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João Alves, técnico superior do ICNF, é coordenador do Plano de Ação para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal
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João Alves, técnico superior do ICNF, é coordenador do Plano de Ação para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

João Alves, técnico superior do ICNF, é coordenador do Plano de Ação para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

"Trouxemos de volta uma espécie." O lince-ibérico deixou de estar em perigo, mas continua vulnerável

Chegou a ser o felino mais ameaçado do mundo. 45 anos após a primeira campanha, passou de "em perigo" para "vulnerável". Entrevista a João Alves, coordenador do plano de conservação do lince-ibérico.

Em 1979, a Liga para a Proteção da Natureza (LPN) lançou uma campanha sem precedentes em Portugal: por todo o país, foram espalhados pósteres com a imagem de um lince-ibérico e o slogan “Salvemos o Lince e a Serra da Malcata”. A perspetiva de instalação de uma exploração de pasta de papel naquela área natural da Beira Interior ameaçava o lince-ibérico, uma espécie que já na altura se vislumbrava como ameaçada. A campanha, lançada em parceria com a Faculdade de Ciências de Lisboa e com o organismo antecessor do Instituto para a Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), teve um sucesso improvável, numa era pré-redes sociais: foram recolhidas quase 50 mil assinaturas, o que permitiu que, dois anos depois, a Serra da Malcata, onde vivia o principal núcleo de linces do país, fosse classificada como reserva natural.

Os resultados daquele esforço, porém, demoraram vários anos. A campanha abriu as portas a décadas de trabalhos de preservação do lince-ibérico, que chegou mesmo a ser internacionalmente classificada como espécie em “perigo crítico de extinção”. No final do século XX, esta espécie — endémica da Península Ibérica — estava de tal modo ameaçada que já existia menos de uma centena de exemplares a viver na natureza entre Portugal e Espanha. Durante vários anos, foi até o felino mais ameaçado de extinção em todo o mundo. Passados 45 anos daquela campanha, chegou uma boa notícia: o lince-ibérico deixou de estar classificado como espécie “em risco” e passou a estar apenas na classe “vulnerável”, o grau mais baixo de ameaça.

Lince ibérico passou de espécie “em risco” a “vulnerável”

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Neste momento, já vivem na Península Ibérica mais de dois mil linces-ibéricos, dos quais quase 300 em Portugal. O aumento resulta de décadas de esforços concertados entre Portugal e Espanha no sentido de preservar habitats, reproduzir linces em cativeiro e monitorizar os animais pelo território. Numa entrevista ao Observador a propósito da alteração no estatuto de conservação do lince-ibérico, o biólogo do ICNF João Alves, que coordena o Plano de Ação para a Conservação do Lince-Ibérico em Portugal, explica ao pormenor como têm funcionado os esforços de preservação do lince-ibérico, recorda a história que levou ao quase desaparecimento da espécie no século XX e mostra-se otimista com o avanço dos trabalhos. Daqui a dez anos, estima, o lince-ibérico já poderá estar mesmo livre de qualquer ameaça.

João Alves — que ainda se lembra de, em 1979, ter andado a colar cartazes em defesa do lince-ibérico na Faculdade de Ciências de Lisboa — tem uma longa carreira no ICNF. Depois de um longo período a trabalhar na área da botânica, João Alves dirige os trabalhos de preservação do lince-ibérico, que incluem um centro de reprodução em cativeiro em Silves, um trabalho tecnológico de monitorização dos linces através de coleiras digitais, a sinalização de estradas perigosas no Alentejo e Algarve, a recolha de dados genéticos dos linces, o tratamento médico-veterinário dos animais e até trabalhos de preservação do coelho-bravo, o principal alimento do lince-ibérico.

João Alves, técnico superior do ICNF, coordena os trabalhos de preservação do lince-ibérico em Portugal

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“Já estamos a recorrer à inteligência artificial para fazer a identificação dos linces”

O pretexto desta entrevista é uma notícia recente: o lince-ibérico deixou de estar classificado como “em perigo” e passou a estar classificado como “vulnerável”. O que é que isto significa?
Significa que a população de lince-ibérico a nível da Península atingiu os quantitativos tais que, de acordo com os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza, o enquadram no nível mais baixo de ameaça, que é “vulnerável”.

Continua a estar sob ameaça.
Continua a estar nos níveis de ameaça, mas o mais baixo, o menos pesado. Acima de “vulnerável” é “em perigo” — em que ele ainda está em Portugal. A Lista Vermelha dos Mamíferos, que foi editada o ano passado, reclassificou também o lince em Portugal de “em perigo crítico” para “em perigo”. A nível ibérico, foi em 2015 que ele deixou de estar “em perigo crítico” e passou a estar “em perigo”. Em 2023 fez essa descida a nível nacional. Agora, a nível ibérico passa de “em perigo” para “vulnerável”. Portanto, se a tendência de crescimento da população em liberdade no meio natural continuar como até aqui, estimamos que daqui a dez anos, provavelmente, nós conseguiremos descer o nível e o lince deixará de estar em qualquer dos níveis de ameaça — passa a estar em “não preocupante”. Mas tem de continuar a ser seguido, a ser monitorizado, para verificarmos e sabermos se, de um momento para o outro, ou por escassez de alimento, ou por uma doença qualquer que possa afetar os linces, ele de repente não começa novamente a diminuir e voltamos a ter o lince num dos níveis de ameaça.

Para colocar as coisas em perspetiva, os números dizem que em 2001 havia na Península Ibérica 62 espécimes adultos e em 2022 havia 642. Ou seja, dez vezes mais.
E o censo de 2023 — que é feito conjuntamente, por métodos comuns, para que os dados sejam comparáveis —, divulgado há cerca de um mês, identificou 2021 exemplares na Península, dos quais 291 em Portugal. Estamos perto dos 300 em Portugal. Daí que haja uma diferença no nível de ameaça. O elemento-chave são as fêmeas reprodutoras. Atualmente, a monitorização é feita essencialmente com recurso a foto-armadilhagem, portanto, câmaras fotográficas que são colocadas no terreno em locais pré-selecionados pelos técnicos, os meus colegas que fazem o seguimento da monitorização. Em locais que eles sabem que são locais de alimentação, pontos de água, cruzamentos de pequenos trilhos, locais onde há muitas latrinas de coelhos — e, se houver muito coelho numa zona onde há lince, é certo que os linces passam muito por ali. Colocam as câmaras presas a rochas ou a troncos de árvores e as câmaras disparam cada vez que passa um animal. Muitas vezes apanha linces, outras vezes apanha javalis, raposas, sacarrabos ou outra coisa qualquer. Sempre que é lince, ele é quantificado. Mais recentemente, tem-se estado a utilizar a técnica de câmaras duplas, viradas uma para a outra, para que, quando tira a fotografia, tire dos dois flancos do animal. A pelagem, a pigmentação dos pelos, não é igual de um lince para o outro — e já se está a recorrer à inteligência artificial para fazer a identificação dos próprios indivíduos, desde que haja fotografias dos dois flancos.

Portanto, o censo é feito assim?
É feito por fotografias de foto-armadilhagem.

O lince-ibérico chegou a ser o felino mais ameaçado do mundo

Então, falamos de uma aproximação, inevitavelmente.
Aquilo que nós sabemos são os que estão confirmados. Na natureza, a grande probabilidade é que existam mais do que estes 2021 na Península do que os 291 em Portugal. Mas nós não podemos fazer extrapolações por exagero. Portanto, estes estão confirmados; são números seguros, mínimos. Desejavelmente, haverá mais. Há mais, de certeza. Animais que se dispersam, nós não os conseguimos seguir e monitorizar. Portanto, isto é o mínimo dos mínimos.

Em Portugal, não há quem não conheça o lince-ibérico como o grande símbolo de uma espécie ameaçada. Diz-se que terá sido o felino mais em risco no mundo.
Foi o felino mais ameaçado do mundo, quando estava em perigo crítico de extinção. Atualmente, já não será. Mas continua a estar ameaçado. Talvez em Portugal, neste momento, haja um outro felino mais ameaçado, o gato-bravo. O gato-bravo tem um outro fator de ameaça, que é o cruzamento com os gatos-domésticos — a hibridização. Facilmente se cruzam com um gato-doméstico e os descendentes degeneram. Os descendentes competem pelo espaço e pela alimentação. Para as listas vermelhas, que são feitas de X em X tempo, fazemos a mesma técnica de foto-armadilhagem — mas, aí, abrangente, e não só direcionada para o lince — e temos vindo a detetar cada vez menos gatos-bravos. Talvez a nível ibérico, e a nível de Portugal pelo menos, esteja mais ameaçado neste momento do que o lince-ibérico.

Pode ajudar-nos a fazer uma história do lince? Como é que se chegou ao ponto de termos uma espécie tão ameaçada?
O grande fator foram doenças contagiosas que dizimaram a população presa — o coelho-bravo. O lince especializou-se na região do Mediterrâneo, na Península Ibérica. A espécie Lynx pardinus é endémica da Península Ibérica. Há um lince-europeu mais nos países nórdicos e no centro europeu, há um lince diferente no Canadá. São espécies aparentadas, mas diferentes. O lince-ibérico é ligeiramente mais pequeno — e o canadiano é ainda mais pequeno do que o nosso. Acantonou-se na Península Ibérica, fez-se a especiação e tornou-se uma espécie distinta da outra do centro da Europa. O coelho-bravo, através de mexidas de coelhos de uns lados para os outros, foi afetado pela mixomatose. Foi a grande doença que dizimou a população de coelho-bravo. A alimentação preferencial do lince, a dieta dele, anda ali nos 85% de coelho-bravo. Quando o alimento praticamente desapareceu, o lince ressentiu-se, especialmente a nível da reprodução. O primeiro aspeto que é afetado quando as fêmeas não estão bem alimentadas é que ou não se reproduzem ou têm uma ninhada de uma cria.

Isto aconteceu quando, mais ou menos?
Na década de 70/80 até ao final do século XX. Depois, quando a mixomatose começou a ter menos incidência e os coelhos-bravos começaram a ganhar resistência naturalmente, surge a febre hemorrágica viral — outra doença, de um vírus, que voltou a dizimar o coelho-bravo. Portanto, as duas patologias que afetaram o coelho-bravo, em sequência, foram os fatores críticos mais incidentes sobre o lince. Depois, a alteração de habitat, grandes extensões cultivadas, grandes extensões florestadas com espécies florestais diversas… A alteração e a destruição do habitat levou também a que o lince, além de ter pouco alimento, tivesse menos espaço para poder sobreviver, para se poder reproduzir, para poder fazer o seu ciclo de vida normal.

“Em Espanha, um caçador que levasse às autoridades um lince abatido recebia um prémio”

Podemos identificar a ação humana na origem desses fatores? Na alteração dos habitats está.
A destruição dos habitats é por ação humana, obviamente. O homem precisa de matéria-prima para fazer as suas atividades, precisa de alimento — portanto, a agricultura e a parte florestal foram os fatores por ação humana. Depois, houve aqui um outro aspeto. Até à década de 50/60, o lince, como competia com uma espécie que nas zonas rurais era uma fonte de proteína para as populações, era considerado uma espécie nociva. Em Portugal não temos referência disso, mas em Espanha um caçador que levasse às autoridades um lince abatido recebia um prémio. Portanto, ele era objetivamente caçado, porque competia com o coelho-bravo, que era uma fonte alimentar que as populações, no meio rural, tinham para sobreviver. Depois, outro fator que também causou grande mortalidade foi a expansão das vias de comunicação. Ainda atualmente, o principal fator de mortalidade são os atropelamentos nas vias de comunicação. Nas estradas, nós conseguimos saber de qualquer lince que é atropelado. Normalmente, não é o condutor que o atropela que dá a notícia, é outro que passa depois e que vê o lince ferido ou morto na beira da estrada e chama as autoridades. Sabemos que eles morrem por atropelamento e, atualmente, em Portugal devemos estar por volta de 35 mortos por atropelamento desde que se iniciou a reintrodução em 2014.

"Se a tendência de crescimento da população em liberdade no meio natural continuar como até aqui, estimamos que daqui a dez anos, provavelmente, nós conseguiremos descer o nível e o lince deixará de estar em qualquer dos níveis de ameaça."

As estradas cortam os habitats…
Cortam, fragmentam os habitats. Um dos critérios que uma área de reintrodução tem de respeitar é não ser muito fragmentada por muitas vias de comunicação — e vias de comunicação com grandes densidades de tráfego e grandes velocidades. Em Portugal, aquela área que tradicionalmente as pessoas conhecem como tendo sido a última área onde havia linces é a Malcata. Foi a campanha que, ainda antes das redes sociais, no final da década de 1970, levou à classificou da Reserva Natural da Serra da Malcata: “Salvemos o Lince e a Serra da Malcata.” Foi uma campanha que foi promovida pela Liga para a Proteção da Natureza — temos de fazer justiça — e por alguns professores da Universidade de Lisboa.

Essa campanha é mítica, é muito conhecida em Portugal.
É mítica, atingiu dezenas de milhares de pessoas. Foi subscrita e assinada, a televisão e os jornais passavam o póster, divulgavam.

Numa altura em que ainda não havia esta consciência contemporânea para as alterações climáticas, o que é que acha que esteve na origem de uma consciencialização para um tema da natureza?
A perceção de que o lince estava, de facto, a rarear muito. Houve uma outra situação: na serra da Malcata, uma grande parte da área da reserva, que na altura ainda não era reserva, foi adquirida por uma empresa de pasta de papel. Iniciaram-se grandes trabalhos de florestação. Esses trabalhos foram notórios e as ONGs — é esse o seu papel — aperceberam-se e, de facto, foi o Jorge Palmeirim e o Luís Palma, que na altura eram dirigentes da Liga, apoiados por professores universitários para dar outro peso, que lançaram essa campanha.

Tem memória dessa campanha?
Tenho. Na altura, estava a terminar o meu curso de Biologia e também era sócio da Liga. Lembro-me perfeitamente de ter esse póster e de na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa haver pósteres colados em todas as paredes.

Envolveu-se?
Tive algum envolvimento, não muito. Na altura, eu estava a terminar Biologia e estava muito vocacionado mais para a área da Botânica. Aliás, só em 2013 é que mudei da parte da Botânica para a Zoologia, para o lince. Na altura, participei. Já não me recordo bem, mas posso ter até ajudado a colar um ou outro póster lá na faculdade. De facto, foi uma campanha que teve grande visibilidade — e sem recurso às redes sociais que atualmente existem foi amplamente divulgada e teve uma grande adesão. E levou à classificação de uma área como reserva natural, em 1982, salvo erro.

É essa campanha que está na origem de mais de 40 anos de trabalho?
É o primeiro sinal visível, evidente, de envolvimento da comunidade científica e da sociedade organizada através da Liga, e depois passou para a comunicação social. Os jornalistas e os órgãos de comunicação social adotaram-na, ampliaram-na e, a pouco e pouco, o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza — era assim que se chamava na altura o antecedente do ICN — foi desenvolvendo trabalhos. Houve vários congressos de conservação da natureza que tinham o lince sempre como tema principal. Depois, outros colegas meus — a Helena Ceia, a Margarida Fernandes, o Luís Roma Castro — foram fazendo trabalhos de final de curso, teses de licenciaturas, de monitorização de censos em vários locais.

E foi nessa altura que ele chegou a estar em perigo crítico de extinção?
Foi no final do século XX. Foi rareando, escasseando, e os censos que iam sendo feitos detetavam cada vez menos exemplares e cada vez menos vestígios. Muitas vezes, as fontes de informação eram abordar as populações, caçadores, pessoas que trabalhavam na agricultura, e perguntar: “Os senhores costumam ver linces?” Cada vez, o número de pessoas que tinha memória de ver linces era menor. Há pouco tempo, há cerca de uns três ou quatro anos, a câmara de Silves lançou um projeto — cuja ideia começou em 2014, quando se iniciou a reintrodução — de fazer um centro de interpretação numa estrutura que tinham, abandonada, na base do castelo de Silves. Nessa altura, começou-se a falar com técnicos da câmara. E houve um técnico da câmara, dos seus 30 e tal anos, que nos disse: “O meu avô criou um lince.” Apanhou um lince bebé, na zona de Monchique, e ele criou-o como se fosse um gato! Digamos, domesticou-o. O avô de uma pessoa com 30 anos, há cinco anos, ainda podia ser vivo. A última zona onde foram feitos censos foi na zona de Monchique/Caldeirão, no Algarve. Se calhar, acabaram por existir ainda alguns linces isolados, sem reprodução, na zona de Odemira, Serra do Cercal, Monchique e Caldeirão.

Tal como esse avô, há registos históricos da presença do lince em Portugal?
Há. Outro dos critérios para um território ser classificado como área de reintrodução é a aceitação social. Tem de se falar com os proprietários, com os agricultores, com os gestores das zonas de caça e os autarcas, para saber se aceitam a reintrodução. A reintrodução, para poder ser feita em 2014/2015, teve 16 convénios assinados entre o ICNB, na altura, e os proprietários ou gestores. Um dos requisitos para poder ser aceite como área de reintrodução era ter pelo menos 10 mil hectares contratualizados, com assinaturas de convénios, para aceitação da libertação de linces ou de presença nos seus territórios.

O lince-ibérico é uma espécie endémica da Península Ibérica

Havia algum risco?
O compromisso que eles têm é não abaterem linces de modo voluntário. Não colocarem armadilhas, venenos ou outro tipo de laços que possam capturar acidentalmente um lince. Têm de fazer práticas de gestão da fauna que não sejam lesivas para o lince. Quando há uma atividade de caça, podem continuar a caçar, mas só dão um tiro quando têm a certeza de que estão a abater um javali, um gamo, um coelho ou outra coisa qualquer. Na dúvida, não disparam. Se for um lince, muito menos. Este tipo de comportamentos e atitudes é o adequado para quem faz a atividade cinegética. Em muitas zonas de Serpa e Mértola, praticamente a única atividade económica que dá sustentabilidade àqueles territórios é a caça.

“Um abate deliberado de um lince é crime”

E, relativamente ao lince, há uma aceitação grande da parte das populações?
Há uma aceitação. Os 16 convénios que foram assinados foram todos com proprietários e gestores de zonas de caça. E eles favorecem, precisamente, o alimento para o lince.

Daí a minha questão: há uma certa identificação do lince-ibérico como uma espécie simbólica do país. Há registos históricos da sua presença, de interação com as comunidades?
Sem dúvida. Temos de ter a noção de porque é que aconteceram, nas décadas de 30/40/50, fluxos migratórios brutais de portugueses para França, para o Brasil e depois um bocadinho mais para a Alemanha. As populações rurais não tinham maneira de subsistir. As pessoas passavam fome. Especialmente, fome de proteína. O Estado Novo começou uma campanha de plantação de pinhais — na altura eram pinhais, e não eucaliptos — nos baldios. As populações das zonas serranas, das zonas rurais do interior, dependem dos baldios para pastorear o gado, sejam ovelhas ou cabras. Não estamos a falar em vacas — as vacas são cá em baixo, nas zonas de várzeas, porque precisam de pasto de grande qualidade, enquanto as ovelhas não são tão exigentes e as cabras muito menos. Onde é que essas populações conseguiam pôr as ovelhas ou as cabras a pastar? Nos baldios. O Estado Novo, na década de 30/40, fez plantações extensivas de pinhais nos baldios e proibiu as populações de levarem os rebanhos a pastar nos baldios. As populações tinham as ovelhas ou as cabras como a sua reserva: quando a parte agrícola não dava nada, iam comprar milho, trigo ou centeio nas feiras vendendo uma ovelha ou uma cabra. Se não podiam ter os rebanhos a pastorear nos baldios, o que é que aconteceu? Os homens migraram para encontrar uma fonte de rendimento. Isto, provavelmente, recuando ao início do século XX, também terá sido um dos fatores que terá levado à redução de zonas de pasto, que eram boas para as ovelhas, mas também eram boas para os coelhos. Havendo pasto, sejam prados naturais sejam prados melhorados, as ovelhas comem umas coisas e os coelhos comem outras. E conseguem sobreviver.

Ou seja, a própria migração humana terá contribuído, pelo menos parcialmente, para a ameaça ao lince?
Sem dúvida. Portanto, em Portugal, os caçadores na altura — porque dependiam, como um aporte proteico, do coelho —, se viam um lince, se calhar também o abatiam. Nós temos fotografias de caçadores da zona da Malcata e não só com um pau às costas e um ou dois linces pendurados. As peles, que eram valiosas e ainda são, eram mais um fator. Alguém lhes dava uma quantia por aquela pele.

A questão das peles ainda é um perigo?
Matar um lince é crime.

Sim, mas do ponto de vista clandestino…
Não quer dizer que num sítio muito ermo… Mas não temos registos, nas últimas décadas, de haver um abate de lince para vender a pele. Aliás, se nós detetarmos, por exemplo, um lince embalsamado algures numa aldeia qualquer, ele é apreendido. As pessoas não podem ter, nem linces, nem peles e animais embalsamados. Embora isso cada vez seja mais raro. É uma atividade proibida, a espécie é estritamente protegida. Um abate deliberado de um lince é crime.

Ajude-nos a compreender um pouco melhor o que é feito hoje para preservar a espécie. Há pouco, falava de como em 2014 se começou a reintroduzir o lince.
Vou recuar um bocadinho. O primeiro documento que existe entre Portugal e Espanha data de 2004. Foi com base nos censos feitos na passagem do século — 1998, 1999 e 2000 — que em Portugal e Espanha se chegou à conclusão de que o lince estava criticamente em perigo. Então, numa cimeira ibérica, que já na altura se estavam a fazer anualmente, em Santiago de Compostela, em 2004, os dois governos reconheceram que tinham de fazer algo para salvar o lince e a águia-imperial. São as duas espécies que estão referidas nas conclusões dessa cimeira. A partir daí, as duas administrações começaram a trabalhar em conjunto: o ICN do lado português, as autonomias em Espanha e também o governo central de Madrid. Portugal comprometeu-se a, aproveitando a construção da barragem de Odelouca, ter um centro de reprodução. Porque, em 2005, chegou-se à conclusão de que se tinha de reproduzir em cativeiro. Os níveis já eram tão baixos, existiam menos de 100 exemplares na natureza em Espanha, só na Andaluzia e, portanto, a espécie só conseguiria ser salva reproduzindo-se em cativeiro.

"Os níveis já eram tão baixos, existiam menos de 100 exemplares na natureza em Espanha, só na Andaluzia e, portanto, a espécie só conseguiria ser salva reproduzindo-se em cativeiro."

Nessa altura, estava em perigo crítico de extinção.
Sim. E, então, Portugal aprovou o primeiro plano de ação, o PACLIP [Plano de Ação para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal], em 2008, que incluiu a reprodução em cativeiro, medidas de gestão de habitat, sensibilização, uma série de cinco eixos estratégicos. Com base nisso, Portugal e Espanha assinaram, em 2007, um acordo com base no qual Portugal iria participar no programa de reprodução em cativeiro. Espanha já tinha dois centros de reprodução: o primeiro em Doñana, o “El Acebuche”, gerido pelo governo central, e depois a Andaluzia criou o centro de reprodução de La Olivilla, também na Andaluzia. Portugal comprometeu-se, em 2007, a integrar o plano de reprodução em cativeiro espanhol. Aproveitando as medidas de sobrecompensação da barragem de Odelouca, cuja albufeira abrangia a Serra de Monchique e parte da Serra do Caldeirão, que eram áreas históricas de ocorrência de lince, construiu-se o centro de reprodução, que recebeu a primeira fêmea em 2009. O centro foi inaugurado em maio de 2009. A fêmea, a Azahar, chegou em outubro desse ano. Depois, vieram logo outros exemplares.

Vieram de Espanha?
Vieram de Espanha, da Andaluzia. Era o único sítio de onde eles vinham. Já em 2009, em julho, foi assinado um outro acordo, a partir do qual Espanha se compromete a ceder 17 linces a Portugal. Esse acordo foi depositado nas Nações Unidas.

É um empréstimo, digamos assim?
É um empréstimo.

Em Silves, o ICNF tem estruturas para reprodução em cativeiro, treino e recuperação do lince-ibérico

Isso significa o quê? Que temos de devolver 17 linces?
Não. Os linces são é geridos em conjunto. De tal maneira que os progenitores, neste momento, são de Portugal e de Espanha — e são cruzados frequentemente. Nós, nos centros de reprodução, escolhemos os linces o menos aparentados possível. Uma vez que, no pool inicial, eram todos parentes uns dos outros, eram todos primos uns dos outros, descendentes dos mesmos, havia um elevado nível de consanguinidade. Portanto, nos centros de reprodução, conseguimos escolher o macho e a fêmea que acasalamos. Mas, a partir de determinado momento, aquela parelha já começa a estar excessivamente representada, já deu muita descendência. Então, ou o macho ou a fêmea são trocados com outro centro de reprodução. Mandamos uma fêmea para um lado, um macho para o outro, e de um dos centros vem outro macho e outra fêmea, para acasalar e para voltar a haver baralhação genética. Para voltarmos a reduzir a consanguinidade. Os progenitores são geridos em conjunto. De há três anos para cá até são geridos por um português, o diretor técnico do centro de Silves, o Dr. Rodrigo Serra.

Neste momento, não se pode dizer que existam linces portugueses e linces espanhóis. Há linces-ibéricos, que estão integrados num programa de reprodução em cativeiro ibérico, no qual Portugal participa com um centro e Espanha tem mais três. O primeiro foi em Doñana, o segundo em La Olivilla, o terceiro foi o CNRLI [Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico] em Silves e o quarto é na Extremadura espanhola, em Zarza de Granadilla. É o mais recente de todos. Os linces são todos originários da população de Doñana e da Serra Morena, ambas na Andaluzia. Eles estavam acantonados no sul de Espanha e eram menos de 100 exemplares, entre machos, fêmeas e juvenis na altura. Na natureza, nós não os conseguimos controlar; eles acasalam como muito bem entendem. Apesar de haver espécies em que os progenitores não acasalam com os filhos, no caso dos linces a coisa infelizmente não acontece assim. Se não há outros machos ou outras fêmeas, eles acasalam irmãos com irmãs, pais com filhas, e portanto na natureza a consanguinidade volta a aumentar. Daí que, neste momento, nós estejamos muito preocupados em fazer translocações: se houver um macho que esteja excessivamente representado, com muitos descendentes num determinado núcleo populacional — e isto é especialmente evidente em pequenos núcleos, onde não há muitos exemplares —, tentamos capturar esse macho e translocá-lo para outra população, e trazer outro macho de outra zona para ali, para voltar a baralhar a genético.

E isso é pacífico?
É pacífico. Nós temos vários protocolos técnicos. Um território, para ser selecionado como área de reintrodução, tem de, em primeiro lugar, ter coelho em quantidade suficiente. Segundo, tem de ter extensão de habitat em termos quantitativos e qualitativos adequado para lince. Terceiro, esse habitat não pode estar muito fragmentado pelas tais vias de comunicação. Quarto, não pode ter doenças na região que possam afetar o lince. Quinto, aceitação social — falar com os autarcas, com os proprietários e ter aceitação. O último protocolo que foi agora aprovado foi o da translocação. Quando é que é necessário fazer a translocação e como é que se faz a translocação. Ou seja, temos de ter a garantia de que, ao retirarmos um exemplar de um pequeno núcleo, não vamos pôr a sustentabilidade desse núcleo em causa. Tem de atingir um determinado número de efetivos mínimo para podermos, com segurança, retirar dali um macho — embora depois se traga outro para ali — e libertá-lo noutro local. E qual a idade ideal. Eles normalmente tornam-se adultos com dois anos de idade. Se calhar será com cinco, seis, sete anos.

“Uma fêmea morreu com 20 anos. Na natureza, não ultrapassam os 10”

Qual é a expectativa de vida de um lince-ibérico?
Na natureza, não vivem mais do que dez anos. A fêmea Azahar, a fundadora do CNRLI, chegou em outubro de 2009. Em 2014, já não tinha capacidade de reprodução. Ela e o macho, o Gama, foram translocados para o Jardim Zoológico de Lisboa, porque há uma grande apetência das pessoas para visitar e ver linces. Os aposentados, como lhes chamamos, tendencialmente tentamos levá-los para jardins zoológicos ou parques zoológicos. O Jardim Zoológico de Lisboa teve interesse, criou um espaço específico com características adequadas — e a Azahar e o Gama foram para lá. A Azahar morreu o ano passado, de velhice, com 19 anos. Viveu 19 anos. Há uma fêmea que morreu, salvo erro, o ano passado em Espanha com 20 anos. Terá sido aquela que mais descendência deu, confirmada, para a reprodução do lince. Mas elas são bem tratadas, bem alimentadas, qualquer problema de doença que tenham são tratadas por veterinários, todos os anos se lhes tira sangue e são feitas análises, são-lhes dados suplementos alimentares se há um problema qualquer… Portanto, nos centros de reprodução podem atingir esta idade. Na natureza, não ultrapassam os dez anos.

Depois de anos classificado como "em perigo", o lince-ibérico é agora apenas "vulnerável"

Portanto, os linces que existem atualmente na natureza — os tais cerca de 300 que existem em Portugal — têm proveniência mista. Alguns vêm dos centros de reprodução, outros reproduziram-se na natureza?
A maior parte já se reproduziu na natureza. Dos 300, foram libertados cerca de 60. O resto já nasceu na natureza. Dos 60, alguns já morreram ou desapareceram.

E o processo de reprodução em cativeiro, como é que é feito? São libertados com que idade, com que critérios?
São libertados com um ano de idade. Às vezes, com onze meses. Normalmente, o cio começa na segunda quinzena de dezembro, o mês mais ativo de cio é janeiro. Acasalam em janeiro, fevereiro. São 60 dias de gestação, começam a nascer consoante acasalam, março, abril. Depois, muitas vezes, são libertados em fevereiro do ano seguinte, quando ainda não chegaram a um ano. Mas já estão perfeitamente autónomos, já são capazes de sobreviver. Aprendem com as mães a caçar nos cercados, são alimentados com coelho vivo. Tem de ser, para conseguirem caçar. Há um esforço brutal de não associar tratador a alimento porque, senão, quando eles são libertados, vão à procura de pessoas na expectativa de lhes darem de comer. Como é que isto se consegue? Todos os cercados de reprodução têm um sistema de túneis e uma abertura no exterior. O tratador leva o coelho, abre uma tampa e mete lá o coelho. O coelho vai pelo seu pé, através, como eu costumo chamar, do Metropolitano de Silves. Tem várias aberturas dentro do cercado, que tem à volta de 800 metros quadrados. Às vezes, o coelho só sai no dia seguinte. Fica lá escondido, como se fosse uma toca natural, e só no dia seguinte, quando tem sede ou quando tem fome, é que sai da toca, sai dos sistema de túneis, para ir à procura de água ou alimento. E é aí que o lince lhe salta em cima, o abate e o come. É através deste processo que as mães ensinam as crias a caçar.

A propriedade do CNRLI é das Águas do Algarve. Todos os edifícios são das Águas do Algarve, porque eles é que tiveram de construir como medida de sobrecompensação da barragem de Odelouca. Em 2008 fizeram um contrato de comodato com o ICNB. Adquiriram tudo o que era necessário para ter os linces e para ter lá pessoas a trabalhar. Temos um edifício para acolher voluntários, investigadores ou os espanhóis quando vêm cá buscar linces, com camaratas, cozinhas e casas-de-banho. Os equipamentos na clínica, que tem raio-x, equipamentos clínicos para fazer exames aos linces, para fazer cirurgias. Tudo pronto a usar. Em 2018/2019, nós, ICNF, fizemos a zona de expansão, que designámos Complexo de Treino e Recuperação de Lince-Ibérico. Dentro da Herdade das Santinhas, que são 16 hectares, 200 ou 300 metros afastado, um novo cercado grande, dois cercados de treino maiores, com mil e poucos metros quadrados cada um, e três cercados pequenos de recuperação. Os de treino são para, quando os tratadores acham que as crias já são totalmente autónomas, retirarem-nas do pé da mãe e os colocarem lá. Conseguem ver se, sozinhas, sem a mãe, já conseguem caçar os coelhos. Se não conseguirem, não vale a pena libertá-los.

Voltam para o pé da mãe?
Se não conseguirem, voltam para o pé das mães, para aprender mais algum tempo. Normalmente, isto é feito um mês antes da libertação. Os cercados de recuperação são para, se houver um animal capturado na natureza ferido ou doente, podermos colocá-los lá e não os misturar com os progenitores e com as crias. Os que vêm da natureza podem transportar um agente infeccioso qualquer, uma bactéria ou um vírus, e contaminar os outros. Portanto, é suficientemente afastado e tem um módulo clínico para se tiverem de ser tratados. Tem acessos separados para os riscos de contágio serem inexistentes ou mínimos. Essas crias são colocadas na zona de treino. Se os tratadores e os veterinários se apercebem de que há determinadas crias que têm alguma afinidade com as pessoas, provocam-lhes estímulos antagónicos, para lhes provocar medo das pessoas. Entra um tratador, equipado com um fato especial e provoca-lhes ruídos, barulhos com um pau, para eles criarem medo e perderem alguma afinidade que possam ter criado. Os tratadores entram o mínimo possível dentro dos cercados: a alimentação é dada exteriormente e eles só entram para limpar os bebedouros ou para pôr uma jaula para fazer uma captura, para irem fazer check-ups

Para a libertação?
Para a libertação e também ao fim de três meses. Quando atingem a idade de três meses, as crias são todas capturadas para lhes tirar sangue, para fazer o perfil genético. Manda-se para Espanha. Em Espanha existe o centro de identificação de todos os linces. Todos os linces dos centros de reprodução e aqueles que já foram capturados na natureza para fazer a avaliação sanitária, nós sabemos o seu perfil genético e a base de dados está em Doñana.

“O lince é o predador de topo, equivalente ao leão em África, ao tigre na Ásia”

E quando eles são libertados, são monitorizados de que forma? Por GPS?
Os que são libertados levam todos coleiras emissoras. Enquanto a bateria funciona, nós sabemos por onde é que eles andam. Quando a bateria deixa de ter energia e eles deixam de emitir sinal, é através das câmaras de foto-armadilhagem.

Um lince a ser tratado pelos técnicos em Silves
Todos os linces que passam pelas mãos dos técnicos recebem uma coleira
As coleiras permitem monitorizar os movimentos do lince depois da libertação
O ICNF tem tentado desenvolver novas tecnologias que permitam às coleiras funcionar durante mais tempo

O que é que o lince-ibérico tem de especial, de diferente de outros felinos?
É um predador muito especializado. Na zona mediterrânica, nós temos dois predadores de topo terrestres: o lobo, na zona mais a norte, e o lince, na zona mais a sul. Depois, temos outros predadores, mas são aves, como a águia-imperial, a águia-de-bonelli e a águia-real. De facto, é o predador de topo, equivalente ao leão em África, ao tigre na Ásia. No ecossistema mediterrânico, nós temos dois predadores de topo, o lobo e o lince. E as áreas deles são normalmente disjuntas. O lobo forma alcateias, o lince não. O macho fecunda a fêmea e vai-se embora — e a fêmea é que trata das crias sozinha. Tanto que nos centros de reprodução, já se começou a ensaiar manter o macho por perto, mas só se faz isso quando temos a segurança de ser um macho muito pacífico, e as coisas têm corrido bem. Mas, até há pouco tempo, assim que a cria estava grávida, o macho era separado, porque não queríamos correr o risco de o macho molestar as crias.

Há aqui fatores-chave. A articulação forte ao nível dos governos de Portugal e de Espanha; o financiamento comunitário do programa LIFE, que permitiu financiar e apoiar os trabalhos in situ; uma estreita colaboração ao nível técnico; e um envolvimento muito próximo das populações e dos autarcas locais. Só este trabalho coordenado é que levou  a este sucesso. Como costumo dizer, isto é uma maratona, não é uma corrida de velocidade. É uma corrida de resistência e de persistência. E por estafetas. Uns começaram a corrida há 40 anos, outros estão no meio da maratona e há de haver outros que a terminarão, quando o lince chegar ao estado de conservação favorável. Foi determinado que, quando se tiver entre 750 e 900 fêmeas reprodutoras na Península Ibérica, se atingiu a sustentabilidade da população de novo.

Neste momento, temos quantas?
Temos à volta de 400 e tal fêmeas reprodutoras. Portanto, estimamos que em 2035/2040 estejamos com o lince fora do estatuto “vulnerável” e estejamos com o estado de conservação favorável. Depois, é preciso fazer uma gestão genética, uma gestão qualitativa. Continuar a fazer monitorização para perceber se, de um momento para o outro, não há um declínio abrupto. Se houver esse declínio, perceber porquê: é porque o coelho desapareceu de vez, ou reduziu drasticamente? Ou é porque há uma patologia? Por isso é que nós, todos os anos, capturamos, entre setembro e dezembro, no mínimo 10% da população. No mínimo, 25, 30 exemplares. São pesados, analisados em termos veterinários, tira-se sangue, vacina-se, manda-se o sangue para o laboratório para saber se tem alguma patologia ou agente infeccioso que possa ser altamente contagioso e conduzir à morte, e mostra-se uma amostra de sangue para Sevilha, para afinar o ADN. A maior parte das capturas são juvenis que têm dois anos, um ano e picos, que nasceram no ano anterior. Esses são os mais curiosos e são os que mais facilmente se deixam apanhar nas caixas-armadilha. Isto permite saber o estado sanitário da população. Esses animais que são capturados para avaliação sanitária também levam coleira.

“Usamos um sistema que avisa o condutor, quando o lince se aproxima da estrada”

Além deste processo de reintrodução da espécie e de reprodução em cativeiro, que outros projetos é que o ICNF tem direcionados especialmente para a proteção do lince-ibérico?
O coelho-bravo. Há um outro projeto, o Iberconejo, liderado por uma entidade espanhola, a WWF Espanha, no qual o ICNF participa, além da DGAV [Direção-Geral de Alimentação e Veterinária], do INIAV [Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária], do CIBIO [Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos], da ANPC [Associação Nacional de Produtores de Caça] e muitas federações espanholas. É um projeto que visa especificamente a questão do coelho-bravo. Como é que Portugal e Espanha devem atuar, de uma forma concertada, articulada, utilizando metodologias comparáveis e comuns? Atenção que o coelho-bravo, em determinadas zonas de Espanha, é uma praga. Dá cabo das culturas. Há duas subespécies — uma mais no centro/norte da Península, outra na zona mais a sul. A zona onde há lince, mais a sul, é mais só de uma subespécie. E essa subespécie é a mais suscetível, à febre hemorrágica viral e, se calhar, à mixomatose. O Iberconejo é para criar uma estrutura que vai sendo presidida, alternadamente, por Portugal e Espanha, que definirá todas as atuações incidentes sobre o coelho-bravo. Periodicamente, fazem-se censos para se saber como está a população de coelho-bravo. O CIBIO, da Universidade do Porto, é provavelmente a entidade, a nível da Península, que mais sabe sobre coelho-bravo e é parceiro desse projeto, também.

E relativamente à população? Têm uma aplicação para telemóveis que permite, por GPS, impedir atropelamentos de linces, correto?
Nós usamos cartões de telemóvel colocados nas coleiras. Até ao ano passado, usávamos um sinal de telemóvel, um sinal GSM, que era recolhido pelas antenas dos telemóveis. No primeiro ano, eles emitiam um sinal de duas em duas horas e a bateria acabava. Não era por emitir o sinal, mas era porque os linces andam em zonas de muito má cobertura de rede. Portanto, aquilo estava sempre a tentar fazer ligações e consumia a bateria rapidamente. No segundo ano, já reprogramámos para fazer quatro vezes em 24 horas. No terceiro ano, começámos a programar para emitir só dois sinais a cada 24 horas. Isso dá um intervalo muito grande entre cada posição. Entretanto, os meus colegas que fazem a monitorização aperceberam-se de que existe agora um outro sistema, que é o sistema LORA, que é usado nas frotas automóveis, pelas empresas transportadoras, para otimizar os percursos. Há uma rede de antenas própria do sistema LORA, que, como tem de saber ao minuto onde estão as viaturas, permitiria também saber onde é que os linces estavam.

"Trouxemos de volta, de facto, uma espécie que, em termos de reprodução, em termos de populações, não tínhamos já em Portugal na passagem do século XX para o século XXI."

Mas como é que isso funciona, sem a bateria?
Começámos a pôr emissores LORA, em vez do GSM. E conseguimos adquirir antenas. Colocámos uma em Alcaria Ruiva, na zona onde estão os linces, ali na zona de Serpa, Mértola. Agora precisávamos de uma na zona de Alcoutim, vamos ver se conseguimos colocar mais uma antena.

Mas e a bateria?
A bateria dura mais tempo, porque o sinal consome muito menos bateria. É muito menos exigente em termos energéticos. Essa é a segunda grande vantagem. A bateria vai durar mais tempo. Como a atual causa de mortalidade mais conhecida é o atropelamento, a Infraestruturas de Portugal pensou: o Waze dá informações aos condutores sobre várias coisas — uma brigada da GNR, um radar. Porque não conseguir fazer o cruzamento? Falou-se com o Waze, falou-se com a LORA, chamaram-se os dois operadores e puseram os sinais LORA na aplicação Waze. Portanto, como já temos cerca de 25 linces equipados com emissores LORA nas coleiras, o sistema avisa o condutor, quando o lince se aproxima daquela estrada.

E tem corrido bem? Conseguem monitorizar se tem havido alertas?
Tem corrido bem, tem havido alertas. O que é que é aqui o óbice? Ainda temos muito poucos linces equipados com esses emissores. Estamos, a pouco e pouco, a substituir as coleiras. Os que forem libertados novamente já vão com os emissores LORA. Agora, estamos a tentar identificar troços de estrada onde tenham já ocorrido alguns atropelamentos e haja uma população de linces nas imediações. Então, o condutor não recebe um sinal a dizer “há um lince na proximidade”, recebe um sinal a dizer “vai entrar num troço de estrada em que, durante cinco quilómetros, há uma elevada probabilidade de se cruzar com um lince”. Isso fará com que o condutor possa reduzir um bocadinho a velocidade e fique logo mais atento.

Estamos a falar de que estradas, principalmente?
Aquela em que ultimamente tem havido mais é o IC27, que vai de Mértola até Vila Real de Santo António. Ou seja, a população de linces que se expandiu desde Mértola para Alcoutim. Atravessou a ribeira do Vascão e fixou-se ali em duas zonas de caça que tinham uma boa população de coelho-bravo. Eram bem geridas, com muito coelho-bravo e eles, como tinham alimento, ficaram por ali e começaram a reproduzir-se. Como o IC27, até àquela plataforma mais plana antes de descer para o Vascão, quando se vem de Vila Real de Santo António para norte, tem perfil de autoestrada…

O biólogo João Alves acredita que dentro de uma década o lince-ibérico poderá estar livre de ameaça

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

As pessoas andam bastante rápido.
E, se avistam um lince, não há hipótese nem de travar nem de desviar. É pancada pela certa.

O que também é perigoso para a pessoa…
É perigoso para a pessoa. O que é que a Infraestruturas de Portugal fez? No troço mais crítico, colocou um painel de grande dimensão de um lado e outro do outro, nos dois sentidos, a dizer “atenção, vai atravessar uma zona de linces”. Puseram também os sinais triangulares. Se a pessoa quiserem seguir alguma coisa… Esses painéis já existiam nas nacionais que ligam a Mértola. Na N122, que vem de Beja; na N123, que vem de Castro Verde; e na N267, que vem de Almodôvar. Era precisamente na N122, que é uma estrada sinuosa, antiga, mas que tem uma reta — chamada reta da Cela —, com cerca de um quilómetro e meio em linha reta, em que os condutores aproveitavam para encurtar o tempo de chegada a Mértola. Também é uma zona de caça de grande dimensão, e a população de linces que começou a ser libertada em São João de Caldeireiros expandiu-se e fixou-se ali naquela zona de caça, na Herdade da Cela. Atravessavam a estrada com muita frequência e morreram lá três atropelados. O que é que a Infraestruturas de Portugal fez? A primeira coisa foi o limite de velocidade: 50 km/h. Colocou os triângulos com o símbolo do lince, painéis de grande dimensão a avisar, sensores de velocidade instantânea e, por fim, aquilo que foi de facto efetivo foi vedações de um lado e de outro da estrada, com cerca de três metros e pescoço de cavalo, aquele ângulo em cima. Quando se pôs as vedações, eles deixaram de atravessar. Em simultâneo, porque são muito mais económicas, beneficiaram as passagens hidráulicas por baixo da estrada. As passagens elevadas são muito dispendiosas. Que eu tenha conhecimento, só Espanha é que fez uma, no final do projeto Iberlince, em 2018, numa autoestrada em que morriam que nem tordos. Muitas vezes, ajuda recolher urina de lince fêmea no CNRLI e despejando uns bocadinhos. O território dos linces é marcado com urina. Se for de um macho, é repelente, porque os machos são territoriais e afastam-se.

Mas se for de fêmea atrai?
Se for de fêmea, atrai. Levam-se garrafinhas de urina do CNRLI e depois vai-se pingando nas embocaduras — e eles são naturalmente atraídos, para procurar ver o que é que se passa ali e atravessam. Pomos câmaras de foto-armadilhagem e temos já várias fotografias deles a usarem. Deles e de outros animais, porque há outros animais que aproveitam.

Considerando este último desenvolvimento, esta última classificação, está mais otimista agora do que já esteve relativamente à preservação do lince?
Estamos mais otimistas, obviamente que sim. E mais motivados. Porque isto é um incentivo. É uma desclassificação em sentido positivo — é uma promoção. É um reconhecimento, um incentivo e uma motivação. Significa que o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido por muita gente, ao nível político, ao nível das administrações, ao nível dos técnicos, deu resultados. É um trabalho coordenado, muito bem planeado. Tentamos não dar passos em falso e definir os critérios comuns entre Portugal e Espanha. Só quando temos as coisas planeadas e tecnicamente definidas é que se avança para o terreno. Depois, qualquer resultado negativo é imediatamente comunicado. É este trabalho coordenado e articulado que deu resultados. Se estivesse cada estado a trabalhar por si, provavelmente ainda estávamos com o nível “em perigo”. Se calhar não estava “criticamente”, mas estava “em perigo”. E trouxemos de volta, de facto, uma espécie que, em termos de reprodução, em termos de populações, não tínhamos. Não tínhamos já em Portugal na passagem do século XX para o século XXI.

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