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Por muitas voltas que se possam dar o Orçamento do Estado para 2020 é histórico. Pela primeira vez em democracia, o governo em funções prevê completar um exercício económico em que o Estado vai gastar menos dinheiro do que vai cobrar aos cidadãos e empresas.
Pode concordar-se ou não com a opção do Governo — e, sobretudo, de Mário Centeno — na entrega de um orçamento com 533 milhões de euros de excedente orçamental, equivalentes a 0,2% do PIB previsto para 2020.
Pode desvalorizar-se o feito analisando a forma como aqui se está a chegar – com o apoio de várias receitas ocasionais, à boleia de um ciclo de taxas de juro particularmente baixas sob o enorme guarda-chuva do Banco Central Europeu ou esmagando o investimento do Estado em níveis mínimos.
E pode ainda duvidar-se da sustentabilidade futura desta arquitectura orçamental e da sua resistência a intempéries económicas que, inevitavelmente, chegarão.
Mas o momento ficará inevitavelmente registado na história económica e orçamental de um país que se viciou na acumulação de dívida e que em quatro décadas se viu obrigado a pedir três intervenções financeiras externas pela acumulação de desequilíbrios económicos e financeiros, públicos e privados.
E a história deste documento podia começar e acabar aqui, tal é a relativa insignificância das medidas que apresenta. Isso não será, certamente, um acaso.
Alcançado o nirvana que cunha o slogan das “contas certas”, este é um orçamento em que o governo se compromete o mínimo possível.
Polémicas ficam na gaveta
As maiores mudanças que foram discutidas e até anunciadas como intenções na pré-campanha eleitoral foram taticamente adiadas.
A revisão dos escalões do IRS e uma possível arrumação na bagunça em que se transformaram os benefícios e deduções fiscais desse imposto foram arrumados na gaveta. São mexidas que geram sempre grande discussão pública e para satisfazer uma fatia dos contribuintes terão que aborrecer outra fatia.
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E a baixa do IVA da electricidade para a taxa mínima dos 6%, grande bandeira da esquerda nos últimos quatro anos, foi habilmente chutada para Bruxelas. O impacto da medida – 700 a 800 milhões de euros – tornaria este exercício orçamental muito mais complicado e a obrigar a compensações dolorosas que podiam até comprometer a margem destinada ao excedente orçamental. Mário Centeno já o disse sem rodeios: a consolidação orçamental não é compatível com essa redução do IVA.
Há impostos que sobem e taxas que são criadas. Taxas e taxinhas. Trata-se, sobretudo, de impostos ligados ao consumo, mais discretos, cujo impacto está diluído no preço final de produtos e serviços e que não aparecem no recibo de ordenado. E não é inocente que, na sua generalidade, sejam impostos politicamente correctos, daqueles que poucos se atreverão a contestar: embalagens de plástico dos “take away”, tabaco, bebidas açucaradas, imposto sobre o crédito ao consumo, IVA das touradas, agravamento fiscal para o alojamento local em zonas de maior pressão turística. Aqui estará uma receita adicional superior a 60 milhões de euros.
Será por aqui, pela tributação adicional de combustíveis e pela chamada “fiscalidade verde” que futuramente se encontrarão mais receitas para o Estado.
Há benefícios e incentivos novos, também suaves e bem dirigidos. Baixa no IRS para jovens que entram no mercado de trabalho, apoio a famílias com filhos menores de 3 anos e, para as empresas, menos IRC para as unidades mais pequenas e as situadas no interior – tudo pesará cerca de 70 milhões de euros.
A aparente estabilidade escolhida para o IRS esconde uma daquelas medidas clássicas que permitem arrecadar mais receita sem o ónus do aumento das taxas do imposto. Ao actualizar os escalões de rendimento em apenas 0,3%, serão muitos os contribuintes que vão subir de escalão por força de aumentos salariais maiores e pagarão mais imposto.
É daqui, da expectativa de aumentos salariais, que virá o essencial do acréscimo de receita do IRS — 410 milhões de cobrança adicional, um aumento de receita de 3% — num ano em que o próprio governo prevê um crescimento do emprego de 0,6%.
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E será também daqui que virá o essencial do acréscimo da carga fiscal – 0,2 pontos percentuais, passando de 34,9% para 35,1% do PIB, nas contas do relatório orçamental corrigido. Nestas contas do governo, este agravamento vem todo do aumento das contribuições sociais efectivas, os chamados descontos para a Segurança Social.
Recato na nova despesa
Mas foi do lado da despesa que Mário Centeno colocou mais travões. Para a função pública, este orçamento já tinha, à partida, os encargos decorrentes das decisões dos últimos anos de descongelamento e revisão das carreiras e progressões – que tem um impacto previsto de 654 milhões de euros brutos na despesa anual.
Esta evolução vai reflectir-se num aumento efectivo da remuneração dos trabalhadores do Estado e é o argumento do governo para que a proposta de revisão da tabela salarial seja de apenas 0,3%. É este o número que está em cima da mesa nas negociações com os sindicatos, que ainda não terminaram, e que poderá servir de moeda de troca nas negociações para a aprovação parlamentar do orçamento com as bancadas do PCP e do Bloco de Esquerda.
Este aumento de 0,3% implicará um acréscimo de 70 milhões de euros nas despesas com pessoal do Estado. Se o aumento for maior, este montante terá uma evolução proporcional e constitui uma despesa rígida, uma vez que o Estado não faz despedimentos.
Para negociação parlamentar está também a possibilidade de um aumento extraordinário das pensões mais baixas. Para já, as contas estão feitas para a aplicação do aumento de pensões decorrente da lei, que para o ano será de 0,7%.
Na despesa estão também comprometidos mais 600 milhões de euros para a recapitalização do Novo Banco, através do Fundo de Recapitalização – até se esgotar o limite de 3.890 milhões de euros esta será uma sina anual –, 160 milhões decorrentes da decisão judicial que condenou a Câmara Municipal de Lisboa no caso Bragaparques/terrenos da Feira Popular e 80 milhões de indemnização da IP pelo cancelamento da subconcessão Algarve Litoral.
Sexo ideológico indefinido
Com encargos e compromissos pesados que transitam do passado e com mudanças pouco mais do que cirúrgicas na receita e na despesa, este é um orçamento onde não há sectores da sociedade claramente beneficiados ou penalizados.
É um orçamento “nem-nem”, de sexo ideológico indefinido, que agrada e desagrada simultaneamente à direita e à esquerda.
À direita critica-se o contínuo aumento da carga fiscal e a falta de ambição ou de visão de uma qualquer ideia que possa contribuir para a competitividade da economia – as medidas de apoio às empresas são também residuais.
Mas as críticas da direita estarão sempre condicionadas por estarmos perante o primeiro orçamento que promete um sinal positivo na última linha do saldo entre receitas e despesas.
À esquerda critica-se a obsessão com o défice, agora transformada numa obsessão com o superávite, o dinheiro que não se atribui a aumentos maiores dos funcionários públicos, a descapitalização de alguns serviços do Estado e a exiguidade do aumento das pensões.
Mas também aqui há um condicionamento importante. O compromisso político vem de trás, a herança é comum e a aprovação do orçamento deverá ser feita à esquerda, sendo pouco sensato carregar no tom de críticas de difícil recuo, arriscando depois perder a face.
É um documento de parcelas relativamente banais. Como um daqueles espectáculos em que o artista se esforça pouco no enredo porque sabe que tem uma óptima “punch line” para encerrar. É um orçamento que se limita a seguir na corrente dos últimos anos, feito para que a última linha do Excel possa brilhar, sozinha em palco: saldo orçamental positivo de 533 milhões de euros.
É, por isso, um orçamento feito para que Mário Centeno possa também brilhar. Agora, enquanto estiver na função, só tem de o executar da mesma forma dos anteriores, utilizando cativações que mantêm o nível do ano passado. Aos colegas de governo resta-lhes serem todos Centeno.