleção. “Então demito-me”, terá respondido o realizador. Ramiro Valadão cedeu.
“Quanto a mim, será uma amostra de seis poemas sérios que não são, como algumas coisas que fui obrigado a fazer para chegar aqui, meras letras para cantigas”, declara Ary dos Santos ao Diário de Lisboa, em antecipação do festival. O poeta descreve um clima inédito de camaradagem — “não se viam normalmente os intérpretes das canções juntos, sem entrarem nas guerrilhas etiqueteiras”. E era só o que faltava: afinal os intérpretes faziam parte do seu leque de parceiros: Fernando Tordo, Simone de Oliveira (“Apenas o Meu Povo”), o amigo Luís Duarte (“Minha Senhora das Dores”) e até os pesos pesados Paulo de Carvalho e Paco Bandeira (“Semente” e “É Por Isso Que Eu Vivo”). Independente do resultado, no fim ganha o Ary.
“Disseram-me para ir a correr para baixo que tinha ganho o festival”
Noite de 23 de fevereiro de 1973. O néon reluzente, em pisca-pisca, indica a entrada do Teatro Maria Matos, em Lisboa. As personalidades de smoking e casaco de pele atarraxam-se nos corredores, recebidos por Artur Agostinho e Alice Cruz, a mesma dupla de apresentadores do talk show “O Tempo em que Você Nasceu”. O aquecimento está ao encargo da fadista Teresa Tarouca, sempre esplendorosa, e de Gilbert Bécaud, dizem as más línguas, um recurso de última hora, com Charles Aznavour de perna partida. Nos bastidores, Luís Andrade comanda a dispendiosa festa — 100 contos investidos somente no palco — os intérpretes retocam o aparato, e estimam-se 4 milhões de espectadores — “só comparável às transmissões do Campeonato Mundial de Futebol de 1966”.
A primeira canção é de Tonicha, “A Rapariga e o Poeta”, da dupla José Calvário e José Niza, da editora Orfeu; seguem-se os Mini Pop, a banda de crianças entre os 11 e 14 anos, dos irmãos Barreiros, ordenados por alturas, à la Irmãos Dalton. À terceira, é o sorridente Fernando Tordo, de anel no dedo mindinho. Move-se suavemente, entre caretas e marchitas, é um forróbodó como nunca visto no Festival da Canção, o músico incorpora o sarcasmo de corpo inteiro, até imagina um par de bandarilhas. “A ironia da canção constrói-se em várias camadas”, desconstrói a investigadora. “O lado irónico está na letra, está na performance, um lado performativo que não existiu nas outras edições do festival, e ainda a orquestração do Pedro Osório, que utiliza elementos sonoros com muita ironia. A canção toda é uma metáfora, não apenas o texto”. “Vivíamos num país muito conservador”, contextualiza Fernando Tordo. “E aparecer um miúdo com 24 anos a cantar aquela canção e dando-lhe alguma expressão física, apanhou muita gente de surpresa. Essa descontração aconteceu porque não me passava pela cabeça ganhar o festival.”
Segue-se Luís Duarte, uma década antes de vencer o festival por duas vezes enquanto maestro do “Bem Bom” e “Conquistador”; e de seguida, “É Por Isso Que Eu Vivo” de Paco Bandeira, o músico alentejano e improvável fenómeno de vendas, segundo a imprensa, o vencedor inevitável do festival. Ora vejamos: segundo lugar na edição anterior; apoiado pela máquina promocional da Valentim de Carvalho; um poema de Ary a carregar no campo, temática sempre querida do júri nacional; e a orquestração de Ivor Raymonde, o autor do single bombástico de estreia de Dusty Springfield. A principal ameaça a Paco Bandeira, estima-se, é o regresso de dois vencedores: Paulo de Carvalho e Simone de Oliveira, sendo que a cantora de “Desfolhada” não subia a este palco desde a trágica sucessão de laringites e faringites que lhe modificaram definitivamente a voz. “Quem disse que morreu a madrugada?”, renasce Simone de Oliveira, uma visão de “vestido comprido rosa-desespero, com fios de prata peitilho e corpete em lamé”, nos versos mais dramáticos de Ary a concurso:
“Quem foi que disse que eu podia ir
Tão longe quanto nós podemos ser?
Apenas quem me viu calada e triste
E despertou em mim um mundo novo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue, apenas o meu povo”
Resumindo, entre Paco, Paulo e Simone, ninguém dava um tostão pela “Tourada”. “Não gastamos um centavo na promoção”, confessou na altura Jorge Costa Pinto, proprietário da independente Tecla, a competir com os tubarões das grandes editoras como a Philips, Orfeu ou Valentim de Carvalho.
O júri nacional delibera os vencedores em direto, com grupos heterogéneos representativos de cada distrito: Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora… Nos bastidores, em frente ao pequeno televisor, Paco Bandeira rói as unhas, e os irmãos Barreiros são esmagados pela gravidade do momento. Em simultâneo, o júri de seleção, que repartia os votos com o júri nacional, encontra-se num empate entre Paco Bandeira e Fernando Tordo. “Comecei a ficar menos descontraído quando percebi que havia uma possibilidade inacreditável de ganhar o festival”, confessa Fernando Tordo, que depois de quatro derrotas, enfim, estava tranquilamente à conversa no snack-bar do Hotel Lutécia, por cima do Teatro Maria de Matos. Segundo Luís Andrade, é António Andrade, o seu irmão e outro funcionário da RTP, que dá a vitória à “Tourada” no júri de seleção. No final, vitória à justa, 115 pontos para Fernando Tordo e 111 pontos para Paco Bandeira. “Disseram-me para ir a correr para baixo que tinha ganho o festival”.
“Foi mais um pequeno sino que tocou, um sinal que alguma coisa estava para acontecer no nosso país”
“Neste momento existe uma tentativa de guerra contra a Festa Brava”, anuncia, em conferência de imprensa, o Sindicato Nacional dos Toureiros. “É preciso tomar a responsabilidade do que se escreve”, defende o cavaleiro Azarujinha, dois dias depois da vitória de “Tourada”, que segundo estes toureiros e forcados, ridicularizou uma excelsa tradição portuguesa perante milhões de pessoas. E um abaixo-assinado de cidadãos preocupados argumenta que “o poeta e a interpretação caricatural do mesmo, ofende as pessoas, usos e costumes do país”. “Escrevi assim mesmo. Falando tal e qual: pois, não há cornos nos toiros?”, provoca Ary dos Santos. “Então porque é que hei de camuflar a verdade?”.
A “Tourada” achincalhava um país de “marialvas” e “aldrabões” e, por extensão, com a interpretação caricatural de Fernando Tordo, menosprezava o próprio Festival da Canção. Era um animal completamente dissemelhante dos vencedores anteriores e o público compreendeu logo a boa-disposição e urgência da mensagem — “A tal ponto a procura foi intensa que os discos com a ‘Tourada’ e ‘Carta de Longe’ se esgotaram em muitas discotecas”, garante o Diário de Lisboa. “Um ano antes da revolução, a canção tem significado numa panela que já fervilhava, e as pessoas já sabiam quem eram e o que pensavam o Ary dos Santos e o Fernando Tordo. As canções não passam somente pela mensagem, mas pela pessoa que a víncula”, pondera Sofia Lopes.
Há 50 anos, Mário Castrim, o crítico implacável do Diário de Lisboa, reiterou sem demoras a relevância da “Tourada”: “Que uma canção destas tenha alcançado o primeiro lugar num concurso de televisão portuguesa constitui, para além de tudo, um apelo à reflexão, à avaliação das contradições inevitáveis”. E adianta a principal preocupação dos críticos e especialistas na apresentação em Luxemburgo, no Festival Eurovisão da Canção. “No Luxemburgo não vão compreendê-la ou até irão compreendê-la de outra forma. Paciência. O festival pode ser lá. Mas a arena é aqui.” A canção era inseparável do contexto social e cultural português e o léxico hermético da festa brava nunca seria passível de tradução — “Tourada” ficou em décimo lugar. “O Cliff Richards, que era um mestre para mim, apareceu-me à frente no festival de 73”, recorda Fernando Tordo, que competiu contra o ídolo em Luxemburgo. “E agora, quando o encontro no Algarve, ele invariavelmente diz a mesma coisa: não ganhámos o festival!”.
Por ordem, Carlos Mendes, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, vencem as últimas edições do Festival da Canção antes do 25 de abril. É o culminar de um ciclo que começou em 1967, com “O Vento Mudou” de Eduardo Nascimento, um levante inicialmente musical, mais tarde lírico (“Desfolhada”), e finalmente a transformar a própria indústria discográfica portuguesa. Os rostos da revolução eram estes três amigos, rebentos do ié-ié, a primeira geração do rock português. “Há de facto um ciclo que se fecha neste período e dá início a outro ciclo”, reflete agora o cantor de “Tourada”. “Há uma geração que usufruiu dos grandes momentos do festival e essa geração é a minha, tenho pena de não poder partilhar o que tudo aquilo significou com as outras gerações”.
A “Tourada” é o evento derradeiro do Festival da Canção em contexto de ditadura, uma comunidade de poetas, músicos, intérpretes, jornalistas e jurados que acreditou nas capacidades da canção pop como uma arma política. “Depois do 25 de abril é um corte”, confirma Sofia Lopes. “Havia correntes muito antagónicas: para uns, o Festival da Canção era uma coisa do regime; para outros, era importante que nos representemos na Europa e demonstrar que o país mudou. Esta corrente ganha o debate. Os primeiros anos são experiências. E apesar de autores como Fernando Tordo continuarem a participar, há um claro abrandamento de uma linha política, de canções com algo a dizer.”
“Foi mais um pequeno sino que tocou, um sinal que alguma coisa estava para acontecer no nosso país”, resume Fernando Tordo. “Às vezes digo por brincadeira que se não cantar a ‘Tourada’ não me pagam”. Mas porquê a eternidade de “Tourada” e não de outra canção qualquer entre as múltiplas composições de Fernando Tordo? “É porque a canção fala de um atrevimento, fala de uma libertação, de uma censura, de um momento à escala de um povo inteiro. É uma canção que significa tudo.”