Um pequeno cão golden retriever irrompe pelas gravações de uma cena num automóvel em plena Doca de Alcântara, em Lisboa. Os aviões ensurdecem qualquer mortal, cada vez que sobrevoam aquela área. Um canção em ritmo de kizomba começa a amplificar-se nas paredes de uma das discotecas mais próximas. Estão feitas as distrações para que ninguém dê conta de que, nessa cena, se planeia um homicídio. Uma sociedade de advogados ali ao lado tem as janelas para o rio Tejo, mas não faz ideia do que por lá se passa. Se soubesse, teria olho para fazer mais umas coroas. Em Situações Delicadas, série realizada e escrita por Diogo Lopes, os acasos vêm banhados com sangue. Uma pescadinha de rabo na boca que envolve três amigas desprezíveis com sede de vingança. O Observador foi assistir a um dos últimos dias de cinco longas semanas de rodagem que, daqui a pouco mais de dois meses — caso tudo corra bem — vão chegar à grelha da RTP.
No cenário escolhido para filmar o encontro entre Olívia (Catarina Rebelo) e um colega de trabalho (Tiago Costa), estão pouco mais de vinte pessoas, entre técnicos, produtoras e o realizador Diogo Lopes. Os camarins para receber as outras duas atrizes, Madalena Almeida (que faz de Marta) e Laura Dutra (Carlota), deveria ter sido disposto ali, mas acabou por ficar nas instalações da Firma Filmes, responsável pelo projeto, na Avenida da República. As gravações vão prolongar-se pela madrugada. Não admira, a história é bicuda, apesar de se querer divertida.
Estas três amigas vão acabar envolvidas na morte acidental de um ex-namorado. Nenhuma quer ir parar à prisão. Nenhuma sabe lidar com um corpo morto. Mas é preciso atuar e continuar a viver com os acontecimentos. E rápido. Já agora, seria ideal aperfeiçoarem-se técnicas e descobrirem-se métodos mais eficazes de matança. Na cena do dia, Olívia — peça central em tudo isto — não pode entrar num dos planos que a grupeta desenhou, por isso, fica cá fora à espera, no seu carro azul, enquanto o colega a põe a par dos próximos passos.
Esses passos são seguidos à regra por Diogo Lopes, bem instalado numa estação a escassos metros da ação, para que os atores não falhem uma vírgula do texto. Pragmático, bem disposto, não tem problemas em cortar nem tentar que se acerte no tom. Dá o “ação” para gravar quando o último avião passar. Deve haver alguém da equipa com o site Flight Radar em permanente atualização. A rodagem já vai longa, maioritariamente feita por Lisboa mas ainda com uma paragem por Coruche para, imagine-se, enterrar corpos. Da parte da equipa técnica há sempre quem saia ou entre a meio, mas não se nota cansaço, daquele que faz fartar do outro (ou, ocasionalmente, matar).
Nas pausas, reforça-se o estômago, estica-se as pernas e demonstra-se preocupação pelo estado de saúde da maquilhadora, magoada num joelho. Parece coisa de guionista. Tiago Costa, o tal colega de trabalho, não carrega aos ombros o peso de se meter no crime. Faz exercícios de aquecimento, mete-se com os técnicos e serve-se de batatas fritas — “ainda estão quentes” — que vão servir o resto da cena. Repete uma, duas, três vezes, as que forem preciso. Mas aqui é um mero peão porque, apesar da série ter sido escrita por um homem, o foco é no feminino e em bom português.
Diogo Lopes, que tinha primeiro pensado na série para três mulheres já com 40 anos, convenceu a RTP durante a consulta de conteúdos do ano passado. Queria algo mais carregado de drama, mas a estação pública pediu-lhe que apontasse para públicos mais jovens, um jogada que se liga ao que João Galveias, diretor dos Conteúdos Para Público Jovem (desde outubro de 2023) e dos Serviços Digitais (desde 2014), disse recentemente ao Observador, quando afirmou que a RTP vai repescar projetos da consulta de conteúdos anual para trabalhar este tipo de público.
Daí até chegar a uma comédia em que a piada na está necessariamente na ponta da língua, cimentada numa bola de neve criminal, foi um tiro. O realizador inspirou-se em séries como Fargo (na Max, que deriva do filme dos irmãos Cohen) ou The End of The Fucking World (Netflix), depois de já ter trabalhado para o primeiro canal em Idiotas, Ponto (2018). E atenção, esqueçam as pretensões de Situações Delicadas em ser o sucessor de Pôr do Sol, a mais recente galinha dos ovos de ouro do serviço público na área da ficção e da comédia que deu duas temporadas e o filme mais visto do ano em 2023. Não há o mesmo tipo de sátira, os objetivos são outros. A vida real é que se complica, o que só pode ter graça. “Vai dar para perceber ao longo dos seis episódios que não está sequer perto dessa série. Não senti pressão porque não queria que tudo tivesse graça. Este projeto vive do constrangimento e não das punchlines“, argumenta ao Observador.
Antes dos atores chegarem, Emma Santos e Alice Besen, duas produtoras encarregues de assegurar que o único crime cometido se passa na ficção, trocam impressões sobre as dificuldades — e os momentos mais hilariantes — de concretizar um projeto destes com orçamentos nacionais. Ou seja, muito diferentes do que se faz lá fora. Num dos dias de rodagem, Teresa Tavares apareceu para dar um boost de caras conhecidas de Situações Delicadas. Laura Dutra tem andado pelas novelas e vai entrar na série “Lua Vermelha” da Globo, no Brasil, Catarina Rebelo foi uma das protagonistas de Emília e Madalena Almeida projetou-se — e bem — nos filmes de João Canijo.
Nesse dia, o trabalho foi feito numas instalações que diríamos “chiques”, em estilo palacete, onde nada podia ser partido, algo que não impediu que uma praga de baratas interrompesse o feng shui da série, tão visível nas Docas de Alcântara. “Andámos nós a matar as baratas, sempre a usar os walkie-talkies para que a Teresa não percebesse o que se estava a passar”, alega Emma Santos. É a primeira vez das duas num registo de ficção com uma envergadura média. Emma Santos já produziu curtas, Alice Besen anda pela publicidade. Não tiveram medo de encarar esta série com a mesma astúcia com que as respetivas personagens encaram a vingança em crescendo que lhes vai consumir a alma.
No dia seguinte, e exatamente no mesmo horário, completava-se o calendário da rodagem. Era preciso enterrar corpos, carregar malas de 80 quilos com partes de vítimas e despachar serviço. Cada episódio começa com um momento que revela um desfecho que se pretende à medida da narrativa. Portanto, durante a noite de Coruche, as três amigas já sabiam que não podiam voltar para trás. A equipa conta-nos que as atrizes comeram poeira durante as gravações numa herdade que serve também de Airbnb. Se os acasos pintaram uma boa parte das gravações, e depois de pragas dos mais variados insetos, não daria jeito um cliente dar de caras com uma situação delicada como esta.
Acabou por não acontecer e ainda bem. “Filmámos nesse decór por necessidade e por condicionamentos de agenda. Essa cena ficou para o fim e isso podia ter sido dos dias mais difíceis, mas não foi. As atrizes nunca se queixaram, têm esse lado de fisicalidade que resultou. Lá para as 5 da manhã estava de rastos, mas houve quem ainda parasse nas bombas de gasolina rumo a Lisboa para beber uma cerveja”, confessa o realizador. Ainda assim, o descanso só virá depois, é preciso montar e pós-produzir, sendo que a série já tinha alguém a iniciar o “corte e costura” do que ia sendo filmado.
Rebobinamos a fita para lembrar que em junho decorreu mais um edição dos Encontros do Cinema Português, patrocinado pela NOS. Depois da habitual apresentação dos vários títulos cinematográficos portugueses que vão constar do menu das salas de cinema nos próximos tempos, houve espaço para um debate. José Fragoso, diretor da RTP1 desde 2018, alegou que Portugal precisa de comédias como de pão para a boca, devendo seguir o exemplo de França, onde os maiores êxitos de bilheteira são, desde há anos, desse género. Opinião nada consensual durante o debate, mas que ganha força com novos produtos como o Situações Delicadas.
Diogo Lopes não sabe quando a série se vai estrear e apesar de ter ficado surpreendido com a chamada do primeiro canal para executar este projeto, mantém o pragmatismo e a boa onda. Por outro lado, também não se sabe se será mostrada, no próximo dia 17 de setembro, na sessão de apresentação da reentré do canal do estado. Mas o realizador confia que o público vai estar do lado do projeto, estreie quando estrear. “O nosso público até costuma dar oportunidade aos conteúdos nacionais. É interessado. Basta encontrarem cá o que veem vindo de fora”, finaliza.