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Tremor 2019. Isto não é bem um festival de música, "é o paraíso"

Em que outro sítio se consegue concentrar o melhor da natureza com música, "rancho-rock", bifes, banhos de água quente e cerveja na Lagoinha? Relato de uma semana na ilha de São Miguel, nos Açores.

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Na esplanada do Café Central de Ponta Delgada, encasacado por causa do frio, do vento e da chuva que ia e vinha, um rapaz com menos de 30 anos, de barba e sotaque lisboeta, fazia no passado sábado um balanço das condições meteorológicas da última semana: “Este ano tivemos azar”. No festival Tremor, este ano, houve de facto azar e no plural: o mau tempo condicionou os voos de e para São Miguel, nos Açores, o que obrigou a uma ginástica da organização no alinhamento dos concertos, estilo “mete este, tira aquele” ou “adianta este, atrasa o outro”.

Houve azares, é certo, alguns inusitados: artistas retidos na ilha por terem voo cancelado, um concerto surpresa atribulado pela falta de energia elétrica em toda a povoação onde este se ia realizar, um trilho pedestre percorrido a chover copiosamente do início ao fim, um rapper local que esteve a trabalhar em residência com o gaiense dB (David Bruno, também do conjunto Corona) e acabou por não subir a palco ou uma viagem de uma pequena comitiva à ilha de Santa Maria que acabou cancelada por impossibilidade de voar (outra vez o mau tempo).

Mas o que são estes pequenos azares quando se chega ao Parque Natural da Ribeira dos Caldeirões, no nordeste dos Açores — para ouvir dB cantar sobre o empreiteiro “Adriano Malheiro Caloteiro” e o “polícia romântico Moita Flores” — e se descobre um cenário quase irreal, verdejante, feito de árvores, fetos arbóreos, cascatas, casas de moleiros transformadas em pequeno comércio, um lago encantador? Que importância têm estes azares quando se acaba um festival a suar em bica a dançar clássicos sul-americanos (viva Tim Maia, viva Marcos Valle, viva DJ Fitz) já de madrugada? O que é que tudo isto importa quando vemos dezenas ou centenas de crianças (estava escuro, não paravam quietas, é difícil contar) a correr de um lado para o outro e a dançar ao som de um DJ local (Milhafre, ali nomeado Milhafrinho), numa tarde dedicada aos mais novos com discoteca infantil, pinturas e mãos na terra? “Isto nem é bem um festival”, ouvimos nas conversas de balanços, já de madrugada adiantada. Bom, até é mas não é só.

Um “cheirinho” daquilo que é o pano de fundo maravilhoso que embrulha a Parque Natural da Ribeira dos Caldeirões, onde todos ouviram David Bruno. ©Diogo Lopes/Observador

O festival em que a natureza “é o maior artista”

Ainda existissem dúvidas de que o Tremor é tanto um festival de São Miguel e dos Açores como um festival de música, o diretor artístico que ajudou a imaginar tudo isto, António Pedro Lopes, tratou de as dissipar logo na sessão de abertura. Lembrando que isto começou por ser e continua a ser um sonho de meia-dúzia de carolas obstinados (uns dos Açores, como a Yuzin e Luís Banrezes, outros — da promotora e editora Lovers & Lollypops — com sede no Porto e origens em Barcelos, mas apaixonados pelo arquipélago), o responsável do Tremor advertiu que ali era preciso “preservar a natureza”, que a natureza é “o nosso grande tesouro, o nosso maior artista”, que era aconselhável “não destruir, não deixar rasto, deixar a ilha como ela é”. Aos visitantes estrangeiros — havia-os de vários pontos do mundo, do Reino Unido e Estados Unidos à Áustria e ao Egito — dava as boas-vindas: “Fizemos isto para vocês com muito amor. Isto é o paraíso. Sejam bem-vindos”.

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Como acontece habitualmente num festival que tenta relacionar a cultura local com quem a visita e com outros artistas que lhe acrescentam variedade, a sessão de abertura ficou a cargo da Escola de Música de Rabo de Peixe, que este ano trabalhou com a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel, com músicos locais e com o projeto de intervenção artística de Guimarães Ondamarela. Num Teatro Micaelense bem composto — revelador de que cada vez mais “tremoços” (o nome dado aos portadores de bilhete para o festival) chegam cedo, aproveitando a programação menos intensa dos primeiros dias –, ouviu-se uma ação musical de um grupo com deficiências auditivas que provou que, à falta de audição, a imaginação pode ter um papel maravilhoso, que se descobrem sons pela cabeça, coração e outros sentidos. Leram-se textos com a música (espécie de jazz-rock sinfónico e festivo) também traduzidos para língua gestual, ouviu-se que “nenhum homem é uma ilha” mas também que “um homem quando está feliz é uma ilha cheia”, viram-se alunos tão novos que os pés mal chegavam ao chão a tocar ao lado de veteranos, viram-se folhas atiradas na plateia, fez-se música com o som do amarrotar de folhas de papel.

Todo a apresentação inicial e momentos “spoken word” do espetáculo de abertura do Tremor foram traduzidos em linguagem gestual. ©Diogo Lopes/Observador

Entre a sessão de abertura e o concerto seguinte, de Colin Stetson, ainda deu tempo para um prego rápido no Café Central e para ouvir os clássicos “quando é que chegaste?”, trocados entre os “tremoços” que não se veem mais do que uma vez por ano. De estômago cheio ouve-se melhor aquele saxofone trovão, motor alterado tipo carro tunning, que dá para soprar e fazer percussão e dá a Colin Stetson ar de banda completa. Estava a ser “espetacular estar nesta ilha e nesta sala, partilhar música convosco”, disse-nos o saxofonista de Michigan numa das raras pausas de um concerto que algum cineasta deveria aproveitar para banda-sonora de filme de suspense ou de terror. Stetson balançava-se ligeiramente com movimentos mais ou menos constantes, um passo à frente e outro atrás, um passo para a direita e outro para a esquerda. Para fazer de um saxofone uma banda é preciso pulmão e gestão apurada do ritmo, o corpo relativamente firme, movimentos de pernas e braços sincronizados — Stetson tem tudo isso.

No Tremor conhecem-se "tremoços" de vários perfis: do clássico conhecedor do cartaz de fio a pavio, que investiga cada nota musical dos artistas e bandas que vão atuar, ao visitante para quem os concertos são apenas um extra de uma semana de férias idílica.

No Tremor conhecem-se “tremoços” de vários perfis: do clássico conhecedor do cartaz de fio a pavio, que investiga cada nota musical dos artistas e bandas que vão atuar, ao visitante para quem os concertos são apenas um extra de uma semana de férias idílica. Talvez por isso tantos tenham encarado sem grande stress o atraso do concerto do holandês Jacco Gardner (o voo para São Miguel atrasou, o aviso de que tinha aterrado chegou via app) ou a fila volumosa para ouvir os Pop Dell’Arte regressarem aos clássicos art-rock — ou “mumble-rock”, como ouvimos de um jovem. Felizmente não há rivalidade entre Tremor e São Miguel, não valia a pena preencher os dias com dezenas de concertos de manhã à noite, até porque há um atividades paralelas que se recomenda aos que se estreiam nos Açores. Por exemplo:

  • Comer o bife da Associação Agrícola de São Miguel (estaremos em condições de o comentar lá para a próxima edição, quando deixarmos de salivar) e comer o imponente bife do restaurante O Galego. Fizemo-lo no mesmo dia e sobrevivemos apenas com as artérias ligeiramente mais bloqueadas;
  • Comer peixe fresco na Caloura, num restaurante-bar de esplanada com vista para o mar;
  • Reservar uma mesa (para horas inevitavelmente tardias) no restaurante A Tasca para degustar um Alfonsinho ou um Boca-Negra (sim, são nomes de peixes locais);
  • Ficar de molho nas águas quentes da Poça da Dona Beja;
  • Ficar embasbacado a olhar para a Lagoa do Fogo, para a Lagoa das Sete Cidades ou simplesmente para as vacas tranquilas dos Açores;
  • Almoçar uma língua de vaca estufada n’O Faria, restaurante da Ribeira Grande que também vende gilettes e que fica a poucos metros de um mural gigante de homenagem ao lisboeta Nicolau Breyner (peçam aos locais que contem a história da obra, é melhor do que ficar a conhecê-la por aqui)
  • Provar a chamada “melhor cerveja do Atlântico” no snack-bar A Lagoinha, levando os “finos” (as lisboetas “imperiais”), que custam 65 cêntimos, para o exterior
  • Ir ao Morgado comer uma queijada de Vila Franca do Campo
  • Espreitar as antigas Plantações de Chá Gorreana (onde se faz chá desde o final do século XIX), lavando a vista com os belos campos de cultivo;
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Miramar, Benidorm, Mafamude e bifana à lavrador

Conciliar a exploração da ilha com a ida aos concertos obriga a ginástica, mas dá frutos, dá mesmo. Vale sempre a pena fazer o Tremor Todo-o-Terreno, mesmo quando este — um trilho pedestre surpresa percorrido a ouvir em MP3 uma banda sonora criada por um artista ou banda que no final do percurso dará um concerto — é feito a chover copiosamente do início ao fim, como aconteceu logo na quarta-feira ao som da chuva, vento e música ambiental (primeiro) e acelerada (no final) de Natalie Sharp’s Earthly Delights.

Num Tremor na Estufa -- sessões de concerto em local surpresa -- ouvimos dB (David Bruno cantar sobre "ser-se português", sobre a marca de refrigerantes de Espinho Gruta da Lomba, sobre Miramar e Benidorm (esse paraíso balnear dos portugueses nos anos 2000), sobre Mafamude, sobre ver um Lamborghini junto a uma roulotte a que se vai comer uma bifana à lavrador, sobre um date no restaurante Carpa de Vila Nova de Gaia.

É aconselhável aproveitar também os Tremor na Estufa, sessões de concertos também em local surpresa, que colocaram por exemplo dB a cantar, na quarta-feira, sobre “ser-se português”, sobre a marca de refrigerantes de Espinho Gruta da Lomba, sobre Miramar e Benidorm (esse paraíso balnear dos portugueses nos anos 2000), sobre Mafamude, sobre ver um Lamborghini junto a uma roulotte a que se vai comer uma bifana à lavrador, sobre um date no restaurante Carpa de Vila Nova de Gaia, sobre ir buscar comida ao McDrive (“a propósito, o que é isso de McDrive?”, perguntava-nos uma inglesa mais familiarizada com o termo “drive thru”).

Quinta-feira foi o dia em que se ouviram os Grails, os Fumaça Preta (que grande banda de stoner-rock tropical, capaz de pôr umas boas dezenas no Arco 8 a cantar “Ela era uma bruxa” sem afinação mas com convicção) e Odete, que acelerou a dança à medida que a madrugada avançava. Mas foi também o dia em que se ouviram os catalães Za!, provavelmente a banda mais divertida do mundo (já fundamentaremos), que se juntou ao grupo Despensas de Rabo de Peixe para um concerto em que o rock louco e desgovernado dos espanhóis aliou-se às castanholas, cânticos tradicionais e uma versão magnífica do tema popular “Pezinho da Vila”. “Rancho-rock”, foi mais ou menos isso. Toda a Casa do Espírito Santo – Irmandade da Beneficência, completamente repleta de pessoas, cantou:

Ponha aqui o seu pezinho
devagar devagarinho
se vai à Ribeira Grande

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Cada vez com mais concertos à medida que os dias prosseguiam, a sexta-feira (com atuações noturnas na Ribeira Grande e não no centro de Ponta Delgada) há-de ter sido incrível. Os relatos sobre a atuação de Lafawndah foram os melhores, mas só vimos mesmo um concerto, o dos brasileiros Teto Preto, banda brasileira que transformou o Teatro Ribeiragrandense em discoteca-anfiteatro a partir da 1h, que levou um bom número de “tremoços” a acenderem cigarros tentando escondê-los dos seguranças, que fez abanar os ossos dos rapazes de barba blaisé e dos hippies de rastas e t-shirts largas vindos de vários pontos do mundo (quase todos com um sorriso rasgado na cara, bonito de ver).

O motivo da dança? Uma espécie de eletrónica house tropical com sopros, um bailarino impressionante que a dada altura se deixou envolver pela bandeira do Brasil, uma versão espantosa de “Já Deu Pra Sentir” de Itamar Assumpção, um feminismo e uma denúncia da violência de género (“mulheres à frente, essa música é nossa todos os dias do ano”) gritado e dançado no palco. Lá em cima do palco, rapazes e raparigas a dançar com os Teto Preto ao som de “Bate Mais”. #Elessim.

Antes dos Teto Preto, trocámos os concertos por uma surpreendente performance teatral astro-física e existencialista do grupo polaco Instytut B61, uma “experiência” (é mesmo) e uma lição sobre o cosmos, a vida e a morte, capaz de parecer tanto uma aula de ciências da escola secundária como um casamento-rave ou uma bonita sessão de country num bar de Varsóvia. “The weirdest experience of my life”, “a melhor fritaria em que já estive”, “para que é que um tipo quer ácidos quando tem isto” foram comentários ouvidos. Pronto, o último comentário foi imaginado.

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O rap açoriano e um tarde para crianças

Sábado — o último dia de Tremor — continua a ter o menu mais forte de concertos, só não eclipsa tanto os dias anteriores porque a programação está cada vez mais distribuída pela semana. Foi dia repleto, a começar com o Mini-Tremor, que levou durante a tarde crianças ao Estúdio 13 (espaço de educação e estimulação criativa para jovens) para pintar, dançar com os pais, dançar sozinhos, escrever e desenhar num painel coisas como “Inês”, “Ana, Gostei!”, “Não tenho a cabeça grande”, “Adorei”, um Pikachu (com a devida assinatura, “Martim Cabral”) e um vampiro bem identificado: “Ele é um vampiro”. É mais divertido do que os canais infantis, os desenhos animados, o LEGO (tudo coisas boas, ainda nos lembramos). Viu-se bem o prazer da pequenada quando uma miúda fez uma espécie de mini-solo de dança contemporânea por iniciativa própria, quando um miúdo começou a manietar os botões do amplificador da guitarra elétrica de Pedro Lucas (que deu um mini-concerto) com um sorriso maroto na cara.

O rap açoriano já deu origem a um documentário (“AZ-RAP: Filhos do Vento”) e LBC, um “filho das Laranjeiras”, provou porquê. No Solar da Graça, com um músico, videógrafo e rapper-cantor nas horas vagas chamado Diogo Lima (nascido na Ribeira Grande, residente em Lisboa) e com um baterista continental de nome artístico e humorístico MC Boca Negra, LBC foi contando a sua história vivida no sudoeste de São Miguel em rimas. Uma história sobre segundas oportunidades, sobre a volta que deu à vida quando deixou o vício da heroína, sobre ter sido “por pouco que um gajo escapou”, sobre ter encontrado “orgulhos nos olhos da mãe”. Atrás de si passavam no ecrã imagens da mãe, de Rocky Balboa a treinar, dele próprio.

LBC foi contando a sua história vivida no sudoeste de São Miguel em rimas. Uma história sobre segundas oportunidades, sobre a volta que deu à vida quando deixou o vício da heroína, sobre ter sido "por pouco que um gajo escapou", sobre ter encontrado "orgulhos nos olhos da mãe

O fim de tarde e noite foram fartos, deu para ouvir aquele jazz-funk maravilha de Hailu Mergia e o seu trio teclas-baixo-bateria no Teatro Micaelense (o concerto foi bom, ainda que falte algum rasgo que supere o que já ouvimos em disco), antes da atuação dos regressados Bulimundo, históricos do funaná que eram os mais falados nas conversas dos “tremoços” e que não deixaram créditos por jogos de anca alheios. Se houve alguém que se aguentou no Coliseu Micaelense sem dançar aquele funaná que se acuse aqui. Também houve Trans Van Santos a tocar numa loja de roupa masculina famosa de São Miguel (a Londrina), João Pais Filipe a atuar sozinho e com o seu projeto de duo CZN (com Valentina Magaletti), uns Moon Duo cujo psicadelismo não convenceu por inteiro (também era difícil, depois da enchurrada de ritmo Bulimundo) e uma Maria Beraldo, compositora e cantora brasileira, a desafiar o público fazendo trinta por uma linha com a guitarra, voz e letras queer.

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A banda mais divertida do mundo

Voltamos aos Za!, que podem não ser “a melhor banda do mundo” mas são provavelmente a banda mais divertida do planeta. Já o tinham provado no concerto com o grupo tradicional Despensas de Rabo de Peixe, uma parceria que correu às mil maravilhas, graças ao espírito bom destes dois rapazes catalães mas também, como nos confidenciou um dos elementos das Despensas de Rabo de Peixe, Paulo Brum, à variedade de bebidas de cevada, vinhos, licores espirituosos e líquidos afins dos bares de Ponta Delgada.

O segundo concerto era suposto ser já a solo, na sua maioria até foi, e é difícil descrever. Ver os Za! é uma daquelas experiências que se adora ou odeia, ou se diz que é “cheesy” (como ouvimos por ali) ou se diz que é “a melhor coisa do mundo”. Os catalães não são uma banda para ouvir em disco, dificilmente alguém se lembrará de o fazer, mas em palco é difícil resistir a toda aquela energia dos diabos.

Na Garagem Antiga Varela, ali mesmo ao lado do Coliseu Micaelense, os Za! gritaram, espernearam, tocaram todos os instrumentos e mais alguns, chamaram as Despensas de Rabo de Peixe e as suas castanholas, fizeram uma versão da "Smack My Bitch Up" dos Prodigy, usaram auto-tune. Têm uma fome boa, animalesca, de sorriso largo na cara.

Na Garagem Antiga Varela, ali mesmo ao lado do Coliseu Micaelense, os Za! gritaram, espernearam, tocaram todos os instrumentos e mais alguns, chamaram as Despensas de Rabo de Peixe e as suas castanholas, fizeram uma versão da “Smack My Bitch Up” dos Prodigy, usaram auto-tune. A vontade era notória, só queriam atirar-se à bateria, teclado e tudo o mais que encontravam por ali com uma fome boa, animalesca, daquelas de sorriso largo na cara e cabelo a pingar, daquelas que levam dois tipos a largarem tudo e a ficarem só a saltar com música a tocar. Se um bom concerto rock é, como diz o conhecedor da matéria Paulo Furtado (The Legendary Tigerman), um concerto em que é obrigatório sentir que tudo pode acontecer, o dos Za! foi um bom concerto rock, poderiam ter feito quase tudo em palco que ninguém se surpreendia, tal a energia frenética e imprevisibilidade.

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Haley Heynderickx, caramba

Porém, também houve Haley Heynderickx no sábado — e tudo o resto parece um mini-Tremor quando comparado com Haley Heynderickx. Por nós ainda estávamos na lindíssima Igreja do Colégio a ouvi-la, só guitarra elétrica e voz, piadas e comentários de miúda tímida que sabe que tem um talento especial para as canções. Isto de fazer grandes canções, daquelas que não precisam de grandes artifícios, é uma arte e é um trabalho, mas sem dom natural não se arranja uma voz como aquela, capaz de contar as histórias mais bonitas como se nos contasse segredos ao ouvido. Disse-nos que reparou que por ali toda a gente “abraça pessoas” e “toca no ombro dos outros quando faz uma piada”, disse que vai fazer o mesmo quando voltar para Portland, Oregon e para os EUA, garantiu que quando lhe perguntarem o que é que se passa terá de explicar que “as pessoas fazem isso quando estão felizes”.

Haley gosta de apresentar canções, percebeu-se bem, de falar com as pessoas para desanuviar a tensão. Dá gosto ver alguém que não chega a um palco, que neste caso era um altar, e começa a despejar canções de enfiada, pumba e vira, como se estivesse numa linha de montagem fabril. Falou-nos de uma canção que versa sobre pessoas “numa relação amorosa monogâmica” que começam a discutir se vão ter um filho ou comprar um cão, “muitos amigos meus estão a chegar aí”.

As comparações com Angel Olsen são habituais até pelas inflexões de voz, tanto sussurra como a eleva aos céus, lembra um comboio pronto a descarrilar mas que vai sempre bem. Os acordes de guitarra são cuidadosos, não é preciso tocar demasiado, basta fazer a caminha para a voz, só por uma vez mostra virtuosismo e alguma distorção fugindo ao formato canção (depois de dizer que sempre se questionou sobre quem será Deus, se será mulher e usará roupas estranhas e engraçadas como as dela). Cantou “Fish Eyes” e confessou que é sobre a história de amor dos pais, pediu às pessoas para conversarem umas com as outras (“uma capacidade social que convém não esquecer”) antes de cantar a sua “canção embaraçosa”, o seu “êxito pop”, a bonitinha “Oom Sha La La”.

Haley Heynderickx, para muitos, o momento mais bonito de todo o Tremor de 2019.

Diogo Lopes/Observador

Porque é que as pessoas deixaram de apresentar as canções, mesmo? Agora queremos que todos o façam, que digam “esta canção é sobre isto ou aquilo”, mas só se for para falar de fins de relações e dores de corno como Haley Heynderickx, para fazer pirraça de ex-namorados ou ex-namoradas como Haley Heynderickx, para depois cantar como ela canta. E agora, que remédio, agora é começar a marcar férias todos os anos em abril.

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