Começa com uma espécie de hino nacional adaptado, na letra e no ritmo: “A Portuguesa” torna-se “Hinu digra”, espécie de dedicatória, entre o português e o crioulo, ao “micro-país” que é a Linha de Sintra e aos “heróis da linha”.
De então em diante, durante mais de uma hora, ouve-se muita coisa: sons de ambiente e de rua, conversas entre amigos e gravações de vozes, rap lo-fi, canto baladeiro e emotivo (às vezes dolente e dorido, Frank Ocean experimental) com efeitos eletrónicos, hip-hop e R&B enevoado e cósmico, afro-dança eletrónica à Príncipe Discos, uns pozinhos de jazz, batidas e relação entre música e voz que não soam a nada que tenhamos ouvido no passado. E ouvem-se algumas das canções mais inquietantes e originais em língua portuguesa que têm surgido nos últimos anos, como “O Menino Ke Brinkava com Bonekas”, “Mark Landerz”, “Verde 2″ e sobretudo, acima de todas as outras, esse portento que é “Rapepaz”, candidato a tema do ano e de muitos outros anos, seja em que língua for.
Do que aqui falamos é de Meia Riba Kalxa, o primeiro álbum lançado há algumas semanas — em pleno confinamento — pelo português Tristany, apelido de João Tristany, um artista de 24 anos que em conversa telefónica com o Observador, aquando do lançamento do álbum em formato digital, dizia que o rótulo de músico não lhe assenta inteiramente: “Sinto que o que faço não é música. Se me considerar alguma coisa, posso considerar-me, não sei, um fotógrafo, um cronista, um jornalista… não exclusivamente um músico”.
A explicação de Tristany para intitular esta sua estreia discográfica de Meia Riba Kalxa, gesto de puxar as meias por cima das calças, tem aliás muito a ver com a ideia de que isto não é bem apenas música, é também um retrato de vida, um testemunho de um meio social e de um modo de vida que poderia ser feito com recurso a outros meios, como a fotografia ou o texto publicado (felizmente para quem gosta de música, o resultado é um disco). É a arte como testemunho em vez da arte como fingimento, como reclamava por exemplo Jorge de Sena para a escrita. E não será um acaso a proximidade com Chullage, rapper e sociólogo que entra no disco e que é uma das referências de um hip-hop que olha para fora, para o mundo e para as ruas, em vez de olhar apenas para dentro — e que nunca o olha de forma superficial.
Nas notas oficiais que acompanham a comunicação do álbum, este rapaz de 24 anos de Algueirão-Mem Martins, que tem ascendência angolana, assumia aliás o significado do título: Meia Riba Kalxa simboliza, lê-se, “uma linha temporal de acontecimentos”, espelha “um passado, um presente e um futuro”, integrando “na sua essência os problemas vivenciados pelos jovens das periferias”. Puxar a meia para cima das calças é assim “uma farda que representa uma conduta”, um gesto estético “que gerou sentimentos de repulsa ou repúdio para com todos aqueles que o faziam e pelo sítio de onde o gesto provinha”. Mas era, ao mesmo tempo, “uma afirmação” por quem fazia, um símbolo de “uma identidade” e, mais do que qualquer outra coisa, “uma forma de comunicar”.
Ao Observador, Tristany acrescenta: “O gesto e significado de Meia Riba Kalxa é: puxa a tua meia riba kalxa e caminha para diante; que este gesto te dê bagagem para tudo o que enfrentares. Mas não é só isso. Por um lado tem a ver com essa estética e identidade que era comum na periferia de Lisboa enquanto crescia, nos primeiros anos da década de 2000. Foi quando percebi que havia certos modelos para estar na moda, como é que se utiliza isto ou aquilo, que não se podia, supostamente, usar por exemplo um fato de treino da Nike com Adidas”.
Mesmo que cada um possa fazer o que lhe apetece, há nesses códigos de vestuário uma espécie de “conduta” que lhe interessou como símbolo de uma outra identidade, uma identidade mais das periferias do que da cidade de Lisboa. “Mas também é um contraste entre épocas. E é querer testemunhar, mais do que representar, querer quase fazer jornalismo sobre uma época. Houve muitos artistas e pessoas que recolheram material sobre estes tempos mas sinto que na altura foi bastante invisível”. Mesmo que reconheça as diferenças na abordagem musical, diz “encher-se de orgulho” por saber que artistas como “o Deejay Telio, o Julinho KSD, o Vado Mas Ki As, o Toy Toy e mesmo os Wet Bed Gang vão perceber o que estou a querer falar. Podem não se identificar tanto artisticamente, mas viveram as coisas e são consequência disso”.
Está explicado que o disco comece, assim, com uma recriação do hino nacional enaltecendo desta vez “heróis da linha, povo dread, digras valentes e imortais”, a “zona”, mas também lembrando “lágrimas, almas” ali derramadas. É o arranque de um dos álbuns mais desconcertantes dos últimos anos na música portuguesa, que subverte todas e quaisquer fórmulas da música popular. Esqueçam-se as estruturas tradicionais, os versos e o refrão sempre no sítio, o hip-hop convencional de três minutos e meio, a produção polida, a ideia de que uma canção não pode:
- Começar com vozes manipuladas (de polícias?), simuladas ou não, passar para rimas rap e seguir para soul eletrónica, sempre com uma percussão esquizóide em fundo, para depois se voltar às rimas, prosseguir de seguida com tons de música ambiental cantada e terminar em batidas electrónicas de dança (caso de “Onda Civik”)
- Começar com uma espécie de canto com auto-tune arrastado, trap sem pressas e com calmantes, para depois ouvir-se só uma guitarra durante alguns segundos até de repente se tornar, na segunda metade, coisa que nunca tínhamos ouvido, batida dançante mas também claustrofóbica, com Tristany a cantar e rimar versos que vale a pena anotar, todos (“Amor de Jinga…”, uma canção que diz que é “um feitiço” que está a enviar a alguém)
- Ser um interlúdio chamado “é rap street… é rap street…”, que começa com uma batida que lembra produções instrumentais do já reformado rapper, cantor e produtor Allen Halloween e depois desagua em bons conselhos deixados por vozes distorcidas e cavernosas e por uma voz mais clara, que lembram o ouvinte de que “todo o homem sente amor” e que “não é só porque acham que nós somos bandidos, metemos gorro na cabeça, andamos camuflados… amor é uma coisa essencial para qualquer homem… tudo com calma, tudo com cabeça… essa vida de street (…) é só passagem”. Para depois fechar com uma pergunta de outra voz: “então mas ó G, tu tens passe?”
- Ir da festa com Julinho KSD ao “funaná consciente” de Chullage (em “Acliclas”, canção sobre a relação entre moda, estética e identidade, mas também entre identidade e convenções sociais associadas à roupa)
São quatro exemplos mas poderiam ser 16, o número de faixas deste primeiro álbum de Tristany, todas elas razoavelmente longas (só três têm menos de cinco minutos e seis têm seis minutos ou mais de duração). Diz ele: “As pessoas é que vão ser os últimos autores daquilo que ouviram, daquilo que eu disse no disco”. E acrescenta, a propósito dos ritmos que aqui explorou: “Acho que nunca senti grande necessidade de pensar conscientemente: vou misturar isto, quero fazer as pessoas entenderem que oiço músicas diferentes e que as vou misturar: por exemplo, pegando numa bateria e juntando-lhe uma melodia à Carlos Paredes para pensar ‘grande cena, esta’.”
A estética musical muito pessoal, que mistura conversas e diálogos com batidas, gritos com canto emocional, aconteceu “mais por aquilo que sentia”, diz Tristany. “A minha maior inspiração de fusão é uma revolta. Olhava para dentro e para os lados, via a minha realidade e às vezes era um pouco estranho estar a samplar [construir uma música a partir da manipulação de um tema alheio] obrigatoriamente um James Brown. Não que não goste de samplar, que não oiça ou não ame, mas por obrigação não. A dada altura a ideia era: posso samplar blues e jazz, mas olhava para o lado e não era essa a música que ouvia na street ou no comboio. Queria que isto tivesse esse elemento de esponja e de espelho”.
Mas quem é mesmo Tristany?
De onde vem esta revelação da música nacional em 2020? “Ainda não sei bem de onde é que sou, qual é o meu sítio… é uma coisa que estou a descobrir. Mas nasci em Lisboa, nos Olivais, e cresci na Linha de Sintra”, começa por contar.
Nos primeiros cinco anos de vida, Mem Martins e a Linha de Sintra, onde ainda vive, eram “um dormitório”. Os pais trabalhavam em Lisboa e iam de comboio para a capital, a partir da periferia. “Eu ficava também em Lisboa, tinha uma ama ali para os lados de Xabregas, Santa Apolónia. Também foi lá que andei na creche, era por essas zonas”, recorda.
Desde muito cedo que a música esteve presente na vida de João Tristany. “Desde criança que tenho esse contacto, porque os meus pais eram músicos. Acho que só comecei a perceber que isso não era uma coisa assim tão comum quando começo a frequentar a casa de outras pessoas, inclusive familiares. Percebi que isso era uma particularidade da minha casa”.
As primeiras gravações, ou tentativas de gravações, foram feitas com um grupo de hip-hop que formou com os amigos, chamado Monte Real. “Firmámos um grupo, eu e uns amigos da minha zona, e fazíamos hip-hop. Entre nós, três éramos do mesmo bairro, os outros de perto. Também já vínhamos de uma linhagem de irmãos e primos que cantavam, também num grupo de hip-hop que na cultura da street de Mem Martins é um dos nomes mais conceituados”.
Esse início, quando Tristany tinha perto de 13 anos, foi com os meios possíveis. “Uma vez emprestavam-nos um microfone, havia alguém que conseguia o computador e o microfone do irmão sem que ele desse conta, vínhamos a casa, montávamos uns colchões…”. Mas o grupo desenvolveu-se nos anos seguintes, como aliás se vê pelos vídeos publicados pelo grupo ao longo dos últimos anos, no Youtube.
Deixar de gravar música com o grupo e passar a assumir o seu apelido como nome artístico, a solo — embora vinque que a sua música é resultado de reflexões, conversas, discussões e trabalho conjunto com outras pessoas, desde logo o colaborador próximo Ariyouok — foi menos opção do que necessidade, assume: “Não foi algo propositado, teve a ver com a circunstância: aqueles meus amigos estão todos emigrados, emigraram todos. Desses amigos de base, dos Monte Real, a única pessoa que não emigrou e está cá, não canta”. À distância, foi-se apercebendo que a vida de emigrante tira tempo, traz frustração e cansaço, a pessoa “chega a casa e dorme, é diferente, está noutro sítio, noutra realidade. São bases novas, é tudo novo”.
Com o tempo, foi lançando alguns temas próprios no Youtube, levando Sam the Kid, figura histórica e consensual do hip-hop português, a nomeá-lo como uma das revelações de 2019 no podcast “3 Pancadas”, do seu canal online dedicado ao hip-hop TV Chelas. Aí sentiu que “houve alguma confiança de pessoas”, que ou não o conheciam e que o descobriram, ou que “já estavam em meu redor mas começaram a ter um pouco mais de respeito e consideração pelo que estava a fazer”.
Pelo meio passou pelo Projeto Oficial Portátil das Artes (OPA), que pretende fomentar a integração social de jovens dos bairros periféricos da Grande Lisboa concedendo oportunidades artísticas a novos talentos que muitas vezes estão à margem, colocando-os a colaborar com profissionais e a desenvolverem talentos na área das artes — da música à dança, teatro ou artes visuais.
Sobre este projeto da OPA, deixa vários elogios: foi, garante, “uma experiência fixe”, conheceu “pessoas que estão no meio” e antigos integrantes do projeto, alguns dos quais “já estão a viver da música e têm o seu percurso”. Só nota que talvez o projeto pudesse ser desenvolvido “nas zonas, no sítio das pessoas”, até para “que se começasse a perceber algumas coisas que acontecem, mesmo em termos da arte e do talento que existe nesses lugares”, lamentando ainda que projetos do tipo estejam “habitualmente ligados única e exclusivamente ao desporto ou à arte”. Ora, talvez não devesse ser assim: “No limite, pode ser perpetuar um discurso e uma estética de arte na pobreza que a mim até há uns tempos cativava-me e orgulhava-me. Aquela coisa do puto fixe, ‘good kid mad city’… mas comecei a ver que não era assim tão fixe e ficava contente se houvesse iniciativas como a OPA para economia, para enfermagem, para medicina…”. Ele, diz, já caiu “nesse veneno” de seguir o caminho da música ou do desporto, mas de qualquer forma é aqui que diz que sente que o que faz “não é música”.
Com o tempo, Tristany foi apurando uma produção musical menos convencional, que é impossível encaixotar em géneros estilísticos ou até em padrões rítmicos invariavelmente semelhantes. Apropriando-se de um termo cunhado por um amigo, usa o termo “sintranagem” para descrever a música, quase como um reflexo musical da parafernália de sons da Linha de Sintra mas que usa também para abordar as desigualdades económicas, as desigualdades raciais, a relação entre o crime e as periferias (sem moralismos, contextualizando-o e enquadrando-o, em “Tirante”). Que sons são esses da “Sinatragem”? “Vão do que oiço quando vou a casa do pai de um amigo meu buscar qualquer coisa que ele precisa para enviar ao filho que está em França a ir para o comboio e estar a ouvir Landim, Baby Dog ou Puto G…”
Questionado sobre a duração longa das músicas e a fuga ao formato mais radiofónico, fala na inspiração tirada do jazz e até da música clássica — “não sei os nomes, não sou erudito na cena, simplesmente oiço e as músicas têm o seu respeito e a sua própria dinâmica… sem querer ser muito nerd, às vezes só haver um início e um fim para as músicas já era algo que me deixava chateado”. Ora, se a duração permite “justificar aquilo que estou a sentir” e se o resultado o satisfaz, “porque não?”. A opção não foi um “pensamento só meu”, diz ele, “foi muito uma construção, poder estar com o Ari, mesmo com o Chullage, com o Diogo Carvalho, com os meus tropas do Monte, com outras pessoas… resultou tudo de uma reflexão e de de uma construção entre várias pessoas”.
Desengane-se porém quem achar que esta fuga ao formato e estruturas mais clássicas, já ouvidas e repetidas até à exaustão, possa servir como crítica ao hip-hop mais dominante ou à música pop mais comercial. “Não fiz isto por estar farto do mainstream ou por não querer ser mainstream. Não é muito por aí. Não estou preocupado se alguém faz música ‘para bater’, o fundo é o ganha pão dele e eu respeito. Se ninguém censura um gajo que venda a alma a ir trabalhar para o Continente…”, exemplifica. Porque é que com o ofício artístico a censura teria de ser maior? “Era mais: eu posso, tenho espaço e possibilidade de experimentar fazer isto, experimentar fazer outras coisas. Então vou experimentar e fazer. Não estou aqui a reivindicar nada”.
Perguntamos-lhe o que quer dizer quando diz que “pode” e tem “espaço” para não trabalhar de acordo com determinadas regras e modelos, ele responde: “Não sei… até agora não vivo da música. Também não vendo nada ilícito, para o caso de alguém se estar a perguntar. Simplesmente: não tenho problema em trabalhar. E posso… posso no sentido que quero”. Até ver, a aposta foi certeira, até porque é com este projeto musical distinto, a que não é possível encontrar grande paralelo, que está a ganhar mais notoriedade — mais até do que quando fazia rap mais clássico, com o grupo de que fazia parte.
Foi, assim, com este álbum que se revelou, um compêndio de explorações detalhadas e pensadas ao pormenor, em que o canto, as rimas e a batida ecoam muita coisa e até contradições, como as de qualquer humano: revolta e amor, dor e sensualidade, injustiça e orgulho, reclamação identitária e defesa do meio de que se provém mas também desencanto com o que ele implica. E ainda o ressentimento com as desigualdades sociais e raciais, bem expressas no tema que encerra o álbum, “Verde 2”:
Se tu és verde
eu não sei bem qual é a tua cor
(…)
Mas porque é que te relacionas melhor com o branco
E porque é que para ele tu és um encanto?
(…)
Mas os brancos é que são verdes
Eles é que têm verdes
Fazem de tudo por verdes
Matam por verdes
Quero verdes, verdes (…)
Minha cabeça…
Levaram-me o cérebro sem minha licença,
consumiram-me a vida com publicidades e merdas.
Quem sou eu, humano sem oportunidades, sem verde?
Meia Riba Kalxa parece quase um álbum coletivo de que Tristany é veículo e protagonista, mas não personagem única. Algumas conversas mais existenciais e espirituais que se ouvem no disco percebem-se melhor quando ele diz que lhe foi dada a “responsabilidade” e legitimidade para documentar o que viu em redor enquanto crescia, o que pode isso significar, as dores que pode isso provocar e os sonhos e as reflexões provocadas. Fá-lo com argúcia, sem lugares comuns na instrumentação e nas palavras que se ouvem ao longo de um álbum que pode ser colocada na prateleira digital (pelo menos até sair, se sair, em formato físico) ao lado de outros grandes trabalhos deste ano, como KRIOLA de Dino D’Santiago e Não Fales Nela que a Mentes de Nídia.
Quanto ao futuro, não deixa grandes promessas: só que vêm aí mais singles do disco acompanhados por vídeos, que as pessoas “podem estar preparadas para nunca saber realmente o que é que eu vou lançar” e que haverá um concerto de inauguração até ao final do ano, “se calhar mais para o final”. De resto, o que vier é ganho.