“Isto hoje é todos os dias,
Temos o caldo entornado,
Há tiros e correrias,
Volta e meia arroz queimado,
Suspensão de garantias.”
Secção Alegre do jornal “O Século, 15 de Julho de 1917
Tomás de Mello Breyner regressara de Madrid há apenas dois dias e encontrou a capital virada do avesso. A cidade estava sem pão; sucediam-se os desacatos nas ruas. “E ainda a procissão vai na praça…”, escreveu o 4º Conde de Mafra, médico e professor, no seu diário, a 19 de maio de 1917. Dois dias depois, passou a manhã chuvosa a trabalhar na Cruz Vermelha da Junqueira e no Hospital de São José. Foi aqui que se apercebeu, pela primeira vez, da dimensão dos acontecimentos. “Foi terrível a noite de ontem para hoje. O povo não tendo pão amotinou-se e atacou padarias, mercearias e mais depósitos de comestíveis. A polícia não pôde ou não quis acudir. Há muitos feridos e mortos. No hospital vi eu 15 cadáveres. Um horror! Pobre povo!”
Na verdade, desde março que, um pouco por todo o país, emergiam situações que prenunciavam a convulsão social que se verificou sobretudo em maio e em julho e que se prolongou, ainda que mitigada, até depois do golpe militar de Sidónio Pais (5 de dezembro). Ao mesmo tempo que milhares de jovens militares partiam para a Frente Ocidental da Grande Guerra, nos cais de Alcântara e de Santa Apolónia, os jornais nacionais davam conta de que as câmaras, os governos civis, os administradores dos concelhos, os sindicatos agrícolas e as firmas comerciais, que habitualmente negociavam com cereais, tinham feito chegar ao Governo um protesto pela fixação do preço do milho. Em causa, defenderam junto da comissão de subsistências, estava um rol de prejuízos, pois já tinham adquirido e vendido o cereal por um preço muito superior. E avisaram: o milho estava a desaparecer dos mercados e das mercearias.
Depois do milho, foi o trigo – ingredientes indispensáveis para o primeiro bem alimentar dos portugueses: o pão. A sua carência traduziu-se em todo o país: em Castanheira de Pêra não havia nem um para venda; na Trafaria, os habitantes foram tomados por febres, logo apontadas à má qualidade do pão que ali tinha sido vendido; em Coimbra, todo o milho existente foi arrestado pela GNR, que o enviou depois para a capital; no mercado de Gondomar o preço das hortaliças subia diariamente; várias padarias da Azambuja foram assaltadas e os seus proprietários agredidos; em Vouzela, os sinos da igreja tocaram a rebate e a população saiu à rua, em fúria, quando se soube que a Guarda estava a confiscar sacos de milho e de centeio em algumas freguesias; em Braga, a Associação de Classe dos Caixeiros organizou uma reunião pública para discutir a carestia de vida. E, na Câmara dos Deputados, o Governo defendia-se, com o ministro do Trabalho, António Maria da Silva, antigo carbonário e então Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, a refutar acusações de imprevidente. Há muito que sabia da falta de trigo no país, dizia. Mas isso não valia de muito à população.
Há cerca de duas dezenas de sessões em que os temas das subsistências, do açambarcamento e dos preços dos víveres dominavam a agenda dos deputados. As importações tinham diminuído para um nível irrisório; a agricultura soçobrava e o que era plantado e colhido servia para alimentar o esforço de guerra; o comércio externo ficara moribundo com a participação na guerra; a inflação disparou; aumentou o custo de produtos e bens; e o desemprego fabril tornou-se galopante. Ao longo do ano, o preço do trigo aumentou 73%; do milho, 54%; do arroz, 63%; do feijão, 27%; da fava, 46%, da batata, 20%; e do pão, 61%, escreveu Vasco Pulido Valente em “’A revolta dos abastecimentos’: Lisboa, Maio de 1917” (1977). Sem “remédios oficiais”, como o racionamento, por exemplo, observou o historiador, mantinham-se as condições propícias para a explosão de assaltos, tumultos, motins e revoltas.
Ao desleixo do Governo somou-se a demissão da comissão de subsistências, ainda na primeira semana de março. E para serenar os ânimos na Câmara dos Deputados, o Executivo de União Sagrada, a coligação bipartidária de Democráticos e Evolucionistas, liderada por António José de Almeida, avançou com a costumeira moção de confiança – previsivelmente aprovada. De pouco valeu. Em Abril a aliança sagrada rompeu-se e os Democráticos ficaram alegremente isolados no Governo, chefiados por Afonso Costa.
Fora dos corredores de São Bento, a revolta da população crescia. A fome alastrava. Ainda em março, alguns habitantes de Campolide decidiram abater uma vitela com cerca de 30 quilos, procurando depois repartir a carne. Mas a polícia, chamada ao local, apreendeu a carcaça do animal, por ordem do governo civil, e entregou-a a uma associação de órfãos, segundo “O Século”. Entretanto, a carne de borrego e de porco ascendia a preços incomportáveis nos talhos de Lisboa. E o vapor grego que estava fundeado no Tejo desde o dia 10 de março, carregado com quase 4500 toneladas de trigo, mantinha toda a sua carga intacta no dia 18.
Em muitas localidades do Norte do país os sinos tocavam a rebate, a chamar a população, sempre que surgia a Guarda Republicana com ordens de requisição do milho – medida imposta pelo Governo para sustentar a Manutenção Militar.
Nas estações ferroviárias o povo tentava impedir o embarque dos sacos de cereais, mas a resistência pouco valia perante as cargas da GNR.
No Porto, abril começou com uma vaga de assaltos às vendedoras ambulantes de pão, às padarias e aos vendedores de hortaliças. A Guarda prendeu um lavrador, um bombeiro e três peixeiras. Mais a Sul, no Algarve, os comerciantes espanhóis açambarcavam a sardinha e a amêijoa que chegavam aos portos, transportando-as para o outro lado da fronteira. E em Nelas, na estação ferroviária, continuava imóvel há muitos dias um comboio com os vagões lotados de batatas, destinadas à venda em Lisboa – a deterioração estava em curso.
Assaltos, bombas e tiroteios
Em maio de 1917 a fome era o grande flagelo do país. À falta de trigo, o novo ministro do Trabalho, Eduardo Lima Basto, respondeu com a possibilidade de os padeiros misturarem farinha de aveia e de fava para o fabrico do pão. O alimento tornou-se intragável, contaram muitos leitores do “Diário de Notícias” e d’ “O Século”, que se deslocavam propositadamente às redações destes jornais para mostrar pães duros como a pedra e alguns com lagartas. “Parecia uma argamassa de cores diferentes, que só um estômago de avestruz poderia digerir”, escreveu um jornalista do “Diário de Notícias”.
No dia 12, sábado, duas galeras e duas carroças carregadas com 70 sacas de farinha foram impedidas de entrar em Lisboa pela Guarda Fiscal. A notícia chegou a Benfica, cujos sinos da igreja local tocaram a convocar os habitantes. Em tropel, apoderaram-se de grande parte das sacas. Na Mouraria, no Campo Grande e na Avenida da República as padarias não escaparam a assaltos. No dia seguinte, a desordem deflagrou noutros pontos da cidade: Graça, Castelo, Alfama, Anjos, Campo de Ourique, Alcântara e Belém. Na rua de Santo António da Glória, não muito longe da Praça dos Restauradores, a padaria Primavera foi inicialmente apedrejada. Depois, quando o bando de famintos se apercebeu de que a loja tinha pão, rebentou com a porta e limpou tudo o que encontrou.
A fome levou a que as padarias não fossem o alvo exclusivo da população. Nestes primeiros dias de maio, vários armazéns de bacalhau foram assaltados. E quando a população, à falta de pão, procurou comprar batatas, deparou-se com uma parca oferta nos mercados e nas vendas. Ao mesmo tempo, os jornais começaram a ostentar colunas inteiras em branco na cobertura das “Subsistências” – a censura prévia, decretada em março e justificada com a intervenção na I Guerra Mundial, não servia apenas assuntos militares.
As reações inconsequentes do Governo prosseguiam: mantinha-se a ordem, dada à GNR e à polícia, de reprimir os protestos; e no dia 14 saiu um decreto que proibia o fabrico de pastéis e bolos e estipulava ainda a obrigatoriedade de declarar, junto do Ministério do Trabalho, qualquer quantidade de trigo, milho e farinhas existentes em Lisboa. Tratava-se dos bens mais escassos. Nas portas de todas as padarias pertencentes à Nova Companhia Nacional de Moagem liam-se avisos de que não havia pão para venda por falta de farinhas; de São Pedro da Cova chegavam notícias de habitantes a definhar com fome; a maioria dos mercados agrícolas da capital estavam fechados; e os operários corticeiros de Almada fizeram uma paralisação em protesto contra o aumento do quilo do pão de milho. Em todo o país faltava o açúcar, o gás, o algodão e o carvão.
Os assaltos diários às poucas padarias independentes que tinham algum pão para venda levaram a União dos Operários Panificadores a apelar ao Ministério do Trabalho e ao governo civil de Lisboa a proteção dos estabelecimentos. Os padeiros ameaçavam fechar portas e regressar às suas terras. O pedido foi ouvido. Mas os elementos da GNR e da polícia destacados para as padarias não conseguiam fazer frente às centenas de pessoas que começavam a formar filas logo às oito da noite, aguardando a abertura das lojas às cinco ou seis da manhã.
Em apenas um dia, a 19, o preço das batatas mais do que triplicou, subindo abruptamente de seis centavos para 20 centavos. A população desesperou. No dia seguinte, um domingo, a partir do fim da tarde, Lisboa foi varrida por grupos de populares que assaltaram padarias, mercearias e armazéns, prosseguindo no dia seguinte uma série de tumultos que ficaram conhecidos como a “revolta da batata”. À intervenção da Guarda, os populares responderam com pancadaria, tiros e bombas. Ainda nessa noite, dezenas de feridos, transportados em braços, deram entrada nos hospitais da Estrela e de São José.
O caos espalhou-se: na rua dos Bacalhoeiros montaram-se barricadas; no Rossio, nos largos do Carmo e de São Domingos e em Campo de Ourique registaram-se tiroteios e rebentaram bombas. Perante os tumultos, o Governo decretou o estado de sítio e a suspensão de garantias, proibindo qualquer ajuntamento nos espaços públicos e decretando o recolher obrigatório entre as 23h00 e as cinco da manhã. “De tarde começou a circular o boato de que havia desordem na cidade. Com efeito as mercearias foram assaltadas pelo povo que tem fome. Não há pão por imprevidência dos governantes. Sofram-lhe agora as consequências”, escreveu Tomás de Mello Breyner no seu diário.
Depois de suspensas as garantias, o ministro da Justiça, o advogado portuense Alexandre Braga, chamou os diretores dos jornais a sua casa, à noite. Pretendia justificar a ordem governamental e aproveitou para “esclarecer” que a razão maior para os acontecimentos que se arrastavam desde março estava na guerra e na sua evolução (uma “surpresa” para o Governo). Interessava, portanto, ao Executivo, sacudir qualquer responsabilidade pela tragédia que assolara o país.
Nem o estado de sítio nem os argumentos de Alexandre Braga refrearam a população, faminta e sem poder de compra para os bens alimentares. Na manhã do dia 21, uma multidão deslocou-se para as zonas mais populosas da capital, como o Poço do Bispo, Olivais, Beato, Graça e Benfica, em busca de pão, bacalhau, azeite, feijão. As poucas carroças de hortaliças que se dirigiam para o mercado da Praça da Figueira foram assaltadas ainda antes de chegarem ao seu destino; nos armazéns do Poço do Bispo e do Beato as torneiras dos cascos de vinho e de azeite foram abertas pelos assaltantes, que deixaram jorrar os liquídos para o Tejo; nos depósitos da Jerónymo Martins & Filho só ficaram as sacas de alpista.
Somente à noite houve sossego, com as patrulhas da Guarda Fiscal e da GNR. Mas no Tejo, junto a Santos, o vapor “Arrábida” foi assaltado, durante a madrugada, por um grupo de homens que chegaram à embarcação em botes, munidos de pistolas e bombas. Procuravam roubar o peixe a bordo, destinado ao mercado da Ribeira, mas apenas conseguiram levar meia centena de pescadas, pois a maioria do pescado tinha já sido transportado para terra. E fora de Lisboa, prosseguiam os assaltos a estabelecimentos comerciais – Almada, Parede, Carcavelos, Azambuja, Alhandra, Cascais e Póvoa de Santa Iria –, cujos proprietários eram sovados se resistissem à multidão.
No rescaldo dos dois dias de tumultos contavam-se 350 presos, muitos dos quais foram logo levados para fragatas fundeadas no Tejo e para o forte de Caxias, e mais de duas dezenas de mortos. Os menores que já estavam nos navios, cerca de quatro dezenas, foram libertados por ordem de Leote do Rêgo, então chefe da Divisão Naval; e as mulheres e os menores de 15 anos foram encarcerados no edifício do Governo Civil.
No “Livro de Registo de Capturas Enviadas a Juízo” de maio de 1917, pertencente ao arquivo do Governo Civil de Lisboa, os assaltos a padarias surgem pela primeira vez no quadro dos “motivos” a 13 de maio. E repetem-se nas semanas seguintes, nas quais aparecem também detenções motivadas por furtos a diversos estabelecimentos comerciais e por ameaças à Guarda e à polícia. Juntamente com os presos, foram também apreendidos os bens furtados: sacos de arroz, chouriços, sabão macaco, bacalhaus, garrafas de vinho do Porto, massa, conservas, bolos, feijão, vermute, toucinho, pacotes de chá. No dia 21 a polícia conseguiu recuperar botas, alpercatas, ovos, tachos, vassouras, grão, bolachas, cevada, garrafas de conhaque e amendoim – tudo escondido nos locais mais surpreendentes: içados no interior das chaminés, ocultos entre os colchões e os enxergões, nas capoeiras, nos saguões, enterrados nos quintais.
A 22, terça-feira, Lisboa regressava à “normalidade”, escrevia “O Século”. Não era bem assim. Continuavam a ser presas dezenas de pessoas; muitos populares postavam-se defronte da morgue, aguardando a saída dos funerais; e rebentavam petardos na Baixa. A par da repressão, o Governo decidiu patrocinar uma ação “espontânea” em sua defesa: nas ruas da cidade um carro lançou papéis dirigidos ao “Povo de Lisboa” e assinados pelos “Centros e grupos civis defensores da República”. “O momento é difícil e angustioso para todos, mas os sacrifícios que a situação vos impõe nada são comparados com as dificuldades ainda maiores que há muito tempo vêm sofrendo os povos aliados e até alguns dos neutrais. O atual Governo já deu, e está dando, todas as providências para que não falte o pão nem faltem os géneros de primeira necessidade”, lia-se. A propaganda teve apenas um efeito: o automóvel e os seus ocupantes foram atacados junto à morgue e tiveram de se defender a tiro.
Numa outra frente, o Contra-Almirante Leote do Rêgo exortava os marinheiros a manifestar solidariedade e união contra aqueles que “maquinam” contra a República – um pedido que não serenava nada nem ninguém. E na Câmara dos Deputados, o presidente do Ministério, Afonso Costa, que tinha a sua casa na rua Duque de Palmela protegida por uma força de cavalaria da GNR, acusou anarquistas e sindicalistas de instigarem as revoltas e os assaltos. Disse desconhecer os motivos para o aumento brutal do preço da batata; defendeu a limitação do consumo do pão; e agradeceu a moção de confiança apresentada e aprovada pela maioria parlamentar de Evolucionistas e Democráticos. Na bancada dos Unionistas, Brito Camacho, líder do partido, criticou a imprevidência do Governo, que não acautelara a desordem face à escassez de pão, e descartou a atribuição de qualquer “natureza política” aos motins. E José Costa Júnior, deputado do Partido Socialista, denunciou a “inaudita selvajaria” da repressão sobre os populares, observando que na noite do dia 21 uma força de infantaria dispersara “a tiro” a multidão concentrada no Rossio. “Sem aviso prévio não! Houve um toque de clarim”, ouviu-se da bancada dos Democráticos.
A 24, um dia “quentíssmo”, segundo Tomás de Mello Breyner, mantinham-se suspensas as garantias e a cidade continuava a ser patrulhada por forças do Exército e da GNR. Os elétricos só podiam circular até às 21h00 e o tráfego automóvel estava proibido durante toda a noite. As padarias permaneciam fechadas, sem bens para venda; e nos bairros operários a Guarda fazia buscas domiciliárias e prendia homens e mulheres. No seu diário, o médico escreveu: “Fui de manhã ao Hospital e dali visitar à rua dos Anjos 155 – 1º a costureira Amália que está tão doentinha. Tem tido hemoptises. Além disso um irmão dela vai partir amanhã para a guerra. Que grande infâmia é esta nossa intervenção! Ninguém a pediu, é uma coisa forçada para que meia dúzia de malandros negoceiem e enriquecem à custa da carne humana que neste caso é a dos nossos irmãos. Arre malandros!”
Até ao dia 31, quando o Governo decretou o fim do estado de sítio e anunciou a chegada de um navio proveniente dos EUA com 1660 sacas de farinha de trigo, abriram-se algumas exceções na ordem do recolher obrigatório: os espetáculos podiam agora terminar às 24h00 e os cafés, leitarias e restaurantes tinham permissão para ficar abertos até essa hora. Quem transgredia era preso e encarcerado no edifício do governo civil, cuja garagem expelia um cheiro nauseabundo, oriundo dos toucinhos e dos bacalhaus apreendidos há muitos dias aos assaltantes.
Maio terminou com as prisões quase lotadas e o Governo, depois de reprimir com cargas os protestos da população, criou uma comissão de apoio aos órfãos e às viúvas dos motins de 20 e 21 de maio. A “revolta da batata” consistiu numa manifestação “inorgânica”, escreveu Pulido Valente no artigo acima citado, provocada pela “inflacção e pelas carências”, mas igualmente pelo “isolamento do sistema político, da sociedade civil e pela consequente impossibilidade de ‘cristalização’ institucional do descontentamento ‘popular'”. “O ódio do ‘povo’ com fome”, acrescentou, “não teve, assim, por objecto o Governo ou o regime, mas os responsáveis directos pelas suas dificuldades: os padeiros que não coziam e não vendiam o pão, os merceeiros que vendiam caro.”
A fome manteve-se. Por isso, a trégua durou apenas um mês.
O “Verão Quente” de 1917
Em julho recomeçaram os assaltos a estabelecimentos comerciais, em Lisboa e no Porto. E não só: as reivindicações dos trabalhadores de diversos setores por aumentos salariais avançaram para paralisações e greves. Foi a partir de então que, por ordem de Afonso Costa, se assistiu à prisão massiva de operários e dirigentes de organizações sindicais. E o Governo voltou a suspender as garantias.
Alguma bibliografia aponta que as desordens tiveram início em Matosinhos, a 8 de julho. Houve desordem, de facto, mas foi uma briga de taberna que terminou com a morte de um militar de Infantaria 18. Num arraial em São Tiago de Custóias, um grupo de homens, já embriagados, entrou numa taberna, pediu vinho e começou a lançar piropos a uma mulher que ali estava. Foi o rastilho. A casa foi virada do avesso com pancadaria, facadas e tiros – um deles atingiu o militar – e daí a pouco foram todos levados para a prisão pelo praças de cavalaria da GNR do Porto.
Nessa altura, a greve dos trabalhadores da construção civil tinha já um dia (começara a 7). Mas foi a partir de 12 que, sobretudo em Lisboa, irrompeu uma vaga de violência, com os grevistas a resistir à Guarda e à polícia com bombas e armas de fogo. Nesse dia, os operários das fábricas do Barreiro paralisaram, em solidariedade com os da capital. O Governo quis garrotar as lutas sindicais. À tarde, a GNR cercou e atacou a sede da Federação da Construção Civil, na Calçada do Combro, onde estavam reunidos alguns sindicalistas. Quando os grevistas souberam do que estava a acontecer, acorreram ao local e nas ruas circundantes, onde os lojistas fecharam rapidamente as portas, iniciou-se uma batalha campal que resultou em dezenas de feridos e mortos.
A balbúrdia retornara: os estabelecimentos comerciais, os teatros e os animatógrafos cerraram as portas; e os carros dos bombeiros percorriam as ruas em grande velocidade, transportando os feridos para os hospitais e postos de socorro. Da Calçada do Combro, as revoltas propagaram-se a outras zonas: no Largo de São Carlos deu-se um tiroteio entre populares e as forças da ordem; Constantino Mendes, um conhecido frequentador dos cafés do Chiado, foi atingido por um tiro à porta da Brasileira; um trabalhador da Companhia do Gás, que se dirigia para o Teatro República, onde estava em cena a revista “Lísbia Amada”, foi atingido na cabeça por uma bala perdida; o proprietário de uma casa de pianos, junto ao Teatro Ginásio, foi morto quando estava a fechar as portas da sua loja; uma corista do Teatro República, apanhada no meio da troca de tiros, morreu quando descia a Rua Garrett; centenas de homens, mulheres e crianças ficaram feridos devido aos estilhaços das bombas. Até “O Século” escreveu que os militares da GNR estavam de “cabeça perdida”, tendo mesmo disparado contra as oficinas do jornal. Até às duas da manhã ainda se ouviam as detonações das bombas e os tiroteios. Milhares de pessoas foram presas – umas encaminhadas para o Arsenal da Marinha, onde esperavam o embarque em navios de guerra; outras lotaram as celas do Forte da Ameixoeira.
Afonso Costa convocou uma reunião urgente do Governo, que decorreu de madrugada no Ministério da Guerra, e decidiu-se decretar o estado de sítio em Lisboa e em alguns concelhos limítrofes. Quando a cidade acordou, a 13, as esquinas das ruas centrais já ostentavam os editais da suspensão de garantias, afixados por rapazes durante a madrugada. Assinado por António Pereira D’Eça, comandante da 1ª Divisão do Exército, ex-ministro da Guerra, ex-Governador de Angola e líder de uma das forças expedicionárias que combateu os alemães em África, o decreto notava que era “indispensável adoptar providências excepcionais para a manutenção da ordem pública na cidade de Lisboa e seu termo”. Foram proibidos os ajuntamentos; determinou-se que as lojas só podiam estar abertas até às 21h00; e estipulou-se que as coletividades, grémios, associações e clubes podiam funcionar apenas até ao pôr do sol. “Estão suspensas as garantias. Isto agora é o pão nosso de cada dia. E assim há-de ir até que alguém tome conta desta borracheira. Calor horrível. 32º à sombra e vento leste”, escrevia Tomás de Mello Breyner.
Apesar do estado de sítio e das patrulhas de militares que se viam em toda a cidade, a agitação continuou, embora os transgressores do recolher obrigatório fossem quase todos músicos, atores e artistas espanholas que trabalhavam no Salão Foz e que, devido aos ensaios, eram apanhados nas ruas depois das 23h00.
A 16 e 17 de julho, terça e quarta-feira, assistiu-se a uma paralisação total. Não houve jornais; os elétricos pararam; as lojas fecharam; os operários deixaram os seus postos; e à noite, mais tiroteios entre a Guarda e civis. “À noite disse-me o João d’ Oliveira que na Baixa continua uma luta tremenda. Há mortos e feridos”, registou Mello Breyner no dia 17.
Na cozinha da Sopa dos Pobres, criada por iniciativa d’ “O Século”, foram servidos, só em Lisboa, 985 litros de sopa, feita com batata, arroz, feijão branco e banha de porco. No dia seguinte, 995 litros. E em Setembro, ascenderam aos 1000 litros diários.
O estado de sítio foi suspenso a 28 de julho. No mês seguinte, enquanto o Governo discutia no Senado a intervenção na guerra, defendendo que a carestia e os “sacrifícios” iriam culminar em “largas compensações” (Norton de Matos, ministro da Guerra, estava tão empolgado com a presença do Corpo Expedicionário Português na Frente Ocidental que anunciou mesmo o envio de “mais ou menos 48 mil” militares para a Flandres), estavam já a ser preparadas novas paralisações.
“E, depois, é a fome”
A 4 de setembro, Mello Breyner escreveu que os novos motins e as prisões recordavam-lhe “a época que precedeu o regicídio”. Tudo começou no dia 1, quando os trabalhadores dos correios e telégrafos iniciaram uma greve geral. O Governo, irado, determinou a mobilização de todos os funcionários e, argumentando com o estado de guerra, ordenou que todos eles estariam sujeitos às leis militares. Ou seja, os grevistas seriam considerados desertores e consequentemente presos. Mais: qualquer material danificado seria tido como crime de destruição de bens militares. Nos primeiros dias da greve foram levados para a fragata “D. Fernando”, ancorada no Tejo, 345 presos, todos eles empregados dos correios e telégrafos. Dali foram trasladados para o navio “Lourenço Marques”.
No Terreiro do Paço, as estações centrais, à esquina com a Rua do Arsenal, passaram a ser vigiadas pela Guarda; a entrega das cartas estava a ser feita por polícias; e o transporte de correspondência para fora da cidade era feito por camionetas do Exército, patrulhadas por tropas. Mas nada disto evitou as montanhas de cartas e encomendas nos postos, pelo que Norton de Matos publicou nos jornais avisos de vagas para carteiros e boletineiros.
A luta sindical aumentou o trabalho dos censores. Era somente permitido publicar os comunicados do Ministério da Guerra e fotografias dos grevistas presos, escoltados pela GNR e levados em fila para o Terreiro do Paço, onde embarcavam em navios rumo a Caxias. A ação da censura prévia sobre as notícias da greve levou os responsáveis pelos jornais a tomarem uma decisão: a partir de 5 de setembro recusaram publicar as notas oficiais do Governo sobre a paralisação, assim como os comunicados sobre as operações de guerra. Os meios repressivos não produziam os efeitos desejados pelo Executivo. E isso tornou-se mais evidente quando, em todo o país, foram convocadas greves gerais de solidariedade para com os grevistas presos: pararam os trabalhadores das tipografias, da construção civil, da Companhia do Gás e da Água, dos teatros, das minas de São Pedro da Cova, dos elétricos, comboios e automóveis de aluguer e das lojas. Algumas cidades pareciam desertas, apenas vigiadas por forças de infantaria e cavalaria.
Apenas a partir do dia 15, os correios e telégrafos recomeçaram o seu total funcionamento, retomando as ligações de Lisboa com o país e o estrangeiro. A escassez de bens e produtos estava, porém, longe de terminar. Os preços continuavam a subir. A carne só podia ser comprada em certos dias da semana e o seu custo ia aumentando. O mesmo acontecia com o leite, o bacalhau, o pão e a azeitona. Da Madeira chegavam, pela primeira vez, notícias de fome.
Em outubro, o pão voltou a escassear nas padarias de Lisboa. Quando havia para venda, era pouco e esgotava logo ao raiar do dia. Em toda a cidade quadrilhas de gatunos, como os “Filhos da Noite” e os “Mão Fatal ” (este último também famoso nas trincheiras da Flandres por roubos aos expedicionários), apavoravam comerciantes e residentes.
A 28 de outubro os jornais informavam que o trigo nacional que restava nos armazéns poderia ser usado por apenas mais umas semanas. “E, depois, é a fome”, lia-se n’ “O Século”. Avizinhava-se uma nova crise aguda de subsistências. Os administradores dos concelhos começaram, então, a proibir a saída de bens das suas freguesias – um habitante de Lisboa, que visitara a família na sua terra natal, queixava-se de que tinham impedido os seus familiares de lhe oferecerem um saco de feijão. Em Brotas, no Alentejo, há mais de três semanas que faltava o azeite e os bens de primeira necessidade tinham preços altíssimos; o custo do bacalhau aumentara para um escudo e 50 centavos o quilo; subiam os preços do açúcar, do arroz, do azeite, do carvão; o pão era de tão má qualidade que aqueles que conseguiam comprá-lo chegavam a encontrar surpresas no interior, como bocados de cordas e papel; em novembro, deu-se mais uma vaga de assaltos a lojas comerciais; e em dezembro, a população do Porto assaltou casas e estabelecimentos, enquanto em Gondomar e Ermesinde sucediam-se os tumultos nas ruas.
1917 terminou quase como começou: mantinha-se a carestia. A única grande alteração, que viria a mudar o país político, aconteceu a 5 de dezembro, quando Sidónio Pais liderou um golpe militar que derrubou o Governo de União Sagrada. Iniciava-se um novo ciclo na história da I República.