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Excerto de "Copo branco belleza dos objectos", obra de Amadeo de Souza-Cardoso, um dos principais destaques deste leilão. A pintura pode vir a ser comprada por mais de meio milhão de euros
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Excerto de "Copo branco belleza dos objectos", obra de Amadeo de Souza-Cardoso, um dos principais destaques deste leilão. A pintura pode vir a ser comprada por mais de meio milhão de euros

Excerto de "Copo branco belleza dos objectos", obra de Amadeo de Souza-Cardoso, um dos principais destaques deste leilão. A pintura pode vir a ser comprada por mais de meio milhão de euros

Uma coleção de referência e um mercado de arte por renovar: quem quer comprar um Amadeo?

Obras de artistas portugueses fundamentais vão a leilão esta segunda-feira. Entre Souza-Cardoso, Vieira da Silva, Sarah Affonso ou Carlos Reis, poderá um leilão renovar a dinâmica deste mercado?

É um caso raro. Muito raro. Segunda-feira vai à praça na leiloeira Cabral Moncada, em Lisboa, uma extraordinária coleção de pintura, que inclui os nomes mais significativos da arte portuguesa do século XIX e primeira metade do XX. Um Amadeo de Souza-Cardoso notável pode vir a ser comprado por mais de meio milhão de euros. Ao todo, são 54 quadros, todos de uma qualidade assinalável. Columbano, Malhoa, Silva Porto, Carlos Reis, Cesariny, Hogan, Escada, Vieira da Silva, Pomar ou Menez são só alguns dos nomes em destaque num leilão que promete abanar o mercado de arte nacional quer ao nível do privado, quer do público.

O quadro apresenta uma etiqueta da Fundação Calouste Gulbenkian com o número 60 colada no verso; foi reproduzido no “Catálogo Raisonné – Amadeo de Souza-Cardoso – Pintura”, da mesma fundação, editado em 2016, aquando da grande exposição que lhe foi dedicada em Paris, no Grand Palais, mostra que também integrou e em cujo catálogo figura; em 1916 integrara exposições de pintura realizadas no Porto, no Salão de Festas do Jardim Passos Manuel, e, em Lisboa, na Liga Naval Portuguesa – Palácio do Calhariz; foi ainda exposto na mostra “Diálogos de Vanguarda”, levada a cabo na sede da Fundação Gulbenkian em 2006 e reproduzida no catálogo; no mesmo ano, marcou presença na exposição que foi patente ao público no Museu Soares dos Reis, no Porto, e no Museu do Chiado, em Lisboa; visitara aquele museu do Porto e o Palácio Foz também em 1959, e posteriormente, em 1985, esteve na Galeria do Diário de Notícias, ainda no Porto.  Badalado e com currículo interessante, este “Copo Branco, Belleza dos Objectos”, datado de 1915/1916, vai a leilão com uma base de licitação de 375 mil euros e uma estimativa de venda de 562 500 euros. É o ex libris deste leilão.

A seu lado, uma tela de Menez “Sem Título” datada de 1984 espera-se que alcance um valor superior a 100 mil euros. É notável. “Réverie”, um José Júlio, tem possibilidades de ser vendida pelo mesmo preço. À volta da mesma ordem de grandeza, a magnífica “Vista de Praia” de António Carneiro define a linha qualitativa do leilão. Mais alto, com uma estimativa de venda de quase 200 mil euros, “Paisagem na Tapada da Ajuda”, de Columbano, destaca, em pequeno formato, a capacidade artística do seu autor. Sarah Affonso, Mário Eloy, Nikias Skapinakis e António Dacosta são ainda dignos de relevo.

Mário Eloy Columbano Bordalo Pinheiro

"O livro azul", de Mário Eloy, "Na floresta de Fontainebleau", de Columbano Bordalo Pinheiro, e "Copo branco belleza dos objectos", de Amadeo de Souza-Cardoso

Compradores “vai haver muitos”, garante Pedro Maria de Alvim, sócio-gerente da leiloeira Cabral Moncada. “O nosso número de clientes quadruplicou nestes dois anos de pandemia, e estamos numa fase eufórica a nível de vendas”, avança ainda. Pedro Maria de Alvim sabe que “quando é muito bom, o mercado paga o que for preciso”. E esse, volta a garantir, “é o preço justo”, aquele que se situa no cruzamento entre a lei da oferta e da procura: “Vendemos pelo preço mais alto possível, mas ninguém compra uma peça por mais do que ela merece”. “Os bens não têm valor intrínseco, têm o valor que o mercado lhes dá em cada momento. Esse valor depende da qualidade, da raridade, da antiguidade e do significado, a quem pertenceu determinada peça.”

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O sócio-gerente da leiloeira assegura que “o melhor serviço que presta ao comprador é o melhor que presta ao vendedor”, falando de um novo paradigma associado aos leilões. “Antigamente, pensava-se que os leilões eram uma coisa para ricos. Imaginava-se que as pessoas chegavam aqui como se tivessem saído de um filme do James Bond. Hoje sabe-se que não é assim. Mais depressa estamos no ebay do que no cinema com o 007. Esbateram-se os estereótipos. Se não se quiser estar presencialmente, licita-se a partir de casa, pelo telefone, no computador, onde quer que haja internet e através de várias plataformas, nacionais e internacionais, do mundo anglo-saxónico à Alemanha, aos Estados Unidos e a Israel.” Um alargamento do mercado que contribui, atesta Pedro Maria de Alvim, para a solidez dos preços. O leilão de segunda-feira não deixará de ser um teste a tudo isto, contando de antemão que os colecionadores de pintura existem por aí e que “há pouca gente com muito dinheiro, mas há muita com bastante”.

"Trata-se de uma coleção doméstica, feita à dimensão de uma casa. Muito boa. E que abrange um ciclo de 120 anos. Começa nos naturalistas, como Aurélia de Sousa e Silva Porto, e vai até José Escada, agregando um quadro de cada artista", diz Bernardo Pinto de Almeida, professor catedrático da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto que avaliou a coleção.

Apresentado como uma verdadeira coleção, coerente, consistente e coesa, este conjunto de obras retrata o que de melhor Portugal conseguiu fazer num período de grande fulgor artístico em toda a Europa. Um naturalismo tardio e um neorrealismo fora de época marcam o país que não soube fugir a um programa de Estado a não ser com a alvorada de mestrias alternativas situadas entre o modernismo e o surrealismo.

“Trata-se de uma coleção doméstica, feita à dimensão de uma casa. Muito boa. E que abrange um ciclo de 120 anos. Começa nos naturalistas, como Aurélia de Sousa e Silva Porto, e vai até José Escada, agregando um quadro de cada artista. Não há insistência em núcleos dedicados a artistas ou a movimentos artísticos, mas o facto é que as peças são muito boas, muito bem escolhidas e reveladoras de um grande gosto”, avança Bernardo Pinto de Almeida, professor catedrático da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto que avaliou a coleção e refletiu sobre ela. “A chegada dela à praça pode suscitar ou estimular uma burguesia para que volte a haver um mercado de arte. Sem mercado de arte não há colecionismo possível”, continua.

"Mãe", de Sarah Affonso, outra das obras em destaque no leilão que acontece esta segunda feira, 18 de outubro

E é aqui que o problema reside sem solução à vista. Portugal ainda não conseguiu criar um mercado de arte dinâmico e capaz de entusiasmar, encorajar e incentivar a sua média e alta burguesia a comprar arte e a colecioná-la. Terá sido sempre assim. O país não tem tradição colecionista. Uma série de circunstâncias históricas, sociológicas e culturais contribuíram para esse estado de coisas. “Com o Terramoto de 1755 em Lisboa, muitos palácios desapareceram e haveria coleções extraordinárias que não escaparam à catástrofe. Por outro lado, está historicamente provado que as Invasões Francesas deram lugar a um saque de grande monta tanto no que respeita aos bens públicos, como aos privados. A Implantação da República alimentou um furor anti-religioso que condicionou a sobrevivência de muita arte”, conta o historiador de arte. Isto apesar de não termos tido a Reforma como os ingleses ou os alemães, criadores de um mercado de arte junto da Flandres que comprou o que dali vinha durante o século XVI. “Admito ainda que a própria Inquisição tenha acabado com muita coisa, tal o furor contra-imagem. Não foi como o protestantismo, mas pôs em marcha uma censura muito grande. Há ainda a expulsão dos judeus, que eram tão só a etnia mais culto e mais rica”, continua Bernardo Pinto de Almeida.

Em contraste com Portugal, explica o professor, Itália desenvolve uma tradição de colecionismo impressionante. São as cidades que se digladiam entre si por mais artistas e mais pintura, são os mecenas que se multiplicam, numa cultura de produção de grande luxo que vai estender-se à França (“o reinado de Luís XIV é um prodígio de luxo”). Com a Revolução Francesa em 1789, Napoleão cria o Louvre e canaliza para lá todas as riquezas roubadas à Igreja e à aristocracia, naquilo a que podemos chamar uma interrupção do patronato privado em benefício do patronato público. É também no fim do século XVIII que a pintura ressurge na Alemanha, desaparecida a partir de Dürer e Cranach.

“O ato cultural em Portugal continua a ser uma cultura de Estado. Não se desfez a tradição do Estado Novo. A apetência privada para o colecionismo cinge-se à tal meia dúzia de pessoas”, conclui Bernardo Pinto de Almeida.

O território nacional sobrevive ainda muito empobrecido à passagem dos Filipes por aqui. O reino tinha sido saqueado para pagar a Invencível Armada, muita coisa tinha sido vendida. Em Alcácer-Quibir perdera-se a maior parte dos jovens aristocratas e ficara a aristocracia mais provinciana sem gosto nem cultura, donde a “rarefação da finança e do sentido de afirmação do gosto”. “Apesar da tradição das artes decorativas existir e ser extraordinária, não parece haver qualquer tradição pictórica e colecionismo ligado à pintura”, afirma o crítico de arte.

A este conjunto de circunstâncias, pode ainda aliar-se o fim da geração de Avis e a passagem da monarquia para muito próximo da Igreja criando “um certo clima piedoso” de não ostentação de luxo. “Enquanto Filipe IV de Espanha, III de Portugal, era o maior colecionador de Ticiano e tinha Velasquez como o comprador da corte a adquirir Rubens para o reino, nós não temos notícia de nada a acontecer por cá. No século XVI há uma pintura magnífica, no século seguinte há alguma, mas já não há tanta, no século XVIII a sua expressão é pouquíssima, Sequeira e pouco mais. Só na segunda metade do XIX aparecem Silva Porto, Pousão, Marques Oliveira, Columbano. Ao lado dos artistas surgem escolas de arte e uma burguesia capaz de se interessar pela pintura. Mas no século XX a tradição colecionista embotou. Entre 1920 e 1926 ainda há compras. Malhoa tem muito sucesso, por exemplo. No entanto, quando Salazar entra há uma clara intervenção do Estado no sentido da criação de uma arte do regime. Em 1936 António Ferro é já o homem que o aconselha”, esclarece Bernardo Pinto de Almeida.

Carlos Reis

"Cristáes", de Carlos Reis, e "Tard dans la nuit", de Maria Helena Vieira da Silva

Portugal continua à margem de uma arte europeia e de uma Europa que colige pintura e avança sempre com grandes coleções e grandes colecionadores. Com o regime, o “Estado ganha essa dimensão não só de orientação do gosto, como também de garantia de sustentação dos artistas, não deixando florescer mercado nenhum. Além disso, há uma negação de tudo o que seja modernista, que passa a ser identificado como arte progressista.” Significa isto, que há uma condição de censura fortíssima na cultura portuguesa durante o salazarismo que se divide entre o Estado e a filosofia comunista. É que “a partir dos anos 40, há uma luta surda entre a arte do regime e a arte neorrealista defendida pelo Partido Comunista Português”, expõe o professor da Universidade do Porto. A possibilidade de se criar uma burguesia forte e capaz de comprar não existe, “a que havia era tão rica que ia comprar a França, à Alemanha e a Inglaterra. Tinha um gosto notável e não queria saber do gosto português para nada”. Como os museus não tinham dinheiro também não compravam, resumindo-se o mercado não sustentável a meia dúzia de pessoas que compram.

“O 25 de Abril também não vem ajudar o mercado nacional, com a estatização económica assiste-se ao declínio da possibilidade de haver colecionismo”, atesta Pinto de Almeida. Com a alvorada cavaquista, apesar de uma liberalização das artes e dos costumes, “surge uma nova burguesia muito agitada, que produz alguma riqueza, mas que não tem gosto, nem preparação. Compra carros, compra roupa e faz viagens. E assim não se consolida nada”, explica. Hoje, o cenário mantém-se. “O ato cultural em Portugal continua a ser uma cultura de Estado. Não se desfez a tradição do Estado Novo. A apetência privada para o colecionismo cinge-se à tal meia dúzia de pessoas”, conclui Bernardo Pinto de Almeida.

“Os bens não têm valor intrínseco, têm o valor que o mercado lhes dá em cada momento. Esse valor depende da qualidade, da raridade, da antiguidade e do significado, a quem pertenceu determinada peça", diz Pedro Maria de Alvim, sócio-gerente da leiloeira Cabral Moncada.

Os fatores históricos, sociológicos e culturais dissiparam-se nos dias que correm e a possibilidade de criação de uma nova geração endinheirada capaz de se interessar pelo mundo das artes ao ponto de avivar o mercado terá que ser consolidada através de acontecimentos como este e muitos outros. É preciso não esquecer que hoje as compras online são o prato forte da economia, despertando, ao mesmo tempo, a vontade de conhecer mais e saber mais. A prova disto está aí: “Quanto mais informação e quanto melhor a sua qualidade, mais fácil é vender”, termina Pedro Maria de Alvim.

“Amadeo de Souza-Cardoso é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX. O limite da descoberta é infinito porque o sentido da descoberta muda de substância e cresce em sentido – por isso que a descoberta do caminho marítimo para a Índia é menos importante que a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso na Liga Naval de Lisboa. Felizmente pra ti, leitor, que eu não sou crítico, razão porque te não chateio com elucidações da arte de que estás tão longinquamente desprevenido; mas amanhã, quando souberes que o valor de Amadeo de Souza-Cardoso é o que eu te digo aqui, terás remorsos de não o teres sabido hotem. Portanto, começa já hoje, vae à exposição na Liga Naval de Lisboa, tápa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a vida não é assim? Não esperes porém que os quadros venham ter contigo, não! Elles teem um prégo atráz a prendê-los. Tu é que irás ter com eles. Isto leva 30 dias, 2 mezes, 1 anno, mas, se tem prazo, vale a pena sêres persistente porque depois saberás também onde está a felicidade.”

Assim escrevee Almada Negreiros em 1916 e assim se reproduz no catálogo que divulga este leilão. Nada mais certo.

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