Atrasou-se ligeiramente na hora da entrevista porque se distraiu no babysitting. Nídia é mais um caso de uma artista que, com os bares e discotecas fechados, ficou sem fonte de rendimento. Admite que tem sido difícil, embora a sua família, quase toda a viver em Bordéus – onde também ela esteve de 2010 a 2018 – seja uma enorme ajuda. Está a ponderar inscrever-se na Uber como alternativa. No fundo, a pandemia trouxe-lhe a calma necessária para desatar a fazer música na sua casa do Vale da Amoreira, na Moita, mas também a afastou do dinheiro que lhe entrava na conta.

Nos entretantos, um dos membros mais importantes da Príncipe Discos acaba de atirar dois discos para a eternidade: Não Fales Nela Que A Mentes (um disco de vinil de dez temas) e Badjuda Sukulbembe (single de dois temas e que vai merecer uma edição 7’’). Simultaneamente, está em fase de exames da licenciatura de Comércio e Negócios Internacionais no ISCAL (Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa), um dos motivos pelos quais regressou sozinha para Portugal – o outro é, pois claro, a ideia de fazer música aqui. São coisas que não se separam, ainda que sejam difíceis de conciliar, ao ponto de Nídia reconhecer que concluir o curso em três anos – que seria o tempo normal – é praticamente impossível. Então, mas afinal, qual o interesse nesta área de estudo?

“Acho que pode ser rentável daqui a uns anos, quando quiser abrir a minha empresa ou algo assim, percebes? Não gosto de injustiças e sei que isso existe muito no mundo do trabalho, então para não chocar muito com as pessoas ou com o meu patrão e ser aquela pessoa conflituosa, prefiro abrir a minha empresa e fazer o que acho bem. O curso está-me a enriquecer bastante, agora conheço melhor as leis, as patentes, como é que posso aderir a um benefício fiscal, esse género de coisas que são muito úteis”, esclarece.

[“Capacidades”:]

Quanto à experiência propriamente dita, começa por chutar que Portugal “está muito atrasado”, diz antes de prosseguir: “Sinceramente acho que é uma vergonha que as faculdades portuguesas não tenham uma plataforma devida para, não só numa situação de pandemia, mas até como norma, os alunos terem aulas online em condições. Tenho amigas em França que já tinham muitas aulas online antes de isto acontecer. Para mim seria muito mais fácil, podia não estar em Portugal e assistir às aulas na mesma. E não é só isso, é o facto de a maioria dos professores claramente não estarem preparados para dar aulas online, parece-me que isso devia ser implementado, é o futuro”, explica.

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O Vale da Amoreira, na Moita, é um bairro maioritariamente composto por habitação social e gente sem grandes condições financeiras e/ou sanitárias que, numa pandemia como esta, fica ainda mais isolada:

“Estamos, de alguma forma, afastados do mundo e devido à quarentena ficámos ainda mais longe de Lisboa. Mais isolados. Não é novidade nenhuma, claro, sempre fomos tratados assim. Ao mesmo tempo, parece-me que as pessoas carenciadas são as que têm mais medo de ser infetadas, então, apesar das dificuldades, muitas delas têm cuidados”, afirma.

Mas ainda que Nídia tenha esta perceção, não é pela existência desse medo que a situação em que muitas destas zonas suburbanas e desfavorecidas de Lisboa e Vale do Tejo se encontram é menos dramática: “É caótico. Nem vale a pena ir tão longe, mesmo na minha casa as dificuldades existem. Da segurança social não recebo nada. Felizmente que não tenho filhos para alimentar, mas não é assim na maioria das casas à minha volta. E as famílias que têm um crédito habitação para pagar? Como é que fazem? Mesmo que as prestações possam só ser pagas daqui a três ou seis meses vai dar tudo ao mesmo, vais pagar na mesma e se calhar até pagas mais. Nestas realidades falamos de pessoas que, por vezes, nem dinheiro têm para comprar uma máscara, que é um adereço obrigatório neste momento. Como é que é suposto apanhar um transporte público se não há dinheiro para uma máscara? O Governo podia, pelo menos, distribuir máscaras nos transportes”, alerta Nídia.

A capa de “Não Fales dela que a Mentes”

Esta forma direta e incisiva de falar caracteriza a produtora. A mesma que desde que em 2017 editou Nídia é Má, Nídia é fudida se fartou de tocar por esse mundo fora, chegando mesmo a fazer uma digressão nos EUA, Canadá e México. Relata esse tempo como algo que gostaria de repetir agora, que está mais velha e que teria, eventualmente, menos medo de se lançar para o desconhecido. Pelo caminho, entre 2017 e 2019, fez alguns dos beats que agora encontramos neste duplo lançamento.

É impossível, ao escutar estes 12 temas, não ouvir outra Nídia, uma Nídia menos febril, que já não quer – pelo menos não a toda a hora – falar pelos cotovelos, introduzir todas as batidas e todos os graves na mesma linha. Mas não deixa de ser curioso que a DJ e produtora nunca pense num disco como um disco, isto é, nunca o desenha previamente, nunca lhe faz um esboço:

“Não faço beats a pensar no disco. Trabalho em faixas soltas, sempre foi assim. O que acontece é que vou fazendo beats, depois mando para a Príncipe, cada elemento avalia cada um e os que tiveram a melhor pontuação vão para o disco”, conta.

Quando à opção da edição em dois objetos tem por base a simples relação com o tempo: “É para não lançar tudo de uma vez, percebes? Vamos adoçando, é assim que dizemos aqui no bairro” – e atenção que até ao fim do ano ainda sairá mais um disco de três faixas, só para o caso de sentirmos que esgotámos estas. Seguimos adoçando. E recuperando a ideia de alguém que, em não querendo fazer um todo, sabe que estes são objetos de uma outra natureza que também se pode unir, de alguma forma até inesperados naquele que é o seu percurso e constante utilização de uma linha de baixo agressiva, intensa, explosiva. “Sim, acho que é um material mais chill”.

A capa de “Badjuda Sukulbembe”

Mas essa dimensão chill fará Nídia deixar de ser má e de ser fudida? “Eu diria que não, isso vai lá estar sempre. Aquele som que diz: “mesmo sem beat a Nídia é má, Nídia é fudida”, então, mesmo sem beat eu já sou assim. Mas sim, acho que este disco sou eu a explorar, a experimentar cenas novas, outros horizontes, estou a descobrir. As pessoas têm tendência para dizer que um rapper só pode cantar rap, ou que a Nídia é DJ de batida e só pode tocar batida, não penso assim. É por isso que digo sou artista, fazer aquilo que lhe dá na gana, vou fazer isto hoje. Foi um bocado assim”, diz, considerando ainda que há uma vertente menos tribal nesta nova paisagem.

Oiçamos “Popo” e reconheçamos-lhe a dimensão desértica e meio tuaregue; espreitemos “Nik Com” e saibamos adivinhar-lhe as palmeiras, o calor, o Tejo ao fundo, numa festa que não conseguiremos cumprir este ano; deixemos a capital assim que “Tarraxo do Guetto (feat. Gamboa)” nos invada os tímpanos, talvez febras e couratos nas arcadas de um qualquer prédio. Além destas, há ainda três canções que puxam ao universo do rap: “RAP Complet”, “Raps”, “Rap Tentativa”. Se Nídia tem um passado como rapper? Não, no passado, ainda antes de 2010 e de rumar a Bordéus, tinha um conjunto de kuduro com amigos. No entanto, é muito fã do estilo:

“Sempre ouvi rap. Ultimamente tenho ouvido mais rap tuga e francês, deixei um bocado o americano, até porque não percebo muito bem o inglês. Força Suprema é algo que me entusiasma desde pequena, Monsta, Deezy. Tive uma fase mais antiga em que ouvia Boss AC, mas nada como Força Suprema. Eles todos os anos vinham aqui cantar ao Vale da Amoreira”.

[“Niki Com”:]

A memória fortalece relações. Além de Força Suprema, Nídia, como se deve recordar o estimado leitor, começou por ser Nídia Minaj e não se coíbe de contar uma história que demonstra o seu lado sonhador e como acredita que este tríptico dedicado ao rap pode bem ter rappers a rimarem-lhe por cima: “Imagino, claro, e olha que eu imagino longe, estou sempre a sonhar acordada. Uma vez disse ao meu manager: ‘Vou fazer uma música para a Nicki Minaj, vais ter que arranjar o contacto dela’. E ele: ‘Ó Nídia, calma aí, as coisas não são bem assim’. Viajo bué, acordada ou a dormir. Por exemplo, quando fiz o ‘Capacidades’ estava a imaginar o Drake, ele podia cantar por cima daquilo, na boa. O Prodígio já rimou num beat de kuduro 140 bpms, portanto consegue num destes três sem problema”.

Que nos perdoem aqueles que lidam mal com a opinião, mas “Emotions”, a última faixa de Não Fales Nela Que A Mentes é outra conversa. É algo de uma doçura narrativa, de uma sensibilidade profunda, e de uma textura pouco comum no universo sonoro de Nídia. É emoção em batida – e pode bem fazer chorar:

“Esse título e esse som foram pensados com cabeça, eu passo a vida a dar nomes ao calhas ou as primeiras coisas que me vêm à cabeça depois de fazer o beat, nesse caso não foi tanto assim, pensei ‘vou fazer um beat emocional’, se olhares para a estrutura do beat vês que ele é mais progressivo, mais estruturado, os outros são mais livres, esse beat é politicamente correto”, confessa.

Ou seja, a versão politicamente correta de Nídia é, também ela, uma maravilha e uma frescura no panorama musical português. Mas não a habitamos por muito tempo, basta perguntarmos a razão dos nomes dos dois discos: “Badjuda significa menina em crioulo da Guiné-Bissau. Sukulbembe é um piri-piri africano, o que pica mais, então, menina que pica muito ou menina picante. Se fores a ver, os dois títulos têm significado, é um bocado aquela brincadeira do: ‘Não mintas, que eu vou-te meter piri-piri na língua’”, conclui.