“Um procedimento de enorme complexidade e risco”. Foi desta forma que a presidente do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Rosa Valente de Matos, resumiu a cirurgia rara que decorreu no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, no final de julho e que demorou umas longas 14 horas: a separação de duas gémeas siamesas, de nacionalidade angolana, uma operação que não era feita em Portugal há quase um quarto de século.
A cirurgia, só agora divulgada, foi concluída com sucesso. “Um êxito”, nas palavras da presidente do centro hospitalar. As gémeas, de quatro anos, estão a recuperar na unidade de cuidados intensivos do Hospital Dona Estefânia, e deverão passar os próximos meses neste hospital, onde vão ser sujeitas a outras cirurgias, que, no final, as devem conduzir a uma vida totalmente autónoma — assim espera a equipa que intervencionou as gémeas siamesas, e que foi liderada pelo cirurgião pediátrico Rui Alves.
As gémeas estavam unidas pela região abaixo do umbigo (o abdómen) e também pela zona pélvica. A operação foi o culminar de meses de preparação de dezenas de profissionais do centro hospitalar, e que envolveu várias especialidades médicas, enfermeiros e técnicos. “As meninas vieram para o nosso hospitalar há muito meses (estavam internadas desde abril), porque uma cirurgia deste tipo implica um procedimento pré-operatório e uma planificação longas, que pressupõe uma avaliação multidisciplinar de vários órgãos e sistemas”, explicou o responsável pela operação, o cirurgião Rui Alves, acrescentando que estiveram envolvidas no procedimento uma série de especialidades: a Cardiologia pediátrica, a Pneumologia, Cirurgia Hepato-Bilio-Pancreática, a Urologia pediátrica, a Anestesiologia, a Urologia, a Cirurgia Plástica e o serviço de sangue.
Bexiga, rins e intestino dificultaram. Pulmões e coração facilitaram cirurgia
As gémeas foram separadas de acordo com os órgãos e sistemas que tinham em conjunto. “Em relação à parte digestiva, havia união de parte do fígado”, que teve de ser separado. A separação deixou ainda uma das gémeas sem intestino grosso, uma vez que ambas nasceram com intestino delgado, mas apenas um intestino grosso. O facto de uma das gémeas ficar sem intestino grosso “não é impeditivo de ter uma vida normal” no futuro, explicou o médico.
O sistema urinário das duas meninas também levantou desafios à equipa médica. As crianças tinham bexigas separadas mas “para cada bexiga, caminhava um ureter de um rim de cada uma, ou seja, cada bexiga tinha um ureter da menina A e um ureter da menina B”, o que levou os médicos a terem de “desinserir os ureteres e posicioná-los de acordo com os rins e bexigas corretos”, explicou a médica Fátima Alves, especialista em Urologia Pediátrica.
A operação foi facilitada pelo facto de as gémeas terem corações e pulmões autónomos — isto é, não partilhados, explicou, Rui Alves. As crianças tinham ainda as vaginas separadas por um septo, o que vai obrigar a uma cirurgia reconstrutiva.
O encerramento da parede abdominal foi feito pela unidade de Cirurgia Plástica, com a colaboração de três médicos alemães. Neste procedimento, feito depois da cirurgia, foi utilizado um material inovador trazido pelos médicos alemães, que deram formação aos especialistas portugueses no Dona Estefânia sobre como utilizá-lo, e que permitiu cobrir a parede abdominal com tecido das menores, evitando a utilização de materiais externos, sublinhou a médica Catarina Ladeira, responsável pela cirurgia plástica pediátrica. Uma das gémeas já tem a parede abdominal fechada, estando a outra a aguardar, uma vez que a evolução se revelou mais lenta.
No entanto, a operação de separação não foi a última a que as gémeas angolanas foram submetidas. “Esta fase apenas se destinou a separá-las, torná-las autónomas, mas a cirurgia não é de todo definitiva”, explicou o cirurgião Rui Alves, adiantando que vão ser realizados vários procedimentos cirúrgicos nos próximos anos para tornarem as duas crianças autónomas. Uma dessas intervenções está relacionada com a parte ortopédica. Devido à ligação pela região abdominal, nunca andaram. “Vai ser um processo de correção ortopédica, mas também de fisioterapia, para poderem ter autonomia da marcha”, referiu.
Apesar do sucesso da operação, as gémeas, atualmente internadas nos cuidados intensivos, ainda correm riscos, nomeadamente risco de infeções, referiu Rui Alves. O responsável pelo serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos, João Estrada, revelou que as meninas “estão contaminadas por bactérias com algum grau de gravidade terapêutico”, mas que, por enquanto, o pós-operatório está a “correr bem”. No entanto, alertou, “há um caminho que vai demorar” a ser feito.
O maior risco durante a cirurgia era o de hemorragia, que não se verificou, disse a médica anestesiologista Teresa Cenicante, que sublinhou que as “gémeas perderam pouco sangue”, tendo o período intraoperatório corrido bem. “O risco hemorrágico perioperatório é a principal causa de mortalidade nestes doentes”, referiu Rui Alves. O momento da separação foi, por isso, “muito emotivo para todos”, confessou Teresa Cenicante. “É uma operação rara na Medicina, não há muita experiência na Europa”, disse Rui Alves, sublinhando que não existem muitos casos descritos de separação de gémeos siameses. Se o nascimento de gémeos é raro, o de gémeos siameses é substancialmente mais incomum (apenas um em cada 200 mil nascimentos).
O hospital optou por não divulgar o nome nem a nacionalidade das crianças, que vieram para Portugal ao abrigo de um protocolo de cooperação da DGS, mas o Observador sabe que são angolanas.
Gentil Martins “feliz” por saber que operação se voltou a realizar, quase 25 anos depois
A primeira cirurgia para separação de irmãos siameses feita em Portugal, no caso para separar as irmãs Tânia e Magna, então com quatro meses de idade, ocorreu em 1978, também no Hospital Dona Estefânia, por uma equipa liderada pelo cirurgião António Gentil Martins, que separou sete pares de gémeos siameses, todos neste hospital de Lisboa. A última separação aconteceu há 24 anos, em 1999, e também foi realizada por Gentil Martins, o único médico em Portugal que até agora tinha liderado este tipo de operações.
Ao Observador, o médico, já retirado, explica que este caso, em que as gémeas estavam unidos pela zona abdominal, é dos mais simples de solucionar, dentro da complexidade típica de uma cirurgia deste tipo. Já as uniões pelo crânio (no caso dos siameses craniópagos), mais raras, a intervenção é mais díficil. No entanto, a complexidade, nesses casos, depende da parte do cérebro que está “comprometida”, explica o cirurgião, de 93 anos.
Gentil Martins: “Achava que uma pessoa aos 86 anos estaria gagá. Felizmente não me sinto assim”
Gentil Martins diz estar “feliz” por saber que, quase um quarto de século depois, uma equipa não liderada por si voltou a separar com sucesso um par de gémeas siamesas. Rui Alves, o cirurgião responsável pela cirurgia, trabalhou de perto com Gentil Martins durante vários anos.
“Separar gémeos é fácil, difícil é que fiquem bem anatomicamente”, explica Gentil Martins. Será esse o grande desafio que tanto a equipa médica do Dona Estefânia como as próprias gémeas terão pela frente nos próximos meses e anos.
Há treze anos, em 2010, um par de gémeos siameses, também angolanos não puderam ser separados. Os médicos do Hospital Dona Estefânia descobriram que as crianças partilhavam o coração e o fígado, tornando a cirurgia inviável. Os bebés acabariam por morrer durante o regresso a Angola.