Ainda mal abri os olhos e já oiço José Mourinho a dar ordens a um balneário de operadores de câmara, explicando a tática numa prancheta. “Camera man, tens de dominar o centro do relvado!”, diz a um deles. “Tu, tens de ser a muralha lá atrás, ninguém passa!”, pede a outro. “Precisamos de ti para baixares ao flanco!”, explica a outro.
São 8h43 de 15 de março de 2018 quando começo esta empreitada de só ver a RT, o canal que é a maior arma de soft power da Rússia, durante um dia. Estou proibido de sair de casa, não tenho autorização para ver outros canais nem para consultar outros órgãos de comunicação além da RT.
Mas, para começar, não era nada disto que eu esperava. Faltam apenas três dias para as eleições presidenciais na Rússia, o Reino Unido acusou Moscovo de matar um ex-espião russo em solo britânico, passam sete anos desde que a guerra na Síria começou e eu ainda não bebi o meu café nem comi as minhas torradas. E aqui estou, de pijama, a olhar para José Mourinho, de fato de treino, enquanto ele me anuncia que vai ser o comentador-estrela da RT para o Mundial de 2018. Será que me enganei no canal? Onde é que anda Vladimir Putin?
Verifico, e confirmo, que estou no canal certo: 212, RT. Então, aceito o que tenho à minha frente e penso que, na verdade, esta até foi uma boa forma para ser recebido no início desta longa maratona. Afinal de contas, é um português que, com o sorriso possível e num inglês que não escapa a ninguém, me abre a porta do canal de propaganda do Kremlin e diz: anda daí, que isto é giro.
“Sim, mister”, respondo-lhe mentalmente, ainda sem consciência de que, até às 23h00, mal iria tirar os olhos daquele ecrã.
As linhas que se seguem são o resumo de um dia em que foi a RT e o Kremlin que me mostraram o mundo. Com telejornais à hora certa e programas temáticos logo a seguir.
O cerco a Moscovo, os árabes infiltrados, a guerra espacial de Trump
Não falha, nunca. À hora certa, os anúncios são interrompidos por uma imagem de um globo terrestre a girar, com R e um T bem grandes por cima. É sinal que vai começar o telejornal. Ao todo, vi 13 edições. Ao caro leitor, poupo-o ao fastio do qual eu não pude escapar, renunciando a um relato cronológico de cada uma delas. Isto porque pouco variaram entre si. Ao logo dos 25 minutos de cada emissão, os conteúdos repetiram-se de telejornal em telejornal. Quanto maior a insistência em determinado tema, maior é a certeza de que é nele que Moscovo gostava que pensássemos no dia de hoje.
O maior tema do dia foi o alegado envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal, e a sua filha Yulia, em Salisbury, uma pequena cidade no sul de Inglaterra. Os dois foram internados depois de, segundo o Reino Unido, terem entrado em contacto com novichok, um agente nervo-tóxico produzido na antiga União Soviética. Essa conclusão de Londres levou a uma tomada de medidas por parte do governo de Theresa May, incluindo sanções e expulsão de diplomatas russos destacados na capital britânica.
O momento é de tensão e a RT faz questão de sublinhá-lo com recurso a uma música onde tambores tocam de forma ritmada, como que a marcar um perigo que está para vir. Não fossem os subtis apontamentos de música eletrónica, não haveria diferença em relação àquele momento em que, nos documentários da BBC Vida Selvagem, o leão persegue faminto uma zebra algures na Tanzânia. Só que, neste caso, trata-se da reunião extraordinária do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque e da Câmara dos Comuns, em Londres.
Ora, o leão aqui são os países do chamado Ocidente (neste caso, o Reino Unido coadjuvado pelos EUA, França e Alemanha, além da NATO) e a zebra é a Rússia.
Há muitas jubas por aqui. Há a primeira-ministra britânica, Theresa May, que aponta para o “desprezo total da Rússia pela gravidade deste acontecimento”. Há o chefe da diplomacia de Londres, Boris Johnson, que diz que a “resposta sarcástica” de Moscovo “indica que no fundo têm culpa”. Dos EUA, fala Nikki Haley, embaixadora nas Nações Unidas, que fala da Rússia como uma “preocupação crescente” e uma fonte de “desestabilização”. De Paris e Berlim, há notas de solidariedade com Londres. Da NATO, fala o secretário-geral, Jens Stoltenberg, que diz que “o ataque de Salisbury aconteceu no contexto de um padrão de comportamento irresponsável da Rússia que dura há muitos anos”. Porém, ninguém mereceu tanto destaque no papel de leão como o secretário de Defesa do Reino Unido, Gavin Williamson. Num discurso em Bristol disse isto: “Honestamente, a Rússia devia ir-se embora e ficar calada”.
Toda a pessoa de boa-fé assiste aos documentários da BBC Vida Selvagem esperando que a zebra escape intacta da investida leonina, para logo os tambores serem substituídos por violinos e flautas que nos põem a todos nós, e também à zebra, em paz. Esse momento também existe na RT. E é aí que entram os jornalistas e os comentadores da RT, para descanso de quem assiste a tudo isto no sofá da sala, zelando pela segurança da zebra.
A missão de resgate da zebra é, nas emissões da RT, tão certa como a vontade de almoçar às 13h00 e a vontade de jantar às 20h00. Em cada um dos 13 telejornais que vi na RT, houve sempre espaço para uma rubrica do jornalista Daniel Hawkins. “Para Downing Street este parece um caso mais do que fechado. A Rússia é culpada. Não há perguntas. Ou será que há?”, questiona o jornalista. Segue-se uma peça onde Daniel Hawkins se serve das perguntas lançadas pelo líder do Partido Trabalhista a Theresa May. As questões lançadas por Jeremy Corbyn — ele próprio um habitué na RT até há pouco tempo — servem de fio condutor para Daniel Hawkins dizer, com uma ironia palpável: “Culpado das acusações”.
Ao longo do dia, a peça de Daniel Hawkins age como uma mão que empurra a zebra para longe do leão, repetição atrás de repetição. Mas, além dele, há outros que parecem estar empenhados nessa missão. Trata-se dos comentadores, que são apresentados em direto como “especialistas”.
Um deles é Jean-Pierre Thomas. A nacionalidade francesa está bem patente no sotaque com que fala a língua de Shakespeare, enquanto está refastelado num sofá. “Não acredito nesta história nem por um segundo. Por que razão haveria o Presidente Putin e a Rússia, uma semana antes de umas eleições, provocar um escândalo internacional?”, pergunta. “Há vários anos que assistimos a uma russofobia em todo o lado.”
Outro é Marko Gasic, que fala em direto de Londres. “O timing deste episódio, antes de grandes eventos na Rússia, incluindo o Mundial, é claramente feito para descredibilizar os russos o tribunal da opinião pública sem que lhes seja dada uma oportunidade para responder às acusações que estão a demonizá-lo”, diz o comentador. “Há sempre uma batelada de temas que aparecem de repente para acusar os russos e para deixar um sabor amargo na boca das pessoas que de outra maneira iriam elogiar os russos por organizarem eventos de sucesso.”
No início deste texto expliquei que, para fazer este trabalho, não podia sair de casa nem consultar outros órgão de comunicação, fossem eles russos, portugueses ou de qualquer outra origem. Mas fiz batota. Ou meia-batota. Fui ao Google. É que, se pergunto “quem é?” sempre que me ligam de um número desconhecido ou um estranho me bate à porta de casa, também me parece sensato fazê-lo quando me tentam convencer das suas opiniões.
Fiquei a saber algumas coisas. Por exemplo, que Jean-Pierre Thomas foi o homem escolhido por Nicolas Sarkozy para dinamizar as relações económicas francesas com a Rússia e que tem no cadastro uma condenação a 15 meses de prisão por financiamento ilegal de um partido. Ou que Marko Gasic dirigiu o Centro de Informação da Sérvia, um órgão oficial de lóbi do governo de Slobodan Milošević, condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça, em Haia.
As suas opiniões viriam a ser transmitidas ao longo do dia, juntamente com outras vozes oficiais, como a do embaixador da Rússia no Reino Unido ou o ministro dos Negócios Estrangeiros russo. Quanto a Vladimir Putin, nem sombra. A cara do Presidente russo não viria a aparecer uma única vez no ecrã ao longo das 14 horas e 17 minutos em que os meus olhos não saíram de cima dele.
Apesar de tudo, a programação dos telejornais não se ficou pelo caso de Sergei Skripal. Outro tema ao qual foi dada elevada importância foi apresentado desta maneira. “Clãs criminosos de árabes infiltram-se na polícia alemã”, lê-se no título da notícia. Na apresentação pelo pivô em estúdio, “infiltram-se” era palavra-chave. Mas, quando passa para o jornalista no terreno, não há explicação dessa infiltração. “Há uma sociedade paralela com uma justiça paralela”, diz o jornalista, enquanto caminha na rua. “Os clãs de árabes tornaram-se de tal forma parte do tecido da capital alemã que recentemente apareceram num programa de televisão famoso”, continua.
Estou deitado no meu sofá, com uma manta por cima das pernas e o computador no colo. Era coisa para estar relaxado. Porém, como tanta gente grita para a televisão nos programas de debate desportivo semanais, sou eu agora que lanço perguntas inflamadas ao homem que me aparece no ecrã: “Então mas e onde é que estão os infiltrados? Como é que é isso?!”. A minha gata, que até agora estava deitada nos meus pés, salta à procura de refúgio, “que este gajo está mas é maluco”.
E a verdade é que começo mesmo a duvidar da minha sanidade. Porque hora após hora, a RT diz-me que há “clãs criminosos árabes” infiltrados na polícia de Berlim — mas, logo a seguir, não fala de nada disso. É verdade que tem um polícia e líder sindical a pintar um retrato negro. “Se os enfrentarmos, é melhor esperar que nos façam visitas ou que nos ameacem ou à nossa família”, diz o polícia ao jornalista da RT. Mas, quanto a infiltrações, nada — a não ser a que tenho na janela da sala.
As certezas quanto à minha saúde mental continuam em baixa quando se passa para outra peça, que dá conta da nova aspiração militar de Donald Trump: depois do ar, mar e terra, os EUA vão passar a ter uma força militar no espaço. “Pode ser que venhamos a ter uma força espacial. Desenvolvemos uma nova”, diz. Depois, como quem quer ouvir a sua própria voz a dizê-lo, Donald Trump ensaia: “Força Espacial”.
Neste excerto, Donald Trump fala como já habituou grande parte daqueles que se deslocam aos seus comícios: de improviso, sem teleponto, circula pelos temas que mais lhe apetece referir, ao ritmo da sua linha ininterrupta de pensamentos. E, muitas vezes, fá-lo a rir. Por mais que esta seja uma possibilidade, numa galáxia muito, muito distante, Donald Trump parecia estar acima de tudo a brincar. Os risos do próprio e da plateia pelo menos indicam esse caminho.
Porém, a RT não achou assim tanta piada. E fez uma peça inteira, à qual assisti 12 vezes, onde levava essa possibilidade muito mais a sério do que a brincar. Ao ponto de contactar um especialista norte-americano. “Penso que esta medida seria muito negativa”, diz.
Estas foram as peças mais repetidas ao longo do dia, mas também houve outras.
Como a que dava conta da mais recente novidade de Nadiya Savchenko, deputada ucraniana e militar que foi encarcerada na Rússia para mais tarde ser posta em liberdade numa troca de prisioneiros. A notícia contava que esta mulher, em tempos considerada uma “heroína da nação” na Ucrânia, era agora suspeita de ter preparado um atentado contra o parlamento. O título da RT era criativo: “From Hero to Zero”. Ou, num português que não surte o mesmo efeito, “De Heroína a Zero”.
Também se falou de bitcoins e de como a Google decidiu rejeitar anúncios àquela moeda virtual. Ou de como, no Senado dos EUA, um general do comando central norte-americano admitiu desconhecer o uso e o destino de armas vendidas por Washington D.C. à Arábia Saudita. E também de uma ponte que caiu na Flórida, fazendo “várias vítimas mortais”.
Além disso, houve espaço para recapitular o último debate entre os candidatos presidenciais onde, à exceção do ausente Vladimir Putin, trocaram ideias e sobretudo insultos. O alvo preferido foi Ksenia Sobchak, a única mulher a candidatar-se e também a mais nova. “Levem-na de volta para a creche! Dêem-lhe um penico para ver se ela fica mais à vontade! Tragam psiquiatras para a porem num casaco de forças!”, lançou-lhe Vladimir Zhirinovsky, atual vice-presidente da Duma, o parlamento russo. A peça depois mostrava Ksenia Sobchak a abandonar o estúdio, já a chorar. “Chora, Ksenya! Chora! A mamã já te vai limpar o nariz”, continuou Vladimir Zhirinovsky. Além de um programa inócuo onde barmen falavam sobre o plebiscito de domingo ou de um rápido perfil de Vladimir Zhirinovsky, o tema das eleições de domingo não foi mais abordado durante o dia.
O que faltou em eleições da Rússia sobrou em guerra na Síria — mas num ângulo controlado. No dia em que a guerra mais sangrenta do século XXI atingia o seu sétimo ano, a RT decidiu dedicar alguma atenção àquele conflito onde a Rússia auxilia a Síria de forma direta desde 2015 apenas quando foi aberto um corredor humanitário para retirar civis da região de Ghouta. Os responsáveis por aquela evacuação eram bem destacados pelo apresentador do telejornal: “Mais de 5 mil civis escaparam das áreas controladas por rebeldes através de um corredor formado pela Rússia e pela Síria”. A previsão era que, ao final do dia, saísse um total de 13 mil civis.
A informação foi contextualizada por um especialista em direto de Damasco, apresentado como “professor de ciência política” na capital síria. Trata-se de Bassam Abu Abdullah e é isto que ele tem para dizer: “Estas pessoas estão agora livres de organizações terroristas. Não é o governo sírio e a força aérea russa que está a atacar civis. A história verdadeira, a situação real, é que eles eram reféns”.
Volto ao Google. E, sim, Bassam Abu Abdullah é professor na Universidade de Damasco. Mas a entrada mais proeminente no seu currículo é aquela que diz que ele foi, até ao início deste ano, porta-voz e ministro da Informação do governo de Bashar Al-Assad.
Quando o tema é a Síria, os detalhes não parecem ser, pois, merecedores de grande preocupação. O mesmo não acontece quando se fala de outro conflito no Médio Oriente, onde a Rússia não está envolvida: a guerra do Iémen.
Nesse caso, no conflito onde a Arábia Saudita combate com auxílio logístico dos EUA, os números abundam — e em letras brancas sob um fundo vermelho, de sangue salpicado. “Mais de 10 mil mortos desde o início da intervenção”, lê-se. Depois: “País à beira da fome”. E logo a seguir, com imagens de crianças feridas e em pele e osso: “A cada 10 minutos morre uma criança com menos de cinco anos”. Tudo isto com uma banda sonora onde abundam gritos de crianças.
“As cenas que nos têm chegado daquele lugar ao longo dos últimos anos são horrendas”, remata o jornalista.
Já na reta final da minha maratona de RT, perto das 21h00, a minha namorada chega a casa. Falamos desta minha experiência, partilho algumas das minhas ideias, falamos do dia que já está quase a acabar. En passant na nossa conversa, ela fala-me de algumas notícias que marcaram o dia. Por exemplo: o procurador especial Robert Mueller intimou as empresas de Donald Trump a revelarem as suas relações com a Rússia. Outra: os EUA acionaram um pacote de sanções contra a Rússia, o mais agressivo desde que Donald Trump tomou posse.
“Ah foi? Olha, não sabia de nada disso”, respondo-lhe. Depois, já com os olhos postos na televisão, dou-lhe um cromo para a troca: “Mas, olha, soubeste que um avião deixou cair barras de ouro na Sibéria? Na Rússia, o ouro chove literalmente dos céus!”.
Trump é uma galinha dançante e os falcões andam aí
A segunda metade de cada hora na RT é tão interessante como a primeira, mas o formato é bem diferente. Quando terminam os noticiários, começam os formatos especiais, onde cabem programas de comentário, debate ou documentários.
Um deles chama-se “Boom Bu$t”, é sobre economia, e é apresentado por um senhor chamado Bart Chilton, um norte-americano que tem um penteado que parece ser inspirado no holandês Geert Wilders. Nesta edição, uma convidada explica que, no que toca a investimentos, a geração dos millennials é “mais conservadora, ao contrário do que a maioria das pessoas pensam”. A primeira vez que apanho o programa é às 13h35.
Umas linhas acima escrevi que a vontade de almoçar é uma coisa garantida às 13h00 e este dia não foi exceção. Porém, passei 35 minutos a enganar a fome. Nesse tempo, ainda pensei em honrar a ocasião encomendando comida de um restaurante russo — mas, em boa hora, sublinharam que os millenials, grupo em que relutantemente me insiro, sabem bem o que é uma crise financeira e os seus resultados. E, como não quero replicar nenhum crash na minha casa, esqueço a minha encomenda, levanto o som da televisão, enquanto oiço a RT, vou para a cozinha preparar um feijão frade com atum.
Foi no processo de tirar água aos feijões, de picar cebola e salsa, para depois misturar com uma lata de atum e um ovo cozido, que ouvi um convidado do “Boom or Bu$t” dizer: “O resultado das eleições já é conhecido ainda antes do facto”. A meio do processo culinário, penso: “Ó, Diabo!”. Corro para a sala, pego no comando e puxo a box para trás. E lá apanho a frase completa: “Em países que têm estruturas de governo como a de Cuba, o resultado das eleições já é conhecido ainda antes do facto”. “Ah, estão a falar de Cuba”, penso. E volto para a cozinha a rir de mim próprio, que ainda pensei que o tema podia ser as eleições russas deste domingo.
Depois, há o “Keiser Report”. “Olá, eu chamo-me Max Keiser, isto é o Keiser Report, o programa que vai onde nenhum outro alguma vez foi. Onde é que isso fica é que ainda não percebemos”, diz o apresentador. Terminada esta peculiar introdução, Max Keiser passa a palavra à sua co-apresentadora, Stacy Herbert. É ela que começa a desenvolver o tema inicial do programa, onde cita um estudo que indica que 96,5% de YouTubers não ganham o suficiente com os seus vídeos para ultrapassar a linha da pobreza nos EUA.
Depois Max Keiser, que mistura um look despenteado com uma camisa, gravata e colete, intervém de forma algo críptica. “Nos anos 60, eu ia com a minha família à Times Square”, recorda. “Nessa altura, dava para ver a galinha dançante. Punha-se uma moeda de 25 cêntimos numa máquina que lá estava e depois aparecia uma galinha dançante, que era uma galinha em cima de um prato que está ligado à corrente elétrico. Então, a galinha está a ser eletrocutada até à morte”, diz.
“E então, Max Keiser?”, pergunto para mim. “O que é que isto tem a ver com o YouTube?” Max Keiser passa a explicar-se. “Bom, o YouTube é isto. Tens milhões de galinhas dançantes à espera de ter um Tweet ou um Like, mas que essencialmente estão a caminhar para a morte. É narcisismo até à morte”. Não sei se na Casa dos YouTubers costumam assistir à RT, mas talvez isto seja de interesse para eles.
Mas a conversa das galinhas não ficou por aí. Mais à frente, Max Keiser voltou a falar delas, comparando-as a um dos homens mais poderosos do mundo. “Quando o YouTube foi lançado, havia uma democratização dos media, as pessoas faziam os seus próprios programas, era rico, diverso e interessante”, diz, para depois explicar como aquele site se tornou menos favorável às massas, apesar de ter sido o dinheiro público norte-americano que financiou os primeiros passos da invenção da internet. E termina desta forma: “E a paga que eles [os contribuintes] têm é que acabou aquela diversidade e passaram a dar-nos galinhas dançantes — o que nos levou a uma galinha dançante que chegou a presidente. Não olhem para o estrangeiro como o problema da vossa galinha dançante que deu em presidente, olhem para o YouTube, olhem para os media. Aí é que está o presidente galinha dançante! Não culpem os estrangeiros pela vossa derrota, seus idiotas dum raio!”.
Noutra parte do programa, um convidado alerta para os riscos da inteligência artificial — e também para as suas falhas. Durante a sua intervenção, usa a palavra “quantification”. Ora, na parte correspondente a “quant”, a emissão é tomada por um biiiiip, utilizado para tapar palavrões — e, em inglês, “quant” é relativamente parecido a um palavrão que começa com “C” e acaba em “UNT”. Será a que a inteligência artificial da RT censurou, sem razão para tal, o discurso de um especialista sobre inteligência artificial? À falta de certezas, fica a ideia.
Mais à frente, dá um programa que, pelo genérico, faz adivinhar um tom mais combativo e pontiagudo do que o anterior. “Watching The Hawks” é apresentado por três pessoas, cujas cabeças surgem no genérico do programa intervaladas por imagens de falcões. Um é Tyrel Ventura (Google: é filho de Jesse Ventura, antigo lutador de wrestling e ex-governador do Minnesotta), outro é Sean Stone (Google: é filho do realizador Oliver Stone, também um habitué da RT) e a fechar o trio está Tabetha Wallace (Google: é filha de um contínuo numa escola pública).
É um programa anti-establishment — no YouTube, encontro um vídeo onde os três vão deixar flores à campa dos “media mainstream” — e isso percebe-se imediatamente. E, na questão do envenenamento de Sergei Skripal, sublinham bem as suspeitas que têm em relação à condenação internacional contra a Rússia.
“Estão sempre a prometer-nos que pessoa tal está por detrás disto, estes é que são os inimigos, mas quando chega a altura de dizer a verdade, dizem que as informações são top secret e depois nunca se sabe de onde é que vieram os rumores”, diz o filho de Jesse Ventura. E a filha do contínuo remata: “É por isso que quando as nações aparecem a dizer ‘nós sabemos isto’… No caso do Reino Unido… É um bocado difícil confiar em vocês!”
O programa termina com uma peça sobre Stephen Hawking. “Descanse em paz”, diz Tyler Ventura. E no final despede-se do público com amor: “Não nos dizem suficientes vezes que nos amam. Por isso, digo-vos a todos: eu amo-vos”. Deitado no sofá, respondo-lhe mentalmente: “Obrigado, Tyrel. Também te amo — manda um abraço ao teu pai”.
Mas não o amo tanto quanto às senhoras quenianas que aparecem no documentário “Granny Fight Club” — ou, em português, algo como “Clube de Combate das Avózinhas”. Aqui, é contada a história de uma associação que ensina as mulheres idosas de Korogocho, um bairro de lata no Quénia, a protegerem-se de agressores sexuais. As aulas são dadas debaixo de uma lona branca, onde estas avózinhas aprendem os golpes. Mary Mjoki, viúva de 85 anos, leva a lição bem estudada. “Olho-o de frente e espeto os meus dedos mesmo no olho do violador. E se ele não parar, dou-lhe com a palma da mão no pescoço”, diz.
Fico impressionado com o “Granny Fight Club”. Está bem executado, tem histórias interessantes às quais dificilmente teria acesso. Vi-o duas vezes ao longo do dia — e de boa vontade. Porém, não foi este o programa que mais me impressionou na minha maratona da RT. Esse foi o “The Alex Salmond Show”.
Isso mesmo: Alex Salmond, o ex-primeiro-ministro da Escócia e célebre independentista, tem um programa na RT, onde recebe convidados, ouve o que eles têm a dizer e, no fim, dá-lhes uma garrafa de uísque escocês. Na segunda metade do programa, Alex Salmond entrevistou uma antiga agente do Mi5 e uma antiga jornalista correspondente do The Times em Moscovo. Às duas, perguntou abertamente: “Mas certamente que os russos são, no mínimo, o suspeito número um, não?”.
Só não fiquei com receio de que lhe cortassem o sinal aquando dessa pergunta porque, na primeira metade do programa, o meu espanto foi ainda maior. O primeiro convidado de Alex Salmond foi Peter Tatchell, ativista LGBT britânico. E uma das primeiras perguntas que o escocês lhe fez foi sobre a vez em que se deslocou à Rússia para ir a uma manifestação pelos direitos LGBT.
Peter Tatchell passa então a contar como foi agredido — “levei porrada até ficar inconsciente” —, explica como a polícia estava coordenada com extremistas — “a polícia ficou a olhar para mim enquanto eu era agredido por ultranacionalistas e neonazis” e acaba por dizer que “a Rússia é um estado policial sem lei”.
E, de um fôlego, o convidado de Alex Salmond fala do caso do ex-espião Sergei Skripal. “Os recentes desenvolvimentos com as alegações em torno do espião que morreu [nota: Sergei Skripal está hospitalizado em estado grave e não morto] no Reino Unido, juntando a um rol de coisas terríveis que o Estado russo está a fazer, acredito que a comunidade internacional tem de tomar uma atitude”, diz.
No final do programa, Alex Salmond deixou o seu próprio comentário, onde respondia a críticas recentes ao seu programa, às quais se juntou uma investigação da OfCom, a entidade reguladora da comunicação britânica. “Não tenho nenhum guião do Kremlin nem me pedem que tenha. Ninguém tentou influenciar o conteúdo deste programa de maneira nenhuma”, disse. No fim, despediu-se da seguinte forma: “Até para a semana. Espero eu. Adeus, para já”.
Resta saber quem é que lhe poderá cancelar o programa já a partir da próxima semana: a OfCom ou o Kremlin?
***
O dia foi longo.
Depois de quase 14 horas e 17 minutos seguidas a ver a RT, às 23h00, desligo a televisão. Pouco depois, vou para a cama. Já com as luzes apagadas, pergunto a mim mesmo como será o dia seguinte.
Será que vou ser apanhado num ataque da força espacial de Donald Trump? Ou vou ser assaltado por um árabe que se infiltrou na PSP? Os serviços secretos de um qualquer país do Ocidente vão deitar algum pó letal no meu almoço, para depois deitarem as culpas nos russos? E se eu comer um frango assado, existe a hipótese de este ter sido electrocutado por um dos tipos da casa dos YouTubers?
É possível que estas respostas fiquem sem resposta. Também é possível que sejam apenas teorias da conspiração formadas que só têm validade na minha cabeça. Mas, afinal de contas, estou apenas a cumprir o lema da RT, exposto no seu slogan: “Questiona mais”. Ordens são ordens.