Passavam poucas horas da mais recente irritação de António Costa, que tinha exigido um pedido de desculpas do Bloco de Esquerda aos portugueses, quando a líder bloquista subiu ao palco do Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, este domingo. Diante de si tinha a maior plateia de toda a campanha, para o comício com que iria fechar a primeira semana. E, com sorte, sabia que fecharia também a primeira etapa do discurso auto-destrutivo à esquerda – apenas precisava de assegurar que António Costa mordia o isco que estava prestes a lançar. Por isso, ignorando as “provocações” que cruzam campanhas, arriscou atirar o convite público – “O Bloco convida o doutor António Costa para uma reunião no dia 31 de janeiro” – e esperou que o desafio chegasse aos ouvidos do PS.
A resposta viria horas depois, já na manhã de segunda-feira, na entrevista à Renascença em que Costa admitiu negociar com todos os partidos, desistiu de hostilizar a esquerda e até assumiu que os portugueses não gostam de maiorias absolutas. A comitiva bloquista ouviu com gosto e registou a resposta – um “nim”, reconheceu Catarina Martins, mas ainda assim melhor do que o “não” rotundo que vinha ouvindo desde o início da campanha.
O Bloco parte assim para a reta final de estrada com algumas certezas: desde logo, a maioria absoluta morreu, paz à sua alma. É uma ironia a que a comitiva tem de se ajustar em tempo real, largando o discurso anti-maioria socialista e concentrando-se em reanimar a maioria de esquerda que pode estar morta aos olhos do eleitorado. Nesta espécie de campanha a dois tempos, o arranque da segunda semana está a ser exatamente o que o Bloco desejava, mas com um evidente atraso – a dúvida agora é se os poucos dias que faltam servem para a esquerda, coletivamente, conseguir fazer uma inversão de marcha e voltar aos tempos em que era feliz (e se entendia).
O ponto de viragem da campanha (e a direita, de novo o cimento da esquerda)
O desafio lançado no domingo foi pensado, calculado e amadurecido. Não surgiu do nada – afinal, a primeira semana de campanha no Bloco foi passada a ‘malhar’ na ideia de maioria absoluta e a insistir em todas as formulações possíveis num “contrato para o país”, num novo “acordo”, num “novo ciclo de governação”, o que se lhe quisesse chamar. Mas, passada a primeira metade da campanha, o Bloco começava a preocupar-se com as sondagens que já apontavam para um Rui Rio mais do que preparado para disputar seriamente as eleições – e uma maioria de direita em condições de se bater com a esquerda.
Ironicamente, tal como em 2015 e apesar do chumbo do último Orçamento, a direita voltaria a ser o cimento que colaria a esquerda. E, como dizia Pedro Filipe Soares no mesmo palco que Catarina, era preciso que Costa “assumisse o erro” de queimar pontes à esquerda – até porque “assumir o erro é um sinal de inteligência”.
Umas quantas sondagens preocupantes depois, na campanha do Bloco regista-se que é isso mesmo que está a acontecer. A ideia de lançar o isco para Costa foi reavivar a ideia de uma maioria de esquerda e condicionar a narrativa da campanha, onde com uma corrida tão bipolarizada entre Rio e Costa era difícil entrar, para dizer o mínimo. Por isso, a entrevista de Costa foi interpretada como um ponto de viragem.
E, se Luís Fazenda, um dos fundadores do Bloco, aparecia na segunda-feira num comício em Santa Maria da Feira para alertar que o discurso do PS é ambíguo o suficiente para abrir a porta a um bloco central, entre os dirigentes regista-se com satisfação, ainda assim, as mudanças nas formulações apontadas por Costa: as referências que faz já não são apenas a “governar à Guterres” ou “governar com o PAN”, mas a “negociar com todos os partidos”. Mais: sobre o Bloco disse na Renascença ter apenas “pena” de que o partido tenha batido com a porta no Orçamento e que nunca lhe “fechou a porta” – um Costa muito diferente daquele que, apenas um dia antes, dizia publicamente não aceitar “lições de Catarina Martins”.
Esse é o segundo dado relevante registado na comitiva do Bloco: Costa, na sua versão mais dialogante e humilde, parece ter travado a fundo na hostilização direta da esquerda, que se concentra agora como um todo no objetivo que a une: atacar – para derrotar – a direita.
Não por acaso, Catarina Martins, que passou a primeira semana a agitar o papão da maioria absoluta do PS e chegou a invocar os fantasmas de José Sócrates e Manuel Pinho para isso mesmo, passou os últimos dias a subir cada vez mais o tom contra a direita – que esta terça-feira, numa feira em Vila do Prado, Braga, acusava de ter “um projeto de destruição para o país” e de preferir esconder o programa e falar de “gatos”, numa referência ao já famigerado animal doméstico de Rui Rio, o gato Zé Albino.
Negociar, negociar, negociar. Com uma ajuda de Rio
As referências de Catarina, admitindo que Costa ainda não foi suficientemente claro sobre se tem vontade de negociar à esquerda e que só nessa condição terá o Bloco sentado à mesma mesa, passaram, no entanto, a focar-se na negociação.
À porta da feira, resumia a ideia que o Bloco quer passar para animar e mobilizar o povo de esquerda: “Já se percebeu que a ideia de maioria absoluta está abandonada, que o Orçamento terá de ser negociado, que vai ser preciso conversar a 31 de janeiro, que vai ser preciso negociar qual o Governo da próxima legislatura”. Arrumado o aspeto que queria vincar, recusou elaborar mais sobre o assunto – “não vou fazer campanha sempre a comentar cada uma das declarações” – e passou ao que interessava: bater na direita.
Foi desse lado, aliás, que surgiu o segundo sinal de satisfação para o Bloco: depois de Costa ter mordido o isco do desafio bloquista – depois de constatar a viragem das sondagens – foi Rio quem, esta terça-feira, agarrou na mesma narrativa, avisando para a “altíssima probabilidade” de, se Costa ganhar, construir uma nova geringonça e até incluir o Bloco na composição do Governo. Ora este era o papão que Rio costumava agitar quando falava do potencial sucessor Pedro Nuno Santos – com a tal entrevista à Renascença, voltava à ideia de que, afinal, o acordo à esquerda ainda seria possível com Costa.
A preocupação do Bloco passa agora por perceber se esta ideia se instala numa fase já demasiado tardia da campanha. Não é que as perspetivas para o próprio Bloco tenham mudado significativamente: os estudos de opinião continuam a apontar percentagens a rondar os 5%, que significaria um rombo sério na bancada de Catarina Martins. O foco está agora, ironicamente, também nas perdas infligidas ao PS: se inicialmente a ideia era dar o tudo por tudo para impedir a maioria absoluta, agora os bloquistas têm noção de que a perceção de uma esquerda que, no seu conjunto, está em perda e não tem dinâmica de vitória pode prejudicar o bloco de partidos inteiro.
Para contornar o problema, é mesmo preciso obrigar Costa a conversar e o líder socialista é um “pragmático”, recordam os dirigentes, nos bastidores da campanha. Mas é preciso que o seja a ponto de “mudar” completamente a “agulha”, como aconselhava Catarina Martins: “Era agora necessário que o PS fosse além do nim, desse o outro passo”. “Ainda faltam três dias”, recordava a coordenadora bloquista. Será suficiente?