Por certo já se deu conta de um plano de um filme que nunca mais lhe saiu da cabeça. Levou-o consigo, ao longo dos anos, para os mais diversos lugares no mundo. Revisitou-o na televisão, numa sala de cinema de outro país, numa fotografia de Instagram. Quer seja um plano de “Viagem a Tóquio” de Yasujiro Ozu sobre como a sociedade japonesa se voltou a colocar de pé no pós Segunda Guerra Mundial ou “Morte em Veneza” de Luchino Visconti, feito em 1971, sobre duas conceções de beleza, como escreve Tiago Vieira da Silva. Ou mesmo “Recordações da Casa Amarela”, de João César Monteiro, lançado em 1989, com aquele plano final de um João de Deus a nascer (ou renascer) como Nosferatu pelo meio do nevoeiro. Ou de outro filme qualquer. Nélson Araújo é professor da Escola Superior Artística do Porto, onde leciona e dirige a licenciatura de Cinema e Audiovisual, tem publicado vários artigos em revistas dedicados aos estudos fílmicos e escrito literatura sobre a sétima arte como “Cinema Português” (Edições 70, 2016).
É, por isso, um homem que se dedica à sétima arte, a pensá-la, a ensiná-la às próximas gerações mas que, desta vez, decidiu abraçar o desafio de coordenar um livro que transmitisse aquilo que nos leva todos às salas de cinema: sentir qualquer coisa. Especialmente para quem não tem tanto acesso a uma cultura que deveria ser para todos mas que, no país, por vezes, pode ser vista como mais elitista do que realmente é. Foi graças a uma visita a uma loja dos CTT, local acessível para milhões de portugueses ao contrário de salas de cinema ou livrarias, que o também professor teve a ideia de fazer esta coletânea literária e cinematográfica. “100 Melhores Planos do Cinema” é como um daqueles calendários do advento onde, entre cem autores, de investigadores a realizadores, descobrimos todo o tipo de textos sobre um determinado plano. Quer seja longo ou de apenas segundos. Quer seja português ou estrangeiro. “Estas lojas chegam a muitos sítios em Portugal onde, por vezes, não existem livrarias. Queria um livro que piscasse o olho ao utente dos CTT, onde qualquer texto o prendesse e que ficasse a pensar no que leu. Olhar para a “Viagem a Tóquio” e pensar no filme de outra forma”, conta ao Observador em entrevista.
Apesar de Nélson Araújo ter andado a dedicar a vida a ensinar os outros um pouco mais sobre a sétima arte, não deixa de ainda ter a ambição de passar para o outro lado. Mas também acredita que para o cinema português ter cada vez mais autores de renome, com condições para filmar e viver desta profissão, vai ser preciso um maior envolvimento de todos. Especialmente do Estado e do Instituto do Cinema e Audiovisual. “Havendo mais escolas há menos dinheiro. Não diria que dou uma conotação negativa, até porque o ICA tem um concurso para as escolas, mas é claramente negativo. Era necessário que este instituto olhasse com outros olhos para o ensino nesta área e perceber que, no fundo, o futuro do cinema português está nas escolas. Merece outra atenção”, conta.
Estive aqui a folhear o livro, a ver alguns destes planos, alguns destes textos. Tenho acompanhado a área do cinema nestes últimos anos. Tenho conversado pouco com pessoas que pensam e escrevem sobre cinema. Queria começar com uma pergunta mais filosófica: nestes 100 planos ou em tantos outros, há algum que se tenha tornado indescritível?
Primeiro, deixe-me dizer que estes cem planos não foram escolhidos por mim. Foram escolhidos por cem autores diferentes. E, portanto, não foram pensados por mim. O meu pensamento acerca do plano é um pensamento que tem a ver com aquilo que eu acho que é um pensamento do cinema, de quem está ligado ao cinema, particularmente ao realizador. Portanto, se nós escrevemos por palavras, na verdade, acho que o realizador pensa por planos. A partir de um texto tem que transformar aquilo num discurso visual. O pensamento cinematográfico é um pensamento de planos. Há quem defenda que, se calhar, pode também ser pensado em fotogramas. Não entrando nessa discussão, escolher um plano é difícil… não tenho assim nenhum. Lembro-me do “Branca de Neve”, de João César Monteiro, que não usa imagem ou o Strobe, com uma imagem muito fixa em que tudo se passa no enquadramento. Há sempre algo que aquilo transporta.
Complicado escolher um, então. Como correu esta coordenação de tanta gente?
A coordenação partiu de um princípio que é este: a linguagem do cinema é complexa. Vivemos um momento da nossa vida contemporânea em que a imagem em movimento assumiu um protagonismo nunca visto. Acho que mais do que nunca se impõe esta necessidade de falarmos da imagem em movimento e da sua complexidade, particularmente do cinema, porque o cinema, enquanto manifestação artística, usa essa complexidade. O livro parte desse princípio, avança para especialistas nas múltiplas áreas dentro desta arte. Professores, investigadores, realizadores, diretores de fotografia, argumentistas, programadores. Muitos. Os textos são muito diferentes, o que cria uma relação muito forte com essa atividade que a pessoa exerce no cinema. As diferenças sentem-se, por exemplo, com o Ivo Reis, artista visual, ou com o Sérgio Branco, professor universitário. Isto tem a ver com a prática de cada um. São todos textos pertinentes. Claro que coordenar cem pessoas não é fácil, houve quem ficasse pelo caminho, porque estavam interessados mas depois surgiu uma rodagem. O mais complicado foi liderar e conduzir este comboio, não me esquecer de ninguém.
[trailer de “Viagem a Tóquio” de Yasujiro Ozu, um dos filmes incluídos no livro “Os 100 Melhores Planos do Cinema, que esteve nas salas de cinema em Portugal em 2023]
O Nélson no livro fala de que talvez fizesse mais sentido ir em busca da emotividade de quem lê. Entrando nesse caminho, até porque a relação entre a literatura académica e não académica e o cinema é ampla, queria perceber porque é que achou que agora era um bom momento para tomar essa decisão?
Na base do cinema também está o conseguir transportar essa linguagem complexa para um leitor comum, não necessariamente alguém cinéfilo. Um cinéfilo ficará curioso, mas não pensei assim. O meu target era outro. Queria que se conseguisse descodificar complexidade para um leitor comum e que pudesse ser uma ferramenta para melhorar a relação com o espectador comum. Fortalecê-la. Daí a opção por um texto pequeno, distante do discurso científico, capaz de agarrar. Daí a ideia de emotividade. Foi um desafio para os investigadores, por exemplo. Tiveram essa oportunidade. A génese deste livro é a de me encontrar numa loja dos CTT, onde vejo que o que é oferecido eram livros com os quais não me identificava, mas considerava que estava li um espaço para distribuir este tipo de literaturas. Estas lojas chegam a muitos sítios em Portugal onde, por vezes, não existem livrarias. Queria um livro que piscasse o olho ao utente dos CTT, onde qualquer texto o prendesse e que ficasse a pensar no que leu. Olhar para a “Viagem a Tóquio” e pensar no filme de outra forma.
Certo. No tal momento em que vivemos, onde somos bombardeados por todo o tipo de imagem, por onde anda a complexidade?
Somos inundados, praticamente todos os dias, por vídeos, por imagens em movimento. Está longe de ser algo que exercita a intelectualidade, pelo contrário, retira-nos preocupações. Há uma busca do entretenimento, do curioso, mas o cinema enquanto exercício intelectual é algo que parece cada vez mais distante. Daí a necessidade de lutarmos por um cinema que é uma manifestação artística e que é também um exercício intelectual. É um combate importante a todos os níveis. Existe a necessidade de haver livros de cinema nas escolas, para ser descodificado e discutido. Desde pequenas que as crianças contactam com imagens em movimento. Este momento tem de ser olhado com cuidado porque pode trazer consequências negativas no exercício do intelecto.
Aconteceu-me este ano durante os festivais a que fui, de Cannes a Vila do Conde, de perceber que os realizadores mais velhos estão interessados em preservar a experiência do cinema. E, curiosamente, os filmes de que mais gostei são sobre cinema: “Asteroid City”, “Retratos Fantasmas”, “Sol do Futuro”. Parece-lhe que esse cinema, não lhe queria chamar mais intelectual mas chamando-lhe, vai ganhar a luta numa altura de rápida transição onde os streamings ganhavam cada vez mais espaço? A ideia da comunhão do cinema.
A morte do cinema já é anunciada há algum tempo. Quanto ao meta cinema, já se fala também há longos anos. É um sinal de que o cinema não vai morrer, estamos num período de mudança mas estou otimista. Sou, aliás, otimista. Porque as mudanças tecnológicas permitiram ter mais pessoas a fazer cinema, a consumir mais cinema. Como professor percebo que se consome muito mais imagem em movimento, nomeadamente séries. Acho que esse ato comunitário não vai desaparecer. Os festivais ganharam outro protagonismo e ainda há espaço para ganharem mais. O streaming também é importantíssimo. Esta fase vai atingir o seu pico.
Pode já ter acontecido. Essas plataformas estão a pensar integrar publicidade seguindo o modelo tradicional das televisões.
Sim, sim. Em casa, estamos a ver qualquer coisa e paramos para ir fazer outra coisa qualquer. Essa quebra da relação com o filme é contraproducente. Estar no cinema é estar desligado de qualquer contacto. Por outro lado, nunca se fez tanto cinema português com tanta qualidade. Ou seja e repetindo-me: estou otimista.
Vamos passar mais para a sua área. Como é o típico aluno português?
É um aluno de aprender o que é o cinema mas que chega com pouco critério em relação àquilo que vê. Nomeadamente até em termos de cinema português porque aí também acho que há um trabalho a fazer com público. Isto dava uma discussão muito grande, nem queria entrar por aí. Mas, sim, é um aluno muito curioso que ainda tem dificuldade em perceber que o cinema é uma manifestação artística. Esse aluno consome muita séries, que assumiu um domínio. A esmagadora maioria das séries impuseram uma ditadura do argumento, portanto, nas turmas, tenho sempre quem venha embalado com a ideia da história e isso tem de ser trabalhado. A história faz parte do filme mas não é tudo. É importante trabalhar todas as múltiplas dimensões. O lado positivo é essa abertura para conhecer e para melhorarem. Há cada vez mais gente nos cursos de cinema e cursos a abrir. É um momento que, não sendo propriamente entusiasmante, é de crescimento. Também é importante saltar um pouco o muro da academia para estabelecer mais contacto com o mundo do trabalho, haver mais fluxos entre escolas e quem trabalha. Isso não acontece, existe uma barreira. As escolas têm um papel importante mas o Instituto de Cinema e Audiovisual também pode dar esse contributo. Necessitamos de mais presença de profissionais nas escolas de cinema, mais estudantes a trabalhar em estágio, por exemplo. Não acontece muito em equipas de rodagem.
E o que melhorou?
A criação da Federação Portuguesa de Escola de Cinema e Audiovisual permitiu uma aproximação entre escolas e uma maior consonância em relação à defesa dos interesses, percebendo a realidade de cada um. Foi um passo importante. Começa também cada vez mais a haver interesse dos festivais naquilo que é feito nas escolas de cinema. Existe esta porta aberta para o que se faz no seio académico. Os festivais são importantíssimos para o cinema português em particular. Aí existe uma aproximação dos estudantes a esses meios. Os estudantes estão muito mais preparados, vejo os filmes que fazia e que eles fazem: são muito melhores. Mais qualidade, mais maturidade. Existe essa evolução também em termos de domínio tecnológico. Chegam também com a ideia do que querem mas com poucos critérios no que veem. Pouco maduros na relação com o cinema mas maturidade em relação ao que pretendem fazer.
O que piorou?
Havendo mais escolas há menos dinheiro. Não diria que dou uma conotação negativa, até porque o ICA tem um concurso para as escolas, mas é claramente negativo. Era necessário que este instituto olhasse com outros olhos para o ensino nesta área e perceber que, no fundo, o futuro do cinema português está nas escolas. Merece outra atenção.
Porque continua a ser difícil esta relação entre o público português e o seu cinema? É por causa do ensino?
Uma pergunta difícil, de facto. Também é complicado na distribuição dos filmes. Temos uma boa rede de cineteatros mas que não são aproveitados em termos de programação. Depois há caminho a percorrer no cinema dito comercial que ainda não foi possível fazer, que correspondam a um público mais maciço e que não abdique da ideia de que o cinema é uma linguagem também artística, como tenho dito. Vamos tendo os êxitos que temos mas não passam da fronteira. Existe outro que o faz, que consegue projeção internacional, que segue para festivais, mais autoral, palavra caída em desuso, que é forte a esse nível.
O Nélson é professor no Porto, um polo fundamental também na criação de ficção e principalmente de animação. Temos de deixar de olhar para Lisboa como a central dessa produção?
Acho que sim. Têm havido propostas interessantes, começam a aparecer produtoras com dinâmica. Há espaço para ainda mais produtoras, e outras que têm conseguido combater aquilo que é o domínio da produção cinematográfica em Portugal que reside na capital. No entanto, ainda está tudo concentrado aí. Basta ver que maior parte dessas produtoras estão em Lisboa. Agora, não basta dizer só que acontece aí, há que combatê-lo, como têm feito as pessoas do Bando à parte ou Olhar de Ulisses. Claro que também existe a hipótese de que quem quer trabalhar em cinema tem de ir para a capital.
Nunca lhe apeteceu passar para o outro lado do muro? Ser realizador? Argumentista?
Isso é sempre algo que pode estar sempre presente, particularmente para quem se formou em cinema. É essa a minha formação. Formei-me na escola onde dou aulas, portanto, essa ideia está sempre lá. É sempre adiada porque há sempre muito que fazer. Espero que não continue a ser adiada durante muito mais tempos. O meu percurso é universitário porque depois da licenciatura veio o mestrado e logo o doutoramento. Depois as aulas.
Preferiu então estar ligado mais a esse meio universitário?
Todos os dias nesta área são desafiantes, existe essa relação com o cinema, ou seja, houve uma vontade natural que me levou depois ao mestrado e para o doutoramento. Agora, claro que não é de todo incompatível ser professor e fazer filmes. É uma questão de organização pessoal e disciplina.
O que faz falta ainda investigar sobre o cinema português? Ainda que estejamos a ver esse investimento e investigação noutras plataformas ou projetos como a Filmar, da Cinemateca, que tem restaurado muitos filmes nacionais.
A minha investigação tem andado por outras áreas, claro que a preservação do património tem sido importante. A Cinemateca lançou uma iniciativa de pedir às pessoas que lhes cedesse filmes caseiros a propósito dos 50 anos do 25 de abril que se vão celebrar par ao ano. Essa ideia pode ser alargada a outros âmbitos. Há uma geração que começa a não estar cá e que estamos a perder como a que esteve na guerra colonial. Nesse espaço doméstico se calhar há um património a recuperar, uma certa urgência nessa recuperação. Porque se pode perder para sempre.
Voltando ao início. Ter um livro que explica planos não é tirar a magia que existe no cinema? Por vezes, na explicação perde-se o enquanto.
Acho que não. Dou-lhe o exemplo do texto sobre o penúltimo plano da “Primavera tardia”, onde a autora consegue, por palavras, descrever um plano pequeníssimo que, penso, ter seis segundos. Descreve quanto a vida é efémera, de como o cinema consegue, em poucos segundos, falar sobre a vida, sobre essa celebração, mas também sobre o quão trágica pode ser. É um plano sem diálogo, onde a personagem descasca uma maçã e confronta a morte. De alguém de idade avançada depois da filha casar, que perde essa relação emotiva, essa presença diária e só lhe resta o confronto com o fim. Um fragmento tão pequeno transporta tanta emoção. Isso é uma espécie de milagre. Descodificar o plano, falar sobre ele, ficarmos emocionados, é uma celebração da vida. Mesmo quando falamos da morte. Faz sentido.
Uma última pergunta: que plano recomenda dos filmes que viu?
A cinematografia iraniana confirma a sua capacidade de se renovar e surpreender, destacando o filme “Terceira Guerra Mundial” de Houman Seyedi, bem como o cinema argentino que, em 2023, nos trouxe muitas e boas novidades que apontam para um movimento geracional que utiliza o cinema para refletir sobre o passado e o presente do país. Destaco, desta cinematografia, “Trenque Lauquen” de Laura Citarella. No cinema português, João Canijo com “Mal Viver” e Edgar Pêra com “Não Sou Nada – The Nothingness Club”, com propostas fiéis à matriz fílmica dos dois realizadores, onde fica sublinhado a diversidade autoral do cinema nacional.