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Puta de Filosofia, acabado de chegar às livrarias, não é um romance sobre a história de José Sócrates, alerta o escritor português Carlos Alberto Machado. É verdade que há uma personagem que é primeiro-ministro, que prometeu 150 mil empregos, que está envolvido em esquemas de corrupção, uso de bancos para proveito próprio, que tem altercações com jornalistas e com inspetores da polícia, que tem uma parte dos serviços secretos a seu mando e que está metido em negócios ruinosos com “têgêvês”, “bancos”, “auto-estradas” e “outlets megalómanos”. Mas nem o livro é só isso — é um “romance político-policial, polvilhado por cenas eróticas, literárias e gastronómicas” — nem o “Primeiro”, a certo altura tratado só por “animal feroz”, é apenas Sócrates.
“Se nós reduzíssemos a figura do Primeiro do Puta de Filosofia ao José Sócrates estávamos a ser redutores, a retirar capacidade de leitura do livro. Se eu quisesse que fosse o Sócrates punha lá o nome dele, não tinha problema com isso”, diz o autor, acrescentando: “Gostava de saber como é que um tipo mais afastado de Portugal reagiria à descrição de um tipo destes. Se pensar no Lula [da Silva], ele tem muito de Sócrates. Ou o Sócrates tem muito de Lula. E há mais”, diz o autor.
No livro, a personagem “Primeiro” é perseguida por Søren, inspetor pouco ortodoxo que vai dividindo o tempo entre os prazeres diários — os petiscos na tasca do “sôr Miguelito”, as mulheres, os livros que vai lendo anarquicamente e aos bocados — e o trabalho na polícia. Entre um e outro estão “gangsters russos”, “jornalistas-salvo-seja”, superiores hierárquicos e gente do SIS (serviços secretos). Há tiros, abundantes descrições gastronómicas e eróticas e a caça a um homem de quem Søren sabe ou presume saber o seguinte:
“O nosso Primeiro é o cérebro, condutor e principal beneficiário de uma poderosa rede criminosa que actua em diversas áreas: uso do banco do Estado, dirigido por amigalhaços de confiança, para investimentos de milhões em projetos frágeis, falidos ou mesmo inexistentes; bens imobiliários de enorme valor, adquiridos em condições ilegais, seja por aceitação de luvas altíssimas, seja por tráfico de influências; especulação fraudulenta, com uso de avultadas quantias de dinheiros públicos, e o conluio de grandes Bancos privados, pilares do sistema, com os seus “sacos azuis” (…). E isto, para já, mete Governo, ‘olhos fechados’ e ‘assobios para o lado’ do PR, Banco Central, bancos privados e grandes empresas do Estado ou comparticipadas, alta magistratura, chefias de polícias, intelligentsia e demais povo miudinho: deputados, dirigentes partidários (do partido do Primeiro mas também dos da oposição), jornalistas, advogados, polícias e por aí fora…
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Por telefone, já que Carlos Alberto Machado vive em Lajes do Pico, a vila da ilha do Pico com 300 habitantes onde em plena crise da troika fundou uma editora de livros (a Companhia das Ilhas) com Sara Santos, o romancista, poeta e dramaturgo de 63 anos diz que gostava que a obra “não fosse identificada como uma brincadeira sobre o Sócrates mas acaba por ser. Era interessante que pudessem ver a linguagem, o ritmo do livro, o permanente flashback, os paralelismos, as divagações filosóficas”. Isto porque o livro “é quase um guião de cinema, um belíssimo guião para um filme, perdoem-me a vaidade… Está lá tudo”. Na entrevista, o autor fala ainda das mudanças no país nos últimos anos, dos romances dos autores portugueses mais novos que ele (regra geral, diz, são “uma coisa muito bem feitinha, muito certinha, sem arriscar nada”), do receio dos artistas falarem sobre o presente e de… culinária.
Recorda-se do dia em que decidiu escrever um livro com o Portugal dos últimos anos em cenário?
Eu comecei esse livro, aliás está lá escrito, em 2010. Sem eu saber muito bem porquê, foi um ano muito produtivo para mim em termos de escrita. Agora as motivações… não havia nenhuma em especial. Também já não me recordo exatamente do início da escrita da livro. Passaram-se muitos anos, não é? Ele foi ficando, de vez em quando era revisitado — aquelas coisas de melhorar aqui e acoli — e é um pouco isso. Não há uma história muito particular.
O retrato que faz do país nesta ficção, em particular dos anos imediatamente anteriores a 2010, é desolador. A dada altura escreve: “No ancien régime, os mais ricos eram proprietários de enormes empresas e de grupos de empresas, agora arriscamo-nos a ter apenas especuladores de todo o tipo e uns multi-bilionários ocupados em gerir o dinheiro que nos roubaram. País em crise e quem paga é a arraia-miúda. Não como sempre foi, agora é pior”. O que é que mudou mais?
Se o livro tivesse sido publicado na altura em que ele teve uma primeira versão final, em 2010, acho que algumas pessoas não leriam o livro por estarmos todos um bocado envolvidos nas coisas. E por a muitas pessoas ainda parecer que a realidade que vivíamos era um bocado ficção. No fundo, no fundo, se calhar muita gente — não sei se a maioria ou não — acreditaria que os níveis de apodrecimento do modo dos poderes se manifestarem pertencia um bocado à cultura cinematográfica americana, era uma coisa dos anos 20 dos Estados Unidos. Passados oito anos, com tudo o que foi sucedendo daí para cá, eu creio que as pessoas até acharão que o livro é muito pobrezinho nesses pontos de vista porque há coisas muito piores do que aquelas que são de algum modo mencionadas no livro. Eu já não escreveria o livro daquela maneira, talvez, se o reescrevesse de uma ponta à outra. Mas também eu não quis que o livro fosse [só] sobre isso, se não era outro livro, não escrevia um romance, era outra coisa qualquer.
Refere isso na parte final: “Neste livro podem ser encontrados trechos de livros e de jornais que se leram durante o tempo de escritos — estropiados, torcidos, chamuscados, como manda a arte de bem usar os cestos alheios”. Não queria escrever uma monografia ou um ensaio sobre esses anos, portanto.
Não, não. Com o passar dos anos é fácil olhar para trás e perceber que as grandes análises sobre o que nós somos não foram feitas pelos ensaístas, pelos politólogos (como agora se diz) ou pelos historiadores — foram feitas pela poesia, pelo romance e pela filosofia não imediatista. É assim que nós aprendemos, acho eu. Fazer agora um ensaio sobre essas situações [mencionadas no livro] era ir parar ao Facebook, as pessoas punham-se a discutir o sexo dos anjos, com os prós e contras… E de qualquer modo não é a minha veia. Eu fiz dois ou três ensaios mas de áreas que não têm nada a ver [com a do livro]. Não me interessa ser analista desse ponto de vista sociológico e tal.
“De vez em quando mete-se dentro um desgraçado qualquer. De vez em quando, cai em desgraça um manda-chuva qualquer porque já deixou de ser útil ao sistema e é preciso dar dinheiro a ganhar a outro. De vez em quando, muda-se o partido no Poder e faz-se rolar o leque de beneficiadores e de beneficiados”. As coisas não mudaram tanto assim?
Pois, o livro poderá dar ideia que haveria um mau, por um lado [José Sócrates] e os outros eram bons — embora se façam referências aos bancos e esse tipo de coisas. Se fizesse o livro hoje haveria mais coisas, mais pormenores. Passámos pela troika, há um pós-troika, há as questões mundiais, há o Brasil, a Rússia, a Angola, uma série de outras coisas. O mundo tem-se alterado, acontece muita coisa e as coisas negativas parece que se entrelaçam.
Comecei por partir de uma reportagem do Expresso e fui arrancando pelas várias fugas de informação daqui e dacoli, pelos vários leaks de offshores e etc, que puseram a nu com alguma segurança, digamos assim, muitas coisas que julgávamos que apesar de tudo eram um bocado propaganda. Hoje já não se vai para um banco, enquanto cliente, com aquele espírito que se tinha há uns anos em que a gente dizia: epá, o banco apesar de tudo é seguro, é gente honesta, posso confiar. Isso acabou e acabou nestes últimos anos. A minha esposa é ex-bancária e ela dizia-me aqui há uns anos: não penses nisso, os bancos têm uma série de mecanismos de segurança, não é possível fazer certas coisas. É possível fazer certas coisas, do empregado de nível mais baixo ao grande banqueiro. Perdemos a segurança nos bancos, nos CTT, nos hospitais, enfim… perdemos a segurança. Isto tem a ver muito com esses mecanismos de abuso de poder, se quiser, que se foram mostrando mais.
[A “nota” que Carlos Alberto Machado deixou aos “caçadores de influência” que se dediquem a inspecionar o livro:
“Neste livro podem ser encontrados trechos de livros e de jornais que se leram durante o tempo de escrita: estropiados, torcidos, chamuscados ― como manda a arte de bem usar os cestos alheios. Aos vivos, peço benevolência; aos mortos, que se acomodem bem nas suas tumbas. Eis alguns dos involuntários cúmplices, em democrática ordem alfabética: António de Macedo Papança (Conde de Monsarraz), Charles Baudelaire, Eurípides, Fernando Pessoa, Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze, Henrique Monteiro, Homero, José Agostinho Baptista, José Pacheco Pereira, José Quitério, Manuel Maria Carrilho, Marquês de Sade, Pier Paolo Pasolini, Raymond Chandler, Richard Rorty, Umar-i Khayyām, Slavoj Žižek, Søren Kierkegaard, Suetónio, Walter Benjamin e William Shakespeare.”]
Também não saem incólumes os média e os setores político e empresarial. O livro recordou-me aquela discussão antiga da literatura enquanto testemunho do mundo e dos tempos. Era uma coisa por exemplo muito presente na poesia do Jorge de Sena, muito defendida por ele. Foi-se aproximando dessa posição ou continua a gostar de livros que não assumam essa posição crítica sobre os tempos em que são escritos?
Eu, basicamente, o que gosto é de livros. Interessa-me aquela coisa que depois é difícil de definir que é a qualidade. Também aprecio muito, isto é, não ponho de parte à partida, uma posição sobre o local de existência, sobre que rodeia, uma posição mais direta, mais crítica. Aliás, acho que faz falta na literatura portuguesa contemporânea aquilo que chegou a existir em algumas décadas — aquilo que genericamente se chamou de neo-realismo — que era dar voz àqueles que não têm voz. Se virmos a literatura portuguesa contemporânea, não há ninguém que fale dos pobres, isto para ser simplista. Alguém que fale daqueles que não podem ter uma descrição do seu quarto que leve 20 páginas a fazer porque não têm nada lá dentro. Esse tipo de coisa faz falta. Há um livro meu que há de sair daqui a dois anos ou três que é um livro sobre isto: os que não têm voz, os pobres, pobres. Como eu nasci — pobre. Não nasci na classe média nem nada parecido. Chama-se Quintinha Blue e há de ser sobre isso. Acho que faz falta mas não implica, como nas discussões que se tinha sobre o neo-realismo, que a visão que temos do mundo tenha uma transcrição literária unívoca. Nós podemos continuar a escrever como queremos independentemente de sobre que é que escrevemos, das motivações que nos levaram a escrever. Mas também essa discussão hoje em dia já não faz muito sentido. De vez em quando aflora um bocadinho.
As gerações que se seguiram ao neo-realismo ganharam comichão ao ‘real’?
Pois, o problema é que nós… eu hoje vi uma pessoa no Facebook que diz que o Dalí inventou o surrealismo. Estamos neste nível de ignorância. E este nível de ignorância existia nos anos 1940, 1950, por aí fora, quando apelidavam de tudo o que não fosse ou do regime ou presencista ou do Orpheu de neo-realismo. Por vezes chamava-se realismo socialista…. E esses rótulos que vamos colocando nas coisas acabam por meter coisas muito diferenciadas no mesmo saco. Um tipo que possa falar de coisas de outra maneira acho que seria bem-vindo. Agora não se pode dizer: agora só é possível escrever sobre isto. Para isso havia a União Soviética e tal… e já não estamos aí. Mas essa parte do mundo existe e não faz parte da literatura — tirando algumas exceções. Nós não falamos dessas coisas e sobretudo não tomamos esse ponto de vista como um ponto de vista de um romance. Na poesia vê-se mais isso, agora na ficção não acontece tanto. Também não conheço tudo, se calhar há coisas que eu não conheço… Este livro apesar de tudo tem um bocado essa génese: as tascas onde o Søren vai têm um bocado a ver com este ambiente que normalmente passa ao lado. Mas não é um livro sobre isso.
Na própria infância dessa personagem, Søren, transparece uma certa cultura de educação em Portugal? É tratado como menino durante muitos anos, não lhe dizem bem a verdade sobre a realidade em que cresce [uma família em franco declínio económico que tenta manter as aparências de fausto…]?
O Sandy — que é o Søren em criança, adolescente — tem uma estrutura familiar um pouco esquizoide. É uma classe média-baixa decadente que não consegue viver colada ao real. Há esse lado mas não quis tanto vincar isso. Quer o Søren adulto quer o Sandy acabam por ter uma espécie de percurso que pode dizer-se que se inicia numa fase dourada: está tudo bem, é preciso estar bem com essas coisas, andar na descoberta e tudo o mais. E quer um, quer outro atingem um ponto em que aquilo que se poderia chamar de as suas ilusões caem aos pés. Como dizem os brasileiros: caem na real. No fundo, há uma falha absoluta quer num quer noutro.
Qual é essa falha?
Na história da criança/jovem, que corre paralela, é a passagem de uma idade de conforto para cair num poço onde não tem referências nenhumas para se salvar (a morte dos pais, o abandono, a casa caída quase aos bocados). Ele teve um nome [Sandy, um nome de infância] e há ali um momento em que não o tinha e é preciso arranjar um nome para ele próprio e a morte da Fräulein. No caso do adulto é um bocado mais óbvio. A gente não sabe o que é que lhe vai acontecer — o Emmanuel Olivares, a última coisa que lhe diz antes de morrer é que ele é um homem morto. E o Søren diz: é verdade — e o livro acaba aí. Na verdade ele perdeu tudo, perdeu parte do corpo, perdeu ilusões, perdeu os livros, perdeu tudo… É um livro niilista, de certa maneira.
Na vida política há excelentes figuras de ficção
Há uma personagem, o “Primeiro”, claramente inspirada em José Sócrates. Há referências que vão decifrando isso, a dos 150 mil empregos prometidos, dos “tegêvês”, dos “outlets megalómanos”, o epípeto de “animal feroz”, a referência a uma relação conturbada com uma televisão privada que lembra o caso TVI/Manuel Moura Guedes… É uma resposta ao Rentes de Carvalho, que uma vez disse que como personagem romanesca, o Sócrates era uma mina de ouro — e que não percebia como é que nenhum romancista português tinha escrito um livro inspirado nele?
[Ri-se] Não sabia dessa do Rentes. Eu gostava de saber como o que é que um leitor brasileiro, por exemplo — um tipo mais afastado de Portugal –, reagiria à descrição de um tipo desses, de um conjunto de factos e situações que nós podemos reconhecer e identificar com alguém concreto. Se reparar, o romance não tem localização geográfica, embora haja evidentemente coisas que apontam para Lisboa (pela gastronomia não é difícil perceber que estamos em Lisboa, não estamos no sul de Espanha ou na Grécia…). Mas na verdade eu não procurei esconder isso, camuflar mas dar a entender que no fundo aquilo que se passou e passa entre nós não é exclusivo da nossa realidade. Ou seja, se quiser uma análise um bocadinho mais sociológica, há coisas que funcionam mal e não são exclusivas nossas.
Lembra-se de países com figuras parecidas?
Se pensar no Lula [Lula da Silva], ele tem muito de Sócrates — ou o Sócrates tem muito de Lula. Há muitos ditadores na América Latina, agora há muitos ditadores — ditadores ou gente que não gosta da democracia — na antiga Europa de leste, no antigo bloco soviético… Em França, o Sarkozy e etc, até o Rajoy, em Espanha. E na Grécia temos de começar a contar pelos dedos… Há algumas figuras da nossa vida social e política que são excelentes figuras de ficção. Nesse aspeto o Rentes é capaz de ter razão, matéria-prima não falta. Aliás, se formos por aí, há imensa coisa na nossa história, no século XX e no século XXI, já… mas nós, os portugueses que escrevem, em geral não temos muito esse hábito, tirando aquela coisa a que se chama género que é o dito romance histórico. Mas habitualmente recua a séculos mais antigos. Por exemplo sobre a história do século XX, sobre a guerra colonial, sobre o período da 1ª República ou sobre o salazarismo — e mesmo agora sobre a democracia — não há quase nada. Há obras sobre os retornados, três ou quatro romances interessantes, mas nós vamos falando muito pouco do que é nosso.
Um deles [romances que falam sobre os retornados] foi publicado pela sua editora, o Hotel do Norte…
Do Rui Ângelo Araújo. Exatamente. Mas a saga começou com a Dulce Maria Cardoso, que tem um livro — os outros delas não li –, O Retorno, que é um livro com piada. O que é engraçado também é que tem alguns pontos de contacto com o do Rui Ângelo, por causa dos hotéis, dos retornados e tal… E é curioso também porque tem alguma relação com um livro meu, O Hotel dos Inocentes, que sai para o ano e não é sobre essa realidade mas tem alguns pontos de contacto por causa do hotel. Mas isso já um aparte. Isso de refletirmos e falarmos muito pouco do que vamos sendo e fazendo não acontece só na literatura, acontece no cinema, em tudo…
Haverá algum pudor — ou temor — em falar do presente?
Pois, há aquela célebre justificação de que ainda estamos muito próximos das coisas para falar sobre elas, que é um mito criado já não sei por quem — esses mitos quase sempre não têm autoria, vão nascendo por geração espontânea — que diz que não podemos falar ou escrever sobre o que estamos a viver. Quer dizer, quando morremos é que não vamos fazer isso de certeza… Há aí um filme que é uma trilogia de um realizador português [“Mil e uma Noites”, de Miguel Gomes] que é um excelente exemplo de uma ficção muito bem feita em cima do acontecimento, em cima dos anos da troika. Agora se se está à procura da verdade com “A” maiúsculo — A verdade –, por aí não dá. Mas não dá agora nem daqui a 100 anos quando alguém resolver escrever sobre o que nós estamos agora a falar. Não nos conheceu, não nos sentiu, não sabe. A distância é uma coisa interessante em sociologia mas é muito pouco interessante em literatura, em ficção. Até na própria poesia, que tem outros mecanismos. Além de outras questões que não têm já a ver com a questão social mas com a escrita, com os modelos que são importados de universos que nos são estranhos.
Em que géneros vê isso acontecer mais?
No teatro, que é uma coisa que eu conheço mais ou menos bem, há uma coisa terrível: os grandes encenadores portugueses não conhecem a dramaturgia portuguesa, quase nunca encenaram peças de autores portugueses a não ser um clássico e mesmo assim muito pouco — tirando o Gil Vicente… E porquê? Porque acham que não existem autores portugueses à altura das suas capacidades. Isto é uma coisa absolutamente terrível, não há nenhum país da Europa em que as pessoas que estão a escrever para o teatro naquele momento não sejam encenados pelos bons e excelentes encenadores que existem e que integram as escolas de teatro. Basta pensar em Inglaterra que tem a Royal Shakespeare Company que só encena autores acabados de nascer, quase. E há uma aversão absoluta a este tipo de situações. E já me perdi…
Partimos da frase do Rentes de Carvalho.
Pois, se nós não falamos sobre as coisas que vamos fazendo, a malta não se pode queixar que não há teatro, que não há literatura… estava a pensar nisto por causa da importação dos modelos. Aqui há uns anos a Sarah Kane, que foi uma dramaturga promessa de teatro inglês, escreveu três, quatro ou cinco peças de rajada, foi encenada na Royal Shakespeare Company e depois suicidou-se. Isto foi há uns quinze anos [morreu em 1999]. Em Portugal, os poucos que escreviam teatro começaram a falar da Sarah Kane. E muitos encenadores jovens começaram a fazer espetáculos: ah, a Sarah Kane… Ela tornou-se um mito urbano assim de um dia para o outro. Aqui à nossa volta passam-se quinhentas coisas e ninguém pega nelas para fazer qualquer coisa — porque não entra na moda. O problema da moda é um problema profundo, não é uma coisa passageira — como a moda é. A moda enquanto sistema de pressão social é uma coisa absolutamente tenebrosa e invadiu todos os nossos níveis de vida. E se este tipo de situações não entram nesse sistema da moda, como dizia o Roland Barthes, não têm visibilidade. E não ter visibilidade é a morte.
Haverá também aí alguma responsabilidade da crítica?
Infelizmente, em Portugal, os jornais desapareceram. Não pode haver exercício de crítica quando não há os locais onde ela se pode exercer. Na década de 1970, em Portugal, após a Revolução, havia 200 jornais diários em papel em todo o país. Hoje, no Porto e em Lisboa haverá quatro ou cinco, não muito mais. Depois há alguns diários regionais que também contam. Mas não havendo muitos, não havendo local onde se possa exercer a crítica, é difícil ela existir. E não havendo o exercício da crítica, o pouco que se vai fazendo fica muito exposto aos fenómenos que são paralelos à moda — o amiguismo, a oportunidade, o oportunismo, a ignorância de muita gente, também… Isso fica tudo muito exposto, muito frágil. Não se pode acusar ninguém, não é? Mas a verdade é que fica. Não temos meios de circulação para uma reflexão sobre aquilo que nós vamos fazendo. E quando estou a falar disto nem sequer falo só dos livros, é tudo muito apressado. Se calhar é assim, tem de ser assim. Ou seja, o mito do século XIX de que a educação era a salvação da humanidade caiu. Não existe. Portanto, o futuro é cada vez muito mais de gente sem cérebro e de umas minorias altamente qualificadas, qualificadíssimas, que mandam no mundo. E que não são necessariamente os poderosos ricos.
A ficção científica já analisou isso, a malta é que não tomou aquilo como uma análise do real. Isto leva-nos para o que falava há pouco: quais são os bons retratos do que nós somos? A ficção científica, por exemplo, antecipou há dezenas de anos uma série de questões de natureza filosófica, sobre o que é que somos, o que é que fazemos no meio disto tudo, etc. Nós é que tomámos aquilo apenas como entretenimento — e não era. Exercer a crítica exige entrar num corpo que à partida é um corpo estranho e é preciso saber entrar lá dentro, sem qualquer tipo de coisas feitas, decisões tomadas, verdades que têm de ser coincidentes [com as dos autores criticados]. Esse exercício é muito difícil. Normalmente a boa crítica, quer em Portugal quer fora de Portugal, foi feita por escritores. No caso da poesia, os grandes poetas eram críticos de poesia e escreviam. Felizmente estão registados em livro imensos trabalhos feitos nessa área. Um crítico não tem necessariamente de ser um romancista, um poeta ou um dramaturgo — mas a atitude poderia ser a mesma. É um exercício muito importante, continua a ser. Mas foram desaparecendo os espaços físicos [para a crítica], mesmo na internet dá-se mais importância à divulgação, o que é ótimo, mas o espaço de crítica propriamente dita foi-se reduzindo…
“Gostava o que livro não fosse identificado como uma brincadeira sobre o Sócrates”
Voltando ao “Primeiro” [inspirado parcialmente em José Sócrates]. Tem traços característicos da maioria dos portugueses? Na personalidade, no modus operandi?
Não. Quer dizer… há uma coisa que eu acho que é típica de sociedades que tiveram períodos longos de ausência de democracia. No Brasil, em Espanha, na Grécia, em Portugal, por exemplo, as democracias quando se instauraram vieram depois de longos períodos de ditadura, todas diferentes umas das outras. E no que se seguiu, nos períodos democráticos, do que eu conheço, os traços que vinham de antes não se perderam por completo. E muitos deles migraram, por exemplo, para as práticas dos políticos no uso do poder. Mas não só: também nas jornalísticas, etc…
Em Portugal vê isso?
Não nos livrámos disso. Os tiques nervosos e ditatoriais, o desrespeito profundo por aquilo que o país é, qualquer ausência de perspetiva de desenvolvimento do país e da sociedade numa perspetiva não interesseira… sei lá, missão pública. Tudo isso, que não existe ou existe erradamente, até já virá de meados do século XIX, se é para ir à génese destas coisas. Não me parece que esta figura que aparece no livro seja especificamente portuguesa mas tem muita coisa do que foi o regime anterior, para não ir muito mais longe… certos tiques, maneiras de atuar, os jogos para preservar os pequenos poderes (da polícia, dos meios de comunicação social, etc). Eu não sou um tipo com muita memória, não faço arquivo dessas coisas mas quem seja mais atento e tenha uma memória mais fina percebe que nós estamos pejados deste tipo de situações. Agora, é curioso que há coisas que eu escrevi que as pessoas me perguntam se não é fulano ou cicrano e eu nunca pensei sequer nessas pessoas, nem as conheço tão pouco. Todos nós conhecemos um bocado as coisas boas e más dos outros, não é? E depois fazemos estas amálgamas. Se nós reduzíssemos a figura do “Primeiro” do Puta de Filosofia ao José Sócrates estávamos a ser redutores, a retirar capacidade de leitura do livro. Se eu quisesse que fosse o Sócrates punha lá o nome dele, não tinha problema com isso.
Poderá não ser totalmente inspirada no Sócrates, mas parcialmente não é?
Sim, ele aparece no livro mas há muitos traços da personagem que não correspondem de todo à figura concreta, sejamos honestos. Há ali muitas coisas que são colagens de muitas outras pessoas. A figura do Søren, por exemplo: é polícia, intelectual e tal, e ninguém o identifica mas eu conheço pessoas assim, da polícia. Não são retratos, são uma mistura… Não se pode dizer que a personagem é o fulano tal, chama-se A, B ou C; não se chama. Agora, há uma figura que aparece no livro, da área do poder, que é uma mistura, isso sim — não vou dizer nomes porque não interessa — de dois tipos de pessoas concretas, que existiram. Um deles do Partido Socialista. Agora, qual é, uma ou outra? Não é uma nem outra, aquilo compõe uma personagem com alguma piada… tal como não se vai procurar o jornalista que no livro ficou com a pança cheia de droga no Kosovo. Sei lá, não faço ideia se existiu uma situação destas, para mim é pura invenção mas se calhar há alguém que conhece um tipo dessa natureza acha que é o fulano tal. Não faço a mínima ideia.
O que se espera é que depois resulte na narrativa, certo?
É. Não sei se aqueles pratos russos são exatamente como estão referidos no livro, por exemplo. Copiei-os, como é óbvio, apesar de conhecer alguns. Mas não sei se é verdade ou não, interessa que seja verdade ficcional, que seja verosímil… verdade não será. Acontece o mesmo com o Primeiro, com algumas das figuras que podem ser mais ou menos identificáveis no livro. Interessa que sejam verosímeis, é isso que a gente espera de um romance. Eu gostava o que livro não fosse identificado como uma brincadeira sobre o Sócrates mas acaba por ser… saiu agora um texto de um crítico de um blogue que é a Rua de Baixo que o identifica como “Primeiro” e equivale a figura do “presidente” ao Cavaco [Cavaco Silva]. Está dito, pronto. Era bom que não se fosse por aí mas acaba por acontecer.
Pensou muito antes de decidir publicar?
Quando havia já uma versão final do livro mas não estava acabado, um amigo disse-me: tu vais publicar isto e vais ter metade das pessoas ferozmente contra ti, por serem socráticos e outra metade ferozmente a teu favor por serem anti-Sócrates. Essa pessoa disse-me para não publicar o livro e eu fiquei a pensar nisso. Hesitei muito porque eu queria fazer este livro, porque achava muita graça a tudo o que está no livro. Não sou daqueles autores que acha que o livro está feito e já não vale nada — eu acho que o livro é bom [ri-se], é a minha vaidade de autor — mas hesitei estes anos todos. Porque queria que o livro valesse por si próprio e não valesse por ser a favor ou contra a alguém.
Conta não precisar do interesse literário do Carlos Santos Silva para que se sigam mais edições?
[Ri-se]. Não, não tenho amigos desses… O livro venderá o que vendem os nossos livros. Se eu tivesse uma expectativa alta tinha feito logo mil ou dois mil [exemplares], fiz 350. O livro anterior fiz 300 e vendeu-se quase tudo embora haja alguma coisa em consignações nas livrarias… A expectativa é que eu possa vender mais ou menos esta primeira edição, não tenho assim muitas expectativas [que surjam mais] a não ser que entre naquela coisa às vezes um bocado terrível que é a moda. Porque aparece numa televisão ou assim…
“É bom ter essa liberdade de ir vagabundeando”
Quantos exemplares costumam ter os livros de poesia da Companhia das Ilhas?
Quando começámos a editar, começámos com 100 exemplares de cada livro. Ainda mantemos muito esse número em muitos dos livros que fazemos, de poesia e de pequenas peças de teatro. Felizmente para nós, em muitos casos as edições vão crescendo de 100 em 100 mas nunca ultrapassam as 500. O que é ótimo numa pequena editora como a nossa. Há um fenómeno aí com as livrarias e tal. Muitas — bem, já são poucas, tirando as cadeias da Bertrand onde nós não entramos — não fazem aquilo que antigamente faziam que era pedir a reposição do livro quando ele esgota. Nós temos que andar atrás das pessoas, até termos a certeza que as livrarias todas onde os livros estão os venderam. Não podemos arriscar estar a fazer uma nova edição e depois ficar com livros. Mas também decidimos caso a caso, costuma acontecer assim com as editoras com a dimensão da nossa.
Tem trabalhado várias linguagens literárias [romance, poesia, teatro]. Não é muito fã da ideia de especialização?
Nos géneros que pratico, chamemos-lhe assim — nos poemas, na ficção, no teatro –, nenhum deles é canónico. Nenhum dos livros que publiquei é claramente uma coisa só, sobretudo os de teatro e ficção. Por exemplo, o meu primeiro romance, que é o Hipopótamos em Delagoa Bay, tem um pouco de tudo, tem uma estrutura completamente virada do avesso.
O romance tem a vantagem de permitir abarcar quase todos os géneros?
Sim, mas se vir a maior parte dos jovens ficcionistas portugueses atuais, na casa dos 40, 40 e poucos anos [C. A. M. tem 63], estão todos ligados a uma coisa muito bem feitinha, muito certinha, sem arriscar nada. Os livros são mais bem escritos, menos bem escritas, com mais ou menos imaginação mas é mais do mesmo. Não estou a dizer que sou melhor ou pior, estou só a dizer que não arriscam por aí além. Eu como não sou um escritor profissional no sentido em que agora há bastantes, estou-me um bocado nas tintas, portanto arrisco. Arrisco sem ser pelo risco em si, pelo gosto do risco, arrisco porque aquilo está a precisar e pronto. Se reparar, neste livro não há praticamente nenhuma descrição de ambientes, há o estritamente necessário para o leitor não se perder. Podia fazer o contrário. Por exemplo, no tal livro que lhe falei há pouco e que há de sair para o ano, se tudo correr bem — o Hotel dos Inocentes –, todo o começo, umas 40 ou 50 páginas, são descrições minuciosas de micro-situações. Mas este é muito teatral.
Este Puta de Filosofia é quase um guião de cinema, aliás, no último dia estava a reler a última prova antes de ele ir para a tipografia e eu estava a pensar que isto já não é um romance, é um belíssimo guião para um filme, perdoem-me a vaidade… Está lá tudo. Se algum crítico escrever sobre o livro, teria alguma graça esquecer-se lá do Sócrates e do Cavaco e não sei quê mais — mas aí a culpa é minha , eu que não fizesse isso. Era interessante que pudessem ver a linguagem, o ritmo do livro, o permanente flashback, os paralelismos, as divagações filosóficas. Acho que isso tinha piada e tem muito a ver com a pergunta que me fez porque há uma mistura de géneros. No Hipópotamos em Delagoa Bay é ainda mais evidente, tem partes documentais, peças jornalísticas roubadas a alguém, a um jornalista moçambicano; tem poemas pelo meio, tem partes de teatro, tem uma estrutura ficcional completamente fragmentada. Aliás, o Miguel Real fez uma crítica razoável no JL sobre o livro em que refere alguns destes aspetos. Mas essa mistura de géneros é a nossa contemporaneidade, não é? Toda a gente deitou os foguetes todos ao americano do A Piada Infinita, o David Foster Wallace, que é assim, uma maluqueira do princípio ao fim, independentemente agora do valor da coisa. Depois noutro registo há o Lobo Antunes, que faz poemas longos, já não são romances. Essa mistura que eu faço e que faço com algum gosto é justamente por não dominar na perfeição nenhuma das técnicas aperfeiçoadas de quem se dedica exclusivamente e profissionalmente a uma dessas coisas só. Mas como também não há um cânone por todos aceite, é bom ter essa liberdade de ir vagabundeando de um lado para o outro.
Não há cânone a que não se possa escapar, é isso?
Não, não há cânone mas muita gente continua agarrada a uma fórmula. Muito do que se faz no romance contemporâneo português é linguagem de telenovela: eu falo, o outro fala, eu falo, o outro responde, a resposta tem que ser consentânea com o que foi dito antes e com o que vai ser dito depois, as pessoas não se ouvem umas às outras, não há silêncio entre palavras, do ponto de vista formal é campo, contra-campo, é tudo iluminado da mesma maneira — não há claro-escuro, não há ruído-silêncio… vai assim.
Gosta de cozinhar? Há muitos momentos gastronómicos no livro, muitas descrições de pratos, muitos petiscos…
Gosto, gosto imenso. A parte portuguesa sei fazê-la, a parte russa é que não [risos]. Mas por acaso aprendi com um amigo meu que está aí na moda agora, que é um génio. Passei um dia em casa dele perto da hora de almoço e ele quis oferecer um almoço, simpático e tal, e disse: vocês vão comendo aí qualquer coisa que eu já venho. Ele morava ali na zona da Estrela, meteu-se no carro, foi à zona do Beato, Marvila, por aí e trouxe uns presuntos russos, matéria-prima russa. Foi lá, comprou meia dúzia de coisas, chegou a casa e fez cheio de requinte dois ou três pequenos acepipes da culinária russa. É um excelente criador e isto faz falta — pegar em qualquer coisa e fazê-la com gosto. E que depois os outros sejam capazes de gostar dela. O Søren também tem essas características.
Pode dizer quem é o amigo?
Posso porque acho que ele não fica ofendido, só estou a dizer coisas boas. É o André Magalhães, que tem dois restaurantes ali na zona do Camões, Taberna da Rua das Flores e li outro dia que abriu outro [Taberna Fina]. É uma das pessoas que se escrevesse (acho que ele não tem esse gosto), acho que escreveria muito bem sobre qualquer coisa. Porque é isso, o tipo resolveu ir ao supermercado, comprou meia dúzia de coisas e com esse gosto depois fez bem um prato qualquer. Não está agarrado a cânones.
É esta a fina taberna que está sob os comandos do mestre André
Não polvilharia sempre os romances de X por centro de discrição e X por cento de diálogos, portanto?
Não, não. Acho que seguia um padrão qualquer porque há sempre um padrão para as coisas — não se pode inventar a partir do nada — mas não acredito muito que alguém consiga planificar um romance de 200, 300 ou mil páginas antes de o começar a escrever, tendo tudo planeado, tudo previsto. Não acredito. Há uma margem grande de liberdade. Há uns que seguem à risca aquilo que planearam mas mesmo nessas situações, enquanto se está a escrever vai-se adaptando as situações que nos surgem pela frente.
O que é que a cozinha e a literatura têm em comum?
Nessas duas formas de ação humana nós temos padrões: pegamos num livro de cozinha, por exemplo, e fulano A faz como julga que é exatamente a receita e fica uma coisa mais ou menos intragável e fulano B segue mais ou menos a receita mas tem aquilo que se chama mão — também há quem tenha mão na escrita… Há pessoas que se vê que não têm mão, a escrever ou a cozinhar. É uma boa diferença entre um bom e um mau escritor ou entre um bom e mau chef. Agora, como é que isso se explica? Não sei — mas essa mão o André tem. Tem esse prazer de chegar alguém ao pé dele e ele pôr-se a imaginar como é que vai dar prazer a esta pessoa ou a este grupo de pessoas. Claro que depois tem muita experiência, conhece muita coisa, já viveu em montes de sítios e tudo o mais. Mas sem essa mão não se pode fazer grandes coisas.
Sem ela também não se escrevem bons romances?
É, há romances aí que têm tudo certo, a que não se pode apontar nada — na definição das personagens, na verosimilhança, na imaginação, em tudo. Mas falta qualquer coisa. Essa qualquer coisa, que é a mão com que se cozinha as coisas, há uns que nunca a terão. Nunca. Tenho um amigo do teatro, já mais velho do que eu, que já fez imensos espetáculos. E esse eu não posso dizer o nome. Uma vez dizia-lhe: o espetáculo está porreiro mas tu não tens alma. Nunca farás espetáculos bons porque falta alma. Na altura usei a expressão alma. Na verdade estava tudo lá no sítio, a dramaturgia, a perceção histórica da coisa, o trabalho com os atores, a cenografia, as luzes, estava tudo… mas faltava a “ialma”, como diz a malta do Porto.
“O panorama parece-me mais rico na poesia do que na ficção”
É leitor, poeta, romancista e editor. Atualmente, em Portugal há melhores poetas do que romancistas?
Eu a prosa conheço melhor o que me chega aqui como editor, portanto, acho que não devo ter opinião generalizada sobre o que se faz de ficção. O pouco que eu tenho lido, não me atrai. Porque é mais do mesmo, não tem nada para acrescentar. A poesia é mais variada e acho que há coisas bastante boas, de uma forma geral. Depois também há muitas coisas que são ingénuas, pessoas a quem falta leitura de poesia para escreverem poesia. Agora o panorama parece-me mais rico e diversificado na poesia do que na ficção — mas também conheço mal [a última]. Há um ou outro de que eu gosto mais, uns mais velhos, uns mais novos, mas não seria honesto estar a dizer-lhe que é bom, mau ou assim-assim. Não conheço suficientemente bem. Também ocupo muito do meu tempo a ler coisas que me chegam à editora e isso tem de ser feito, o tempo escapa… de qualquer modo acho que não estamos mal.
Indo precisamente à editora: quando criou a Companhia das Ilhas, achava que ela tinha capacidade para se tornar sustentável e crescer?
Sinceramente não. Na altura queríamos fazer meia dúzia de livros por ano — pequeninos e tal. Depois foi acontecendo, não foi planeado — não decidimos fazer no primeiro ano X livros, no ano seguinte Y, Z, por aí fora. Foi acontecendo um pouco naturalmente, até à medida das nossas capacidades humanas e financeiras. Não temos estrutura, somos duas pessoas que trabalhamos eventualmente com um amigo nosso na parte do design, às vezes uma coisa ou outra na área da revisão mas muito pouco. Portanto a estrutura é o mínimo possível. Se calhar não devíamos ter crescido — crescido em termos de número de edições.
Companhia das Ilhas: a editora quer por o mundo a ler os Açores
Vamos tentando controlar isso com o menor número de danos possível, tentando manter os registos de qualidade que achamos que são mínimos. Porque há aqui uma questão prática: se nós estivéssemos em Lisboa, a Companhia das Ilhas seria ligeiramente diferente. Ligeiramente, também não seria radicalmente diferente. Uma das diferenças é o facto de estarmos aqui no meio do Atlântico, Açores, e devemos — acho que é uma questão ética — dar atenção ao que nos rodeia. Alguns autores e alguns livros que vamos publicando têm essa componente. Estando num local menos condicionado como Lisboa e Porto, essa questão não se colocaria. Embora alguns dos autores e dos livros, se nos viessem parar às mãos estando nós no continente seriam na mesma editados. Outros não, são editados porque estamos neste contexto e também nos parece importante que as pessoas que fazem esforços para escrever e que são gente mais desempoeirada e tal sejam acarinhados por uma editora que, sendo pequenina, trata bem dos livros, distribui-os, tem um catálogo razoável, etc.
Economicamente foi uma má altura para começarem?
Sim, começámos em plena crise da troika. Começámos em 2011 e começámos a publicar em 2012. Tivemos de constituir uma empresa e começámos com 1.000 euros. Gastámos 300 no notário, ficámos com 700 para fazer livros. Fizemos seis pequenos livros no primeiro ano. Mas foi em plena crise. Aliás, alguém na imprensa, quando nós surgimos, fez notar isso: como é que alguém se lembra de fazer uma editora no meio do Atlântico, numa vila de 300 habitantes, em plena crise, em plena troika, em plena recessão — económica e mental? Porque nós ficámos todos deprimidos, acho eu. Foi aí que nasceu. E agora é assim, é para a frente. Temos livros a mais, propostas a mais mas vamos tentando gerir isso da forma mais simpática possível. Acho que vamos conseguir [ri-se].