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© Hugo Amaral/Observador

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Tozé alimentou "uma paixão". E Peniche tem surf há seis anos

Foi António José Correia que, em 2009, conseguiu trazer uma etapa do circuito mundial de surf até Peniche. Ainda lá está. Já vai na sexta edição, mas há quem diga que 'Tozé' só presta atenção a isso.

“Quando o dia for a meio”. Combinado. O local, em Peniche, ficava no Cabo Carvoeiro, na ponta da cidade rodeada por mar. O horário cumpre-se. Lá estamos quando os ponteiros coincidem a meio do relógio, nas 12 horas. Entra-se no edifício e, entre as escadas, os corredores e as portas com que o Instituto Politécnico de Leiria desenha um labirinto próprio, há que encontrar o auditório. Essa é a missão. O resto seria mais fácil — António José Correia já dera uma pista. “Quando entrares dá-me um sinal. Sou o único de bigode”, lemos, minutos antes, quando o telemóvel vibra e nos alerta para um sms. Vinha do presidente da Câmara Municipal de Peniche.

Já estava à espera. Mal o jornalista abre a porta o suficiente para, com um olho, conseguir espreitar para a sala, o autarca repara logo. Mostra um sorriso tímido e acena com a cabeça, dando sinal de mensagem recebida. Nem cinco minutos depois, António está cá fora. Sorridente, conversador e, sobretudo, aliviado. “Nem costumo estar assim vestido, isto é tudo por causa do secretário de Estado”, garante, tão a sério como a brincar, enquanto ordena aos braços que dispam o casaco que lhe tapa os ombros e a camisa branca. Fá-lo ali mesmo, à porta do auditório de onde, segundos antes, se esquivara de uma conferência com Nuno Vieira e Brito, responsável do Governo pela Alimentação e da Investigação Agroalimentar. Sem problema.

António, perdão, ‘Tozé’, como nos corrige assim que estende a mão para o cumprimento de boas-vindas, está bem-disposto. Percebe-se rápido. Mas também está apressado. Quer mostrar tudo e mais alguma coisa. Logo ali, no politécnico, leva-nos a uma sala onde estão expostos vários produtos da região: pão com algas ou hambúrguer de cavala são dois exemplos. Ambos, em parte, vinham do mar. Parece de propósito. E seria mesmo. Afinal, a culpa de estarmos ali é das ondas e do que, em Peniche, se pode fazer em cima delas — surf. E do bom: pelo sexto ano seguido, a praia de Supertubos ia acolher uma etapa do circuito mundial da modalidade, dali por três dias.“É como as paixões: elas surgem e depois há que mantê-las”, sublinha Tozé, ainda mais sorridente, ao rebobinar a memória em busca de histórias do evento que, desde 2009, tem conseguido agarrar à cidade.

São muitas. O próprio autarca o diz. Nenhum, porém, lhe faz encravar o discurso. Tozé sentou-se no trono da Câmara Municipal de Peniche no final de 2005. A caça à etapa do WCT (World Championship Tour) da ASP (Association of Surfing Professionals) arrancou três anos depois. “Lembro-me de ir com o José Farinha [diretor da Rip Curl Portugal] atrás de Frederico Costa [ex-presidente do Instituto de Turismo de Portugal] e do Bernardo Trindade [antigo secretário de Estado do Turismo]. Pimba, pimba, a dizer-lhes que isto era importante”, recorda, definindo-se como “um chato que não desistiu” e sempre viu “que o potencial estava ali”.

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Tozé vê a etapa do circuito mundial de surf como “uma paixão” que teve de ir mantendo. E conseguiu: de 12 a 23 de outubro realiza-se a sexta edição do evento em Peniche, na Praia de Supertubos.

A insistência foi muita, mas a coisa só daria um pulo em Olhão, sentado à mesa e com amêijoas ou uma sapateira à frente. “A minha família gosta de águas quentinhas e vamos sempre de férias para o Algarve. Calhou na altura do Festival do Marisco. E quem encontrámos lá? Aquele dos chifres, o Manuel Pinho”, diz, ao puxar pelo nome do ex-ministro da Economia que, em 2009, no Parlamento, juntou os dedos indicadores na testa enquanto se virava para a bancada do Partido Comunista Português (PCP). “Quando o encontrei, vendi-lhe a ideia até ele me dar uma palmada nas costas e dizer que queria. O trabalho a sério começou nessa altura, no verão de 2008”, assegurou o presidente, já dentro do carro, estacionado no parque de estacionamento do politécnico, enquanto prendia o cinto de segurança à fivela e dava a volta à chave, para acordar o motor.

Sim, com Tozé e em Peniche, não há motorista à mercê do presidente da câmara. “Não tenho que avisar nem dar satisfações a ninguém, posso estar à vontade”, explica, já com a marcha em andamento, justificando a decisão com o que via acontecer com os antecessores no cargo, sobre quem “se ficavam a saber coisas”, mas “desconhecia-se de onde elas vinham”. Não há dia, portanto, em que não conduza. E neste, o destino da viagem era “o local do crime”, como lhe chamou. Ou seja, a praia de Supertubos.

Do Cabo Carvoeiro à praia, a boleia de Tozé dura quase dez minutos. Há tempo para conversar. No caminho, o presidente tem quase sempre uma mão colada ao volante enquanto a outra, deambulante, vai ficando pendurada no ar, a apontar para um e outro local que vão surgindo. Primeiro é a Papoa, onde “às vezes quebram ondas gigantes” contra rochedos encavalitados contra o mar. Depois vem a fábrica de conserva de sardinhas, “que as embala logo no dia seguinte a serem pescadas”, vizinha da loja que fabricou “o fatinho de verão” do autarca. “É aquilo que chamo o alfaiate das ondas”, acrescenta, antes de explicar que surf “não é bem” aquilo que faz no mar. “É mais deslizar nas ondas. Agora já não vou tantas vezes. É mais esporádico. Faço mais durante o inverno, aos domingos de manhã. Até já apanhei temperaturas de 1.ºC”, conta.

“Quando encontrei o Manuel Pinho, o dos chifres, o ex-ministro da Economia, vendi-lhe a ideia [de Peniche acolher uma etapa do circuito mundial de surf] até ele me dar uma palmada nas costas e dizer que queria."
António José Correia

Nem um quilómetro se percorre e, no horizonte, avistam-se andaimes e fundações, em cimento, de uma construção em andamento — é uma futura unidade hoteleira, avaliada em “cerca de dez milhões de euros”. E mais: existe o projeto para construir um empreendimento com uma piscina de ondas artificiais. “Vem cá o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Vale do Tejo durante o campeonato. Depois tenho uma reunião com ele no final do mês para vermos a questão dos locais”, explicou Tozé, sem mais revelar. Há até um plano para construir um aeródromo na região. Planos e mais planos, a nascerem, e a crescerem, desde 2009. O surf é outro exemplo. E a entrada para o recinto do campeonato prova-o.

A estrutura surge logo ao início da estrada de terra batida que se estende em paralelo à Praia de Supertubos. É preciso autorização para entrar. Tozé tem-na, claro. É o presidente da câmara. Mas pára o carro antes de chegar ao portão. “Não sei onde pus o dístico, é preciso mostrá-lo para entrar. Não quero desrespeitar ninguém”, explica-nos. Arranca a caçada. Tozé abre a porta, sai do carro, espreita debaixo dos bancos e vasculha pastas e documentos que estão espalhados no banco de trás. Nada. Pelo meio, a procura é uma e outra vez interrompida, porque há sempre alguém para roubar a mão a Tozé — toda a gente que por ali passa o cumprimenta. Depois lá encontra o dístico, que “estava escondido na mala do computador”, cola-o no vidro e seguimos marcha.

Estaciona-se o carro e a conversa fica difícil. Se não é um aperto de mão, é um ‘olá’ ou um ‘hello’ que entrega com a voz. Nenhuma pessoa escapa. E eram dezenas as que, a três dias do arranque da prova, andavam a ziguezaguear pelo recinto que ia acolher os surfistas, as bancas, as lojas, as tendas, os veículos e tudo o mais. Às tantas, Tozé farta-se. Estava há demasiado tempo de fato, camisa e sapatos. Ao ver a banca reservada ao Turismo do Oeste, que merecia a atenção de quase uma dezena de trabalhadores, pede a alguém uma das tshirts que “mandou fazer” para o evento. “Bem, agora vou fazer um strip”, brinca. E faz mesmo. Ali, sem pudor, à frente de todos: coloca-se em tronco nu, veste a tshirt, descalça os sapatos, tira as meias e pronto.

Fica satisfeito. Está como e onde quer. “Todos os anos sou o primeiro a chegar e quase o último a sair. Durante mais de duas semanas o meu escritório é Supertubos”, garante, à medida que nos encaminhamos para a praia — com paragens pelo caminho. “Um gajo tem que andar sempre a olhar por tudo”, alerta, ao interromper a marcha, quando, já perto da estrutura reservada ao júri que fixará os olhos no mar e nas ondas, se nota uma diferença entre as tábuas que estão deitadas sobre a areia. “Puseram-me isto, com os pregos à vista”, critica, enquanto bufa uma, duas vezes. Andamos mais uns metros e Tozé pára de novo. Bufa pela terceira vez. Baixa-se, coloca-se de cóqueras, aproxima os olhos de um poste, ali erguido para segurar uma bandeira, e passa a mão pela sua base. A tinta está lascada. “Estou tramado com quem fez isto”, dizemos nós, numa tradução simpática da reação que o presidente dispara ao detetar o problema. “Agora chega aqui um gajo da oposição e diz que a câmara se está nas tintas para as pinturas”, lamenta, quando, com ou sem intenção, dá uma analogia ao queixume.

Depois retoma o passeio — “Vamos para o local do crime.”

É lá, na areia, a meio caminho entre as dunas e o mar, que Tozé tem de estar quieto durante uns minutos. É contra a sua natureza, mas a entrevista, filmada, assim o exige. “Queres que faça a minha voz de rádio? Vê lá”, brinca, às tantas, para quem está atrás da câmara, de lente e microfone focados no que o autarca ia fazer e dizer. Por norma, com o campeonato a rolar, Tozé nunca está parado. Anda no meio dos surfistas, de um lado para o outro, a conversar com todos, sem que o inglês, que domina a custo, seja uma barreira na conversa. “Gosto de acompanhar, de intervir, de colaborar, de apoiar ou de os convidar para determinados momentos. Cumprimento todos e ofereço coisas da região a eles e às namoradas ou mulheres. Nunca nenhum deles recusou o que fosse”, assegura o homem que, talvez por isso, foi eleito pelos surfistas como o Coolest Mayor on Tour — o mais simpático autarca do circuito — logo na primeira edição do evento, em 2009.

É muito rara a pessoa que cruza caminho ou olhar com Tozé e não esteja na mira de um cumprimento vindo do presidente da câmara Municipal de Peniche. “Um gajo tem que olhar por tudo. Todos os anos sou o primeiro a chegar e o último a sair [do recinto]”, justifica o autarca.

Tozé gosta de privar com os melhores do mundo a colocarem-se em pé, sobre uma prancha, à boleia de uma onda. E com isso ganhou várias histórias para contar. Uma delas vem de um desafio provocado por Jadson André. O surfista brasileiro, então já eliminado da competição, estava a assistir à prova, no recinto, e lembrou-se de pedir uma coisa. “Disse assim: o presidente é o melhor do mundo se me arranjar uma coca-cola em dez minutos”, lembra, enquanto se ri. “Ai é? Então olha para o relógio e vais ver. E pronto, ao sétimo minuto já tinha a bebida na mão”, conta, sem revelar como o conseguiu, sublinhando que “lá está para resolver” aquilo que “eles às vezes julgam ser impossível”. Depois há momentos engraçados. Noutro ano, o autarca decidiu nomear Damien Hoobgood como “embaixador internacional da cavala em Peniche”. Porquê? Pouco antes o norte-americano fora filmado “a fazer um tubo numa onda na qual se viam peixes”. Tudo aconteceu na mesma manhã em que Tozé oferecera latas de conserva aos operadores de câmara e “um deles aproveitou” para “fazer um grande plano” numa delas, após a realização “mostrar um replay” da onda. “Mesmo a calhar”, congratulou o presidente.

Quando o encontramos, o australiano Mick Fanning, tricampeão mundial e o primeiro a vencer em Supertubos, em 2009, acabara a terceira sessão de treino do dia

© Hugo Amaral/Observador

Não seria a única coisa a calhar bem. Quando a conversa, na areia, já ia com meia hora de embalo, aparece mais outra pessoa em busca de um cumprimento. É um fotógrafo. Não chegamos a saber-lhe o nome. Preciosa acabou por ser a novidade que trouxe consigo — dentro de água, ali mesmo em Supertubos, estava Mick Fanning, o australiano, de 33 anos, melhor surfista do mundo em 2007, 2009 e 2013. Não é difícil, ao longe, localizá-lo: quando está deitado sobre a prancha é o único homem de cabeça loira que está na água. E de pé, em cima dela, é mais e melhores coisas faz. As mesmas que o fizeram conquistar a primeira edição do campeonato em Supertubos, há cinco anos. Tozé não se esquece desse dia. “Hoje és tu o mayor de Peniche”, gritou o autarca ao australiano, enquanto o surfista era carregado em ombros, mal saíra da água, após vencer a final desse ano. A imagem ficou. A amizade, diz Tozé, também.

É o que se nota quando Fanning diz basta. O sol já estava com a luz de hora de almoço quando o australiano abandona o mar. Depois de espetar a prancha na areia e despir o fato até à cintura, começa a encaminhar-se na nossa direção. Tozé não consegue esperar. Também ele dá corda aos passos e encontra o surfista a meio caminho. Depois começam ambos a andar, lado a lado, e a trocarem sorrisos. “É boa pessoa. Nota-se que é bastante apaixonado pelo surf e adora a cidade”, resume o australiano, “cansado”, já depois de pedir que a conversa “seja rápida”, quando a pergunta sonda a opinião que tem sobre Tozé.

Mick sente-se “especial” por ter o nome inscrito como primeiro vencedor em Peniche, embora “nunca mais tenha feito grande coisa” em Supertubos. Uma onda, diz, “muito complicada” e que desconhecia quando soube da sua inclusão no circuito — dia em que teve de “recorrer” a Tiago Pires, único português no WCT e atual 25.º classificado  — e já eliminado na 3.ª ronda da etapa deste ano — entre os 36 homens que participam no campeonato mundial. Quando “está a funcionar”, garante o australiano, Supertubos “é das melhores ondas do planeta” e não vê razões para que “não continue a fazer parte” do roteiro que, ano sim, ano sim, coloca estes surfistas a viajarem pelo mundo. Uma coisa terá sempre que funcionar: o dinheiro. E não é pouco.

Com a conversa feita, o australiano despediu-se. Era tempo de descanso e abandonou a praia, acompanhado pelo treinador

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Nas cinco primeiras edições do evento em Peniche, o investimento “andou à volta dos 1,5 milhões de euros”, revela o presidente da autarquia. Desse lote, por exemplo, a câmara, “gasta sempre entre 75 e 90 mil” com “a afetação de meios, de máquinas e de trabalhadores” que, para dedicarem atenção ao surf, Tozé não os tem “a trabalhar em estradas”. “Então se quantificarmos as minhas horas de trabalho, aí já perdi a conta”, acrescenta. Depois cada empresa “traz o seu próprio pessoal” para montar as estruturas no recinto da prova, explica, ao para lamentar que “não há muitos postos de trabalho” a serem gerados para quem por ali vive e procura emprego. O importante, sublinha Tozé, é “o impacto” da etapa na “animação da atividade económica na hotelaria, restauração e surfcamps“.

“Se tivéssemos brindes para dar estávamos sempre cheios”

As palavras pedem um teste. O primeiro está perto e nem 200 metros é preciso caminhar. O bar de José Santana está logo ali, na fronteira do recinto, com vista para tudo, preso entre Supertubos e o Molhe Leste, nome da praia mais encostada a Peniche naquela língua de areia. O estabelecimento está ali há muito. Mas José só conta dois anos atrás e à frente do balcão, a ver o que se passa. “E não é tão sorridente como dizem”, lamenta, quando é altura de falar do proveito que lhe toca por estar à beira dos melhores surfistas do mundo.

E dos milhares de pessoas que pisam a areia para os verem. “Há realmente bastante movimento, mas há pouco consumo. Apesar de haver muitos estrangeiros, a maior dose é portuguesa. E é notório que os portugueses trazem a lancheira, com a garrafinha e a sandes”, revela. “Se tivéssemos brindes para dar, tínhamos isto sempre cheio”, brinca, com uma frase que diz ter um recheio de verdade, ao garantir ser “moda” as pessoas “espreitarem” o recinto da prova, “tirarem uma fotografia ou outra e verem se há alguma coisa a ser dada”. Ali, no Banana Beach Bar, o negócio não engorda muito com o surf. Mas também “estava muito mais parado” se não houvesse a prova, lá admite José. E não será por falta de sedução que o bar não cativa quem aterra na praia para ver o campeonato.

José Santana tem 53 anos, vive há cinco em Peniche e passou os últimos dois a trabalhar no bar vizinho ao recinto da etapa do circuito mundial

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O estabelecimento, por dentro, está pintado com cores vibrantes. As paredes aguentam várias pranchas de surf, penduradas e à vista de todos. A televisão, que cobre um canto do espaço, arranjou poiso num canal de desporto que, na altura, resumia o que se passara no dia anterior no Moche Pro, evento de surf, realizado em Cascais, que antecedera a etapa do circuito mundial, em Peniche. Do lado de fora, na esplanada, está um pequeno toldo a tapar pouco mais de uma dezena de pranchas, encavalitadas umas nas outras. Uma escola de surf? “Não, não, são só para alugar”, corrige. “Têm alguma saída. Mas é complicado”, lamenta José. Nos dias do campeonato — que este ano ficaram entre 12 e 23 de outubro –, revela, “há um cafezinho de vez em quando ou um gelado porque o puto chateia”. O homem, de 53 anos e residente em Peniche há cinco, diz que “a realidade é mesmo assim”. Ou um pouco diferente, como chegou a descrever Tozé: “Há uns que aproveitam e outros que vêem a onda passar. Que ninguém espere que levemos a ondinha e os surfistas para dentro dos restaurantes e que deixemos lá o dinheiro.”

José tem “pena” que Supertubos “só mereça atenção da câmara nesta altura”. A praia, queixa-se, “não tem iluminação pública, as estradas não estão alcatroadas e não há ecopontos”. Está desde fevereiro “a mandar emails” à autarquia porque lhe “custa” ver a zona como está. Nunca teve uma resposta. Critica a falta de vigilância nos parques de estacionamento e conta a história de “quatro rapazes espanhóis” a quem, dias antes, “partiram os vidros da carrinha e roubaram as coisas” que estavam lá dentro. Sobre Tozé, o homem que manda no concelho, reconhece que “fez um bom trabalho em segurar” o campeonato em Peniche. Mas diz que podia fazer mais pela praia quando o evento não anda por ali. “Infelizmente isto não é uma máquina de fazer dinheiro e talvez sejam os espaços ligados ao surf que lucram mais com isto”, suspeita José. Parece ter razão.

A uns cinco quilómetros de Supertubos está o Baleal. Uma terra pequena, a rodear uma baía virada para o mar, onde sempre entraram e quebraram ondas. O caminho faz-se rápido e o surf é sempre companhia: vêem-se lojas viradas para a modalidade, cartazes a anunciarem alojamento para surfistas e escolas que se propõem a ensinar. Muitas. A primeira e mais antiga surgiu em 1993. “Abri isto para dar aulas a uns putos na ilha do Baleal. Não fazia a mínima ideia de nada”, recorda Bruno, proprietário do bar que tem o seu nome, ao recordar os tempos em que o negócio se resumia “a uma roulotte” ou a um “bungalow de madeira”. Hoje tem tudo: um espaço grande, restaurado, em cima da praia, onde quem entra vê primeiro o balcão de receção da escola de surf antes de conseguir chegar à parte do restaurante.

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Seja para comer ou aprender a surfar, “começou-se a notar uma procura acentuada desde 2009”, garante. Para Bruno “é evidente” que “toda a promoção gratuita que surgiu a partir daí contribuiu de forma decisiva para colocar Peniche no mapa do turismo do surf”. Agora, explica, existem “30 ou 40 operadores [escolas de surf e surfcamps, estes a incluírem alojamento] diferentes” no concelho. Bruno admite que a clientela se perfaz “sobretudo com estrangeiros”, antes de virar a cara, olhar para o mar, ver alguém a deslizar sobre uma onda e dizer: “Este gajo é bom.” Agora, prossegue, “a época alta esticou mais um mês” e “vai até ao final de outubro”. É “como se o verão ficasse maior”, conclui.

Poderá a bola de neve de oferta transformar-se numa avalanche de escolas de surf? É “um pau de dois bicos”, responde. “Por um lado”, explica, “são as pessoas que geram receita, mas por outro, se o destino ficar com ‘excesso de carga’, acaba por se degradar e perder atividade”, alerta, embora esperançado de que “as coisas nunca serão feitas à bruta”. Como não o fez John Malmqvist, que encontramos ali perto, também no Baleal, nem cinco minutos depois de uma viagem de carro.

John é sueco, vive em Portugal há dois anos e, há dez, foi campeão nacional de surf no seu país. Hoje, com 35 contados de vida, é proprietário do hotel que inaugurou em setembro de 2013. E não teme que surjam mais. “Dou as boas-vindas a isso. Da maneira como vejo as coisas, temos de trabalhar em conjunto para promover Peniche”, explica, sentado à mesa no terraço do hotel, com vista para o mar e enquanto dois hóspedes estão em banho-maria no jacuzzi que lá tem montado. O Surfers Lodge, nome do espaço, porém, é diferente. Não é um hostel barato, para desenrascar, onde os preços sorriem sempre ao cliente. Dormir aqui custa entre os 49 e os 199 euros por noite. “Cheguei a trabalhar num surfcamp, na Ericeira, e vi que são montados para um público mais jovem. Mas há pessoas mais velhas que também querem aprender a fazer surf, ao mesmo tempo que comem e dormem bem”, explica.

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Portanto, com a ajuda da carteira dos pais e de dinheiro vindo do QREN (Quadro de Referência Estratégica Nacional), John abriu um espaço recheado com madeira e materiais sustentáveis, como as mesas do hall de entrada feitas a partir de “velhos barcos de pesca” que trouxe da Indonésia. Qual é o plano? “Construir mais resorts destes no futuro, em Sagres, na Ericeira ou talvez nos Açores, e depois vender tudo à Quiksilver”, diz, deixando explodir uma gargalhada logo depois, tão descontraída como o gorro que lhe tapa a cabeça, as tatuagens que lhe pintam os braços e o peito, ou a barba que ainda não fez as pazes com a tosquia. Além do aumento do número de pessoas e do impacto no negócio durante setembro e outubro, John realça o “efeito a longo-prazo” da presença do WCT em Supertubos: “As pessoas vêem a prova online, reparam nas ondas e depois vêm cá no ano seguinte ou no próximo.”

Tozé “está lá”, mas “preocupa-se sempre com o mesmo”

E elas têm vindo e aparecido. Quase em massa. E mesmo quem “não [liga] nenhuma” ao surf repara nisso. João Chaves serve de prova. Viveu todos os seus 76 anos em Peniche. Está sentado num banco encostado à muralha da entrada antiga da cidade com mais sete amigos, todos septuagenários. Às tantas chama “chato” ao jornalista que insiste com as perguntas sobre surf e o que ele tem feito a Peniche. “Faz um movimento aí de estrangeiros e portugueses, só malta jovem, uma grande confusão”, responde não ele, mas Joaquim Viola, um amigo, que se mete na conversa quando ela já ia morna. Queixa-se da “catrefada de gente que enche as praias” em outubro, além “das que o fazem” no verão. Benefícios vê poucos. Ou nenhuns. “Aqui dentro da cidade os restaurantes e lojas continuam na mesma”, garante.

João e Joaquim não gostam da invasão de gente que o surf traz a Peniche. Nem da atenção, que dizem ser em demasia, que António José Correia dá à modalidade

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João e Joaquim andam ali há anos. São de Peniche, nascidos e criados ali, na terra. Contam os anos, vêem-nos passar e condenam Tozé Correia por “só prestar atenção ao surf”. Ambos repetem a crítica quase uma dezena de vezes. “Falta sempre alguma coisa. Olhar mais para esta praia aqui, por exemplo”, sugere Joaquim, falando da Praia da Gambôa, mesmo ali ao lado, nem a 50 metros. O que podia ele fazer ali? “Olhe, pelo menos um abrigo para reformados quando está a chover”, diz outro dos presentes, às tantas, trocando as voltas ao tema de conversa, que Joaquim é rápido a endireitar: “Então o homem vem perguntar sobre surf e tu falas de reformados?”

Lamentam os tempos de inverno, quando o mar sobe e a água tapa a estrada, ali na Gambôa. “Você acha, na sua ideia, que Peniche, com belas praias, tenha uma entrada assim?”, insurge-se João, ao levantar-se do banco que lhe amparava o corpo e virar-se para um descampado, cercado por uma vedação, mesmo à entrada da muralha. “Nunca tivemos um campo de concentração aqui”, sublinha. “Aquilo é para entrar dinheiro da Comissão Europeia, é disso que ele está à espera”, suspeita Joaquim, mas João não desarma: “É uma vergonha e ponto final!” E a conversa termina sem ele largar as críticas. “Não são capazes de plantar aqui uma árvore ou o que fosse. É um desleixo. Ele está lá, mas preocupa-se sempre com o mesmo”, defende.

Ali não havia bons olhos a verem o surf. Na outra ponta da escada da idade, porém, é tudo diferente. Entra-se em Peniche e segue-se a estrada. Avistam-se parques, cafés, restaurantes e pessoas na azáfama de uma tarde já idosa de sexta-feira. As aulas já terminaram. Mas há resistentes. Uns quantos persistem, rapazes e raparigas, em torno da Escola Secundária de Peniche. António Vala, de 17 anos, é um deles. Está mesmo à porta do edifício. Não faz surf, mas acha-o “bué importante para a região, porque os surfistas conhecidos vêm todos” e até conhece “pessoas que vêm de Santarém” para assistirem ao evento.

António e Rui, ambos com 17 anos, são amigos. Não fazem surf, mas estiveram na praia nos cinco campeonatos já realizados em Supertubos

© Hugo Amaral/Observador

António também gosta de ver. Pisou e sentou-se na areia, com os olhos postos no mar, em cada um dos cinco anos em que Supertubos foi palco do evento. Este ano não ia falhar. Nem Rui Mesquita, amigo e colega, que já se tinha aventurou “uma vez” no surf. “Não pratico, mas gosto muito de ir ver”, assegura, partilhando um sentimento que parece ser mútuo com muita gente — no ano passado, conta, “estiveram 60 mil pessoas na praia, a um domingo”. António explica que, por ali, o verão, o das festas, animação e calor a chamar para a praia, acabava sempre “por volta da terceira semana” de setembro. Agora, confere, “parece que volta tudo, com camones por todo o lado”, logo na semana que antecede o campeonato.

Não se chateiam com a invasão de gente. “Sem essa confusão isto não era nada. Se não forem os ingleses e a estrangeirada toda a irem aos bares e restaurantes, era só a malta da escola mais uns rapazinhos quaisquer”, defende António. Será que toda a gente pensa assim? O aluno do 12.º ano acha que sim, nem que seja por ter sido o pai “a insistir” para que, no primeiro ano, ambos fossem à praia ver o campeonato. “Estivémos lá a tarde inteira e, no fim, foi ele a dizer que voltaríamos no dia seguinte. Agora sou eu a puxar por ele. Levo-o a Supertubos pelo menos um dia”, conta António.

A conversa despede-se com um lamento. “Já dizem que é o último ano disto por cá”, revela Rui, frisando que o surf “dá tudo a Peniche”. É o que “traz vida” à cidade. Se a prova mudar de ares, vaticina António, “será o ano de transição, em que a malta ainda vem experimentar as ondas, mas, passados dois ou três anos, a terra vai morrer”. Tozé não tem medo disso. “São desde logo os surfistas a dizerem que a onda de classe mundial está aqui, em Supertubos. E isso é o nosso capital. Temos pouco mais do que esse”, argumenta, imaginando que, se algum dia o circuito virar as costas a Peniche, será porque “o glamour do surf se perdeu”. Portugal, concluiu, “acordou para a importância da onda a partir de Peniche”. A região sempre as teve. Mas só apaixona Tozé há seis. Será essa a relação que terá de perdurar para Supertubos não sair do mapa.

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