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“Uma criança com fome não consegue pensar em política ou liberdade.” A realidade dura da infância na Coreia do Norte

Subnutrição, exploração, domínio total do pensamento e até tortura. A cimeira entre Kim e Trump não deve abordar os direitos das crianças — mas na Coreia do Norte eles são violados todos os dias.

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Foi Kim Jong-un que trouxe o tema para cima da mesa, em vésperas da cimeira com o homólogo norte-americano, Donald Trump. “Sou pai, sou marido e tenho filhos. Não quero que os meus filhos carreguem o peso das armas nucleares às costas toda a vida”, terá dito o líder da Coreia do Norte ao secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, aquando da preparação desta cimeira.

A preocupação de Kim com os seus descendentes — e, por arrasto, com toda uma geração de norte-coreanos com um futuro pela frente — esbarra nas violações de direitos humanos a que as cerca de 5,5 milhões de crianças são sujeitas no país. A República Popular da Coreia do Norte (RPCN) enfrenta problemas de carência alimentar e de saúde nos mais novos, cercea a liberdade de acesso à informação desde cedo e recorre a crianças para conseguir mão-de-obra gratuita. Há ainda a limitação de direitos políticos à nascença, agravada para aqueles que nascem numa classe social mais baixa. Alguns menores de idade são mesmo presos juntamente com a família por crimes cometidos pelos adultos. Há violência física para alguns e condicionamento psicológico para praticamente todos, como têm denunciado organizações como as Nações Unidas. A escola é um instrumento fulcral para o conseguir.

O líder norte-coreano, Kim Jong-un, rodeado de "Pequenos Pioneiros" (STR/AFP/Getty Images)

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A informação sobre o “Reino Eremita” é pouca no geral e, no que diz respeito à situação das crianças norte-coreanas, a regra mantém-se. A vida das crianças fora de Pyongyang continua a ser mais misteriosa do que a das que vivem na capital e os constrangimentos que existem sempre no contacto com os locais agravam-se quando falamos de menores de idade. A somar-se a tudo isto está o uso das crianças como instrumentos de coesão do próprio Estado norte-coreano, com as doses de propaganda, aplicadas desde tenra idade, a moldarem o pensamento e as ações desde cedo.

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Uma coisa é certa: as provas disponíveis — quer em relatórios de diferentes ONG, quer através dos relatos daqueles que desertaram — apontam num sentido: “Pode não haver muita informação sobre as crianças, mas cada pessoa que fugiu da Coreia do Norte nos anos 90 lhe dirá que teve uma infância angustiante”, resumiu ao Observador a antropóloga Sandra Fahy, autora da obra Marching through Suffering: Loss and Survival in North Korea (livro sobre o dia-a-dia dos norte-coreanos, sem edição em português). “Não por causa dos seus pais, dirão. Mas por causa da forma como o Estado influencia tudo.” Do berço à maioridade, cada norte-coreano que nasce não é exatamente dono de si, nem do seu destino. E, pelo meio, aqueles que deviam ser mais protegidos são, muitas vezes, sujeitos às agressões mais ferozes.

“Flores-andorinhas”: as crianças-orfãs “desesperadas” que vagueiam pelas ruas, comem do lixo e dormem ao relento

“A meio da manhã, com o mercado no meio da confusão, eu e Young-bum deambulámos atrás de uma mulher com um saco ao ombro. Young-bum cortou a parte de baixo do saco, não de lado, como fazia antes. O conteúdo do saco da mulher caiu para o dele, conteúdo que incluía não só a sua carteira, mas também pequenos pacotes de comida. Então, eu enfiei um tijolo no saco da mulher e fechei o buraco com alfinetes e com muito cuidado, para que ela não sentisse pressão e me apanhasse em flagrante. A vítima, que estava a falar com um vendedor, nem se apercebeu de que fora assaltada. (…) Sentia orgulho e tristeza ao mesmo tempo pelo nosso sucesso, porque agora eu era um ladrão: não roubara apenas um pedaço de pão, mas wons.”
Sungju Lee, em A Cada Estrela-Cadente (ed. ASA)

Sungju tinha apenas 12 anos quando a sua vida mudou para sempre: a sua família, pertencente à elite política de Pyongyang, caiu em desgraça e foi toda enviada para a província. Os pais de Sungju, ali mais expostos à fome que abalou o país nos anos 90, acabaram por sair da cidade em busca de trabalho e comida noutras paragens, desesperados. Sozinho, Sungju acabaria por juntar-se a outros rapazes da sua idade e sobreviver por sua conta e risco. Como eles, milhares de outras crianças norte-coreanas engrossaram as fileiras de gangues improvisados, que roubavam, manipulavam e dormiam ao relento. Chamaram-lhes kotjebi — algo traduzível como “flores-andorinhas”.

“Viver na Coreia do Norte naquele regime, à altura, significava não ter acesso a comida”, resume a antopóloga Sandra Fahy ao Observador. “Portanto, as pessoas ou abandonavam os filhos para tentar ir buscar comida — e por vezes, no caminho, tinham um acidente ou eram presos — ou morriam. As crianças aprendiam a cuidar de si próprias. Ainda recentemente a BBC publicou uma história de uma rapariga que sobreviveu a vender álcool no mercado…”, recorda. “Nem lhe sei dizer quantas histórias destas já ouvi na vida.”

Crianças na cidade norte-coreana de Orang, à beira da estrada (ED JONES/AFP/Getty Images)

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Deixados à sua sorte, os kotjebi sobreviviam como podiam, como revelam os testemunhos de antigos membros destes grupos — que, entretanto, conseguiram fugir do país — à Comissão de Inquérito das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos na Coreia do Norte, o documento mais completo feito por um órgão independente à situação dos direitos humanos na RPCN: “Dormíamos à noite na estação de comboios de Chongjin. Apanhávamos comida ali perto da estação e, quando mendigávamos, as pessoas davam-nos comida. Mas, quando não havia gente na estação, íamos às casas dos oficiais em Chongjin. Ali perto dos apartamentos havia sempre comida que eles deitavam fora e nós íamos lá buscá-la”, revelou à Comissão Kim Hyuk, que, de acordo com o relatório, se tornou um kotjebi aos sete anos, quando a mãe morreu.

No pico da fome, em 1998, os Médicos Sem Fronteiras operavam 64 pontos de alimentação no país. Neles, alimentaram 14 mil kotjebi em apenas 10 meses, segundo revela a tese de doutoramento Childhood Policies and Practices in the DPRK: A Challenge to Korean Unification (Políticas e Práticas de Infância na RPCN: Um Desafio à Reunificação Coreana), do investigador da Universidade de Sydney Christopher Richardson, a que o Observador teve acesso. Atualmente, com a diminuição das carências alimentares, a situação dos meninos de rua melhorou substancialmente. “Mais de uma década depois, a RPCN afirma gerir um aparato considerável para o bem-estar e educação dos órfãos”, pode ler-se na mesma tese. “Há, para os órfãos, 14 berçários e 12 infantários e 17 escolas primárias e secundárias. De facto, Kim Jong-un ligou a sua própria legitimidade a estes órfãos, ordenando que ‘não deverá existir nenhuma criança fraca sob o cuidado do Partido’”.

Contudo, e embora a situação tenha melhorado face à fase aguda dos anos 90, os kotjebi ainda existem — e voltaram a crescer. Um relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU, de 2014, destaca que “o número de crianças de rua começou a aumentar desde a reavaliação cambial de 2009”, já que as reformas cambiais terão provocado novas crises alimentares. E o Livro Branco dos Direitos Humanos na Coreia do Norte, publicado pelo think tank Instituto Coreano para a Unificação Nacional (financiado pelo Governo da Coreia do Sul) em 2014, aponta no mesmo sentido: “De acordo com o estudo conduzido entre 2010 e 2013, 76,1% dos inquiridos [dissidentes que fugiram do país durante estes anos] respondeu que o número de órfãos de rua tinha aumentado (24,9% disse que tinha aumentado bastante) à medida que a vida se tornou mais difícil depois da reforma da moeda.” Não é por isso de admirar que o Comité dos Direitos da Criança da ONU tenha feito recomendações a Pyongyang, em 2017, para que estude quantas crianças de rua existem atualmente no país e para que as reintegre na sociedade. “O Comité nota a informação dada pelo Estado de que não há crianças em situação de rua (kotjebi), mas continua preocupado”, afirma o organismo.

“Não gosto de utilizar esta palavra, mas é uma coisa de terceiro mundo”, analisa Fahy. “Mostra-nos como a Coreia do Norte ainda está presa nos anos 50, de muitas formas.” Os relatos de kotjebis como Sungju só são possíveis porque alguns acabam por conseguir sair do país e revelam a sua história — no caso do jovem de Pyongyang, acabaria por ser o pai, que tinha fugido para a China, a conseguir ir buscá-lo. Mas o passado que trazem consigo é semelhante ao de milhares de outros que continuam nas ruas de cidades como Chongjin. O futuro é que é incerto: “Estas crianças têm um conceito de Estado diferente das restantes, porque não vão à escola e vivem à margem da sociedade. Num certo sentido, isso pode vir a ser positivo, porque podem desenvolver visões diferentes e não serem, no futuro, tão fiéis ao Estado norte-coreano. Mas, ao mesmo tempo, são crianças desesperadas. Não têm qualquer tipo de esperança”, afirma a académica.

Quando a fome é um estado permanente: quase 20% das crianças pequenas sofre de subnutrição crónica

“Quando a grande fome começou em 1994, eu tinha quatro anos. A minha irmã e eu íamos apanhar madeira às cinco da manhã e voltávamos à meia-noite. Eu vagueava pelas ruas, à procura de comida, e recordo-me de ver uma criança pequena, às costas da mãe, a comer batatas fritas. Queria roubar-lhas. A fome é humilhação, a fome é desesperança. Uma criança com fome não consegue pensar em política ou em liberdade. No meu nono aniversário, os meus pais não me conseguiram dar comida. Mas, mesmo sendo criança, consegui perceber o peso nos corações deles.”
Joseph Kim, Ted Talk A Família que perdi na Coreia do Norte. E a que ganhei

As carências nutricionais para a maioria das crianças na Coreia do Norte ainda se fazem sentir. Em média, pesam menos 1 a 3 quilos do que as crianças sul-coreanas (Gerald Bourke/World Food Program)

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A experiência de ser criança na crise alimentar na Coreia do Norte é relatada por Joseph Kim, que também ele veio a ser um kotjebi, uma das crianças “flor-andorinha”, antes de conseguir atravessar um rio gelado até à China. Mas as memórias de uma infância marcada pela fome lancinante e constante são muitas — e degradantes. No seu livro Under the Same Sky (sem edição em português), Kim relata como uma vez conseguiu encontrar, juntamente com a mãe, um restaurante que vendia sopa com carne, tão rara de encontrar. Veio a saber, mais tarde, que os rumores diziam que a carne vinha dos órfãos que deambulavam nas ruas e que eram apanhados para este fim.

Mas, ao contrário de Kim, outros não chegaram a conseguir um passaporte para longe da fome. A Organização Mundial da Saúde estima que, no pico da crise, 93 em cada 1.000 crianças morreram por falta de alimentos. Ninguém sabe quantas terão morrido ao todo: fora, seguramente, largos milhares, entre os 250 mil a 3,5 milhões de mortes estimadas em toda a população.

A subnutrição era característica também dos que sobreviviam, como relatou uma médica à jornalista Barbara Demick, autora do livro A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), publicado em 2009: “As crianças que tratava, nascidas no final da década de 1980 e início da de 1990, eram surpreendentemente mais pequenas, ainda mais pequenas do que ela fora como a criança mais baixa da sua turma na escola primária. Agora, os seus braços eram tão magros que podia envolvê-los com o polegar e o indicador. O tónus muscular era fraco. Era um sintoma conhecido como emaciação, em que o corpo faminto devora o seu próprio tecido muscular.”

E os efeitos da fome e da má alimentação subsistem ainda hoje, apesar do tempo das fomes descontroladas já ter passado, como explicou ao Observador Daniel Schwekendiek, investigador da Universidade de Chicago que se tem especializado no estado da saúde nas duas Coreias: “Atualmente, cerca de 19% das crianças em idade pré-escolar sofre de subnutrição crónica e cerca de 3% sofre de subnutrição aguda. Embora as taxas de subnutrição crónica tenham descido quase 60% desde 1998, altura do pico da fome, continuam a estar perto dos 20% desde 2002. Portanto, podemos dizer com segurança que uma em cada cinco crianças em idade pré-escolar sofre de subnutrição crónica e tem sido sempre assim ao longo da última década”, ilustra.

A situação, mais agravada nas zonas rurais do que na capital modelo de Pyongyang, pode vir a piorar. Isso mesmo diz a UNICEF no seu relatório de ação para 2019 no país, enviado ao Observador: “A seca e as cheias que afetaram o país em 2018 irão exacerbar ainda mais a insegurança alimentar em 2019”, preveem. “Embora os dados estatísticos demonstrem uma descida significativa em atrasos no crescimento, de 28% em 2012 para 19% em 2017, uma em cada cinco crianças abaixo dos cinco anos tem atrasos no crescimento.” A organização, que coloca em 2,5 milhões o número de crianças a necessitar de algum tipo de apoio, propõe-se a tratar este ano cerca de 70 mil crianças que sofrem de doença emaciante.

Um bebé de 17 meses, gravemente subnutrido, recebe tratamento. Imagem de 2005 (GERALD BOURKE/AFP/Getty Images)

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Basta comparar a situação com a dos sul-coreanos para encontrar diferenças significativas, aponta Schwekendiek: “Descobri que o número de crianças com baixo peso na Coreia do Sul é cerca de 0,8% contra 19,4% na Coreia do Norte. Isto significa as taxas de baixo peso no Norte são 24 vezes superiores às do Sul”, explica. E, para ajudar a ilustrar, o investigador coloca a situação em termos muito práticos: “Uma criança sul-coreana em idade pré-escolar pesa um a três quilos a mais do que uma criança norte-coreana.”

Foi por essa razão que Mark Lowcock, vice-secretário para os assuntos humanitários das Nações Unidas, voltou chocado da sua visita oficial mais recente ao país, no verão de 2018 — algo que não acontecia desde 2011. “Uma das coisas mais claras é que há provas de que é precisa ajuda humanitária aqui”, declarou. “Mais de metade das crianças nas áreas rurais, incluindo nas zonas onde estivemos, não têm água limpa, têm fontes de água contaminada.”

A subnutrição e a falta de acesso a água potável traduzem-se numa maior incidência de doenças. O relatório da ONU de 2014 destaca que os dados da OMS, da UNICEF e da Cruz Vermelha colocavam a taxa de crianças abaixo dos cinco anos com problemas respiratórios agudos nos 60% e a de crianças que sofriam de diarreia em 20%. A taxa de mortalidade dessas doenças, em 2002, estava quase nos 80%.

A isto somam-se os cuidados de saúde insuficientes como resposta aos problemas. Se, em Pyongyang, há hospitais com condições em termos de material e medicação, habitualmente destacados em ações de propaganda para as visitas internacionais, a situação está longe de ser a regra no resto do país, como descreveu um funcionário de uma ONG sul-coreana sobre a sua visita ao hospital pediátrico de Nampo, citado por Christopher Richardson na sua tese: “Não havia material para raios-X, nem para fazer análises ao sangue, e o equipamento de endoscopia e de monitorização dos pacientes estava completamente estragado. O telhado estava aberto no centro do edifício, com placas de metal a taparem os buracos. No verão, o calor era insuportável.”

A situação dramática é descrita na primeira pessoa por alguns dos dissidentes da Coreia do Norte, como Ji Seong-ho, que conseguiu sair do país e acabaria convidado do próprio Presidente Donald Trump no discurso do Estado da União em 2018. Mas, antes disso, Ji Seong-ho foi submetido ao impensável, depois de ter caído de um vagão de onde estava a tentar roubar pedaços de carvão para trocar por comida, tendo sido atropelado por outro comboio. A perna e parte do braço ser-lhe-iam amputados, no hospital, numa cirurgia sem anestesia.

“Ainda me consigo lembrar dos instrumentos cirúrgicos que havia na sala. Não houve transfusões de sangue, nem analgésicos. Ainda me lembro de forma vívida, até hoje, do som da serra a cortar o osso da minha perna e da vibração que isso provocou no meu corpo todo (…). Sem quaisquer anestésicos extra, fui enviado para casa e não tínhamos dinheiro para comprar medicamentos. Foi ainda mais difícil do que a morte tentar sobreviver cada dia depois da cirurgia. Todas as noites eu chorava com dores e sussurrava ‘por favor, matem-me’, ‘por favor, matem-me’.” Tinha 14 anos.

A escola: “Aquilo que as crianças não consomem em comida, consumem em ideologia”

“Na aula de artes, pediram-me para desenhar americanos a serem atingidos a tiro, incluindo civis. Estava no livro. Desenhei muito isso quando estava na escola primária, uma vez por semestre. Nas aulas de música, havia letras que diziam ‘Vamos esmagar os americanos’. (…) Nas aulas de literatura, na escola preparatória, aprendíamos poesia. O título de um poema era ‘América Nua’. E dizia que, embora os americanos se vestissem como cavalheiros, era como se estivessem nus. A mensagem era a de que na verdade eles estavam despidos porque não tinham dignidade nem consciência como seres humanos.”
Norte-coreana não identificada, nascida em 1995 em Hyesan (norte do país), num relato à ONG sul-coreana PSCORE

São assim os exercícios na escola norte-coreana, onde a educação é utilizada como arma de propaganda, do infantário à universidade. Ou, como resumiu a antropóloga Fahy, dito em outras palavras, “aquilo que as crianças norte-coreanas não consumem em comida, consumem em ideologia”. Fome de um lado, fartura do outro. Assim se faz o equilíbrio no dia-a-dia de uma criança do “Reino Eremita”.

A sala de aula de um jardim de infância na capital Pyongyang (Carl Court/Getty Images)

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A rotina no sistema escolar da Coreia do Norte é, ao que tudo indica, bem organizada, segundo revelam estrangeiros que chegaram a dar aulas no país, como Stewart Lone ou Suki Kim. As aulas começam às 8h30 da manhã, estão distribuídas em blocos de 45 minutos e acabam oficialmente às 15h. A partir daí, há atividades mais livres, como música, durante a tarde. Todas as turmas têm menos de 30 alunos, regra geral.

Há 12 anos de escolaridade obrigatória, uma medida que foi introduzido pelo regime numa tentativa de “alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio”, de acordo com as Nações Unidas. A mesma organização, contudo, declara preto no branco que há uma instrumentalização do sistema escolar norte-coreano: “As crianças são ensinadas a idolatrar Kim Il-sung, Kim Jong-il e agora Kim Jong-un. Há placas com slogans, posters e desenhos a expressar gratidão ao Líder Supremo nos jardins de infância, independentemente da capacidade de as crianças compreenderem totalmente estas mensagens. Para além das disciplinas normais nas escolas, como matemática, ciência, arte e música, uma porção anormalmente grande do programa é dedicado a ensinar os feitos de Kim Il-sung e de Kim Jong-il, incluindo os Dez Princípios e a versão oficial da RPCN da sua História revolucionária.”

Como exemplo concreto, o académico Andrei Lankov, especialista na Coreia do Norte, relata a experiência a que assistiu, nos anos 80, em dois infantários do país: “Ambos se gabavam de ter uma sala especial para os estudos ‘biográficos’ [dos líderes], com uma grande maquete de Mangyongdae, a vila onde nasceu Kim Il-sung, mesmo no centro. Antes de a aula começar, todas as crianças e o professor faziam três vénias ao retrato de Kim Il-sung e diziam ‘Obrigado, Marechal-Pai!’. E, com este ritual encantador, a lição começava”, relatou o diretor do Korea Risk Group no seu livro North of the DMZ: Essays on Daily Life in North Korea (sem edição em português), publicado em 2007.

Como se não bastasse, parte do dia escolar é, por vezes, ocupado com a obrigação de as crianças levarem a cabo tarefas que constituem trabalho forçado, no entender da Comissão dos Direitos da Criança da ONU, que vão desde trabalhos agrícolas nas zonas rurais à participação em projetos de construção civil, bem como limpezas, transporte de material, etc. Esse trabalho, que se traduz no benefício da escola ou da comunidade, nunca é pago. Constitui, no entender da Human Rights Watch, “um chocante abuso de direitos humanos, condenado em todo o mundo”.

Estudantes limpam o memorial de Kim Il-sung e Kim Jong-il em Pyongyang. A ONU e a HRW denunciam que a maioria das crianças é submetida a trabalhos forçados (ED JONES/AFP/Getty Images)

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A propaganda é incluída no currículo de múltiplas formas: desde os serviços ao bem comum, aos problemas matemáticos que perguntam quantos soldados americanos matou cada soldado do Exército Popular da Coreia, passando pelas músicas cantadas pelas crianças que dizem “não ter nada a invejar no resto do mundo”. Cada elemento de matéria, cada vivência na escola, pode ser adaptado para fins políticos. A estratégia, garante Lankov, é eficaz: “Se usar a minha experiência soviética como guia, creio que o impacto não deve ser sobrestimado nem subestimado. Alguns detalhes irão desaparecer [da mente das crianças], mas as suposições subjacentes devem durar. Os norte-coreanos podem perder a crença nas qualidades super-humanas da família Kim, mas provavelmente demorará muito mais a aprenderem a não esperar muito do Estado ou a tomarem as suas vidas nas suas próprias mãos.

O modus operandi continua nas atividades extra-curriculares, como as permitidas pela Sonyondan, a União das Crianças, supervisionada pela Liga Socialista da Juventude: os campos de férias que tanto deliciam os mais novos são ocupados com jogos de guerra e complementados com um regime semelhante ao dos escuteiros — aprender a orientarem-se na floresta, a prestar socorros médicos básicos, etc. — que instila uma ideia de vigilância permanente e preparação imediata em caso de ataque de um poder estrangeiro. O dia em que um Pequeno Pioneiro recebe o seu lenço vermelho, numa cerimónia a que assiste a família, é, para muitos, “o dia mais feliz da sua vida”.

Mais uma peça no dominó da família Kim, que utiliza as crianças para conseguir assegurar a manutenção do regime: “Ele continua no lugar devido a uma combinação de coerção física e psicológica”, analisa Fahy, que não tem dúvidas em colocar a situação da educação no país como um exemplo de “controlo psicológico de coerção subtil”. “A ideia de que alguém se vai dedicar totalmente a Kim Jong-un, à ideologia socialista e à proteção do Estado está lá, há várias gerações. Está entranhado”, resume.

O dia em que um "Pequeno Pioneiro" recebe o seu lenço vermelho é, habitualmente, um dos dias mais felizes da sua infância (ED JONES/AFP/Getty Images)

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Marcados à nascença. O songbun e a regra das três gerações que coloca crianças na prisão

“À altura eu tinha dez anos e o meu irmão mais novo tinha sete. A razão pela qual fomos presos foi porque os meus avós eram residentes no Japão. E depois eles voltaram à Coreia do Norte e ao início eram bem tratados em Pyongyang, até tiveram um bom apartamento. Mas o meu avô foi alvo de uma purga política e desapareceu. E, por causa do meu avô, todos os membros da minha família foram obrigados a ir para um campo de prisioneiros.”
Kang Chol-hwan, enviado para a prisão de Yodok aos dez anos, em entrevista à NBC

O relato de Kang é um exemplo claro dos efeitos que as ações dos adultos têm na vida das crianças norte-coreanas — e de como o regime não faz grandes distinções entre eles. O songbun, a espécie de casta política existente no país que marca cada criança à nascença, estende-se a todas as ações: à carreira que se pode seguir, com quem se pode vir a casar e até aos castigos penais — como se a criminalidade corresse no sangue de cada criança filha de um dissidente político.

À nascença, cada bebé recebe o seu songbun, determinado pelo songbun de que goza o seu pai: “especial”, “núcleo”, “básico”, “complexo” ou “hostil”. “O songbun de uma criança é impresso no seu corpo da mesma maneira que a pele de um escravo na América pré-guerra civil o marcava como gado. Ao controlar a atribuição de nutrição e de trabalhos, a RPCN criou e reforçou uma hierarquia biológica que espelha a sua hierarquia política”, descreve Christopher Richardson. “É assim tanto para as crianças como para os adultos. Há um mundo de distância entre uma infância experienciada em Pyongyang e outra no país rural, entre os filhos de um quadro do Partido e os filhos de grupos políticos marginalizados, como os descendentes dos prisioneiros de guerra da Coreia do Sul.

Kang Chol-hwan esteve preso desde os dez anos num campo de concentração. Em causa estavam os crimes políticos do seu avô (ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP/Getty Images)

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Daí ao alargar dos crimes dos avós para filhos e netos, vai um pequeno passo. “As famílias na Coreia do Norte são próximas e isso é bom para as crianças. Mas elas também podem herdar um crime — quando se é filho de alguém que violou as regras, é-se considerado manchado” , resume Fahy. Foi o caso de Kang Chol-hwan, enviado para um campo de concentração aos dez anos. Ali esteve outros dez, durante os quais foi forçado a trabalhar numa mina, a assistir à execução pública de outros prisioneiros e a sobreviver comendo milho, ratazanas e vermes. Uma infância roubada por um alegado crime político do avô, sem apelo nem agravo.

A ideia de que o castigo deve perdurar por três gerações é inculcada aos guardas desses mesmos campos, segundo explicou um antigo guarda, Ahn Myung-chol, à Comissão de Inquérito da ONU. O organismo, a par do Departamento de Estado norte-americano, concluiu haver evidências suficientes de que há crianças a serem submetidas a tortura, trabalhos forçados e acesso limitado à educação nesses campos. Shin Dong-hyuk, nascido num campo de concentração, é um dos casos mais conhecidos em todo o mundo. O seu testemunho como dissidente foi fulcral para ilustrar a situação nos campos de concentração norte-coreanos, dos quais se sabe tão pouco. O facto de, mais tarde, ter admitido que alguns dos pormenores que revelou não estavam corretos (como a localização do campo onde nasceu) descredibilizou, em parte, o seu depoimento. Mas os relatos que fez da tortura a que foi sujeito batem certo com os de muitos outros que fugiram de locais semelhantes no país.

Muitos outros dissidentes revelaram nas audições da ONU terem sido forçados a assistir, enquanto crianças, a execuções de outros prisioneiros, razão pela qual a Comissão os considera “vítimas de tratamento desumano e cruel, que viola o Artigo 7 da Convenção Internacional dos Direitos Políticos e Civis”. O regime de Kim Jong-un sublinha que não executa menores de idade, mas há alguns relatos que põem em causa essa afirmação, como explica a Federação Internacional de Direitos do Homem num dos seus relatórios, destacando os testemunhos que dão conta de famílias inteiras que terão sido executadas por atos de canibalismo durante o período da fome — crianças incluídas. Há ainda os testemunhos de dentro dos campos de concentração sobre as crianças mortas a tiro ou pelos cães, por terem tentado fugir. “Tecnicamente é verdade, a RPCN não sujeita crianças a execução judicial como faz aos prisioneiros políticos adultos”, resume Christopher Richardson. “Em vez disso, são simplesmente assassinadas pelo Estado.

Mesmo muitas das crianças que não chegam a ter de enfrentar o sistema judicial sentem que há uma nuvem que paira sobre as suas cabeças. A noção de que, às vezes, há pessoas que desaparecem, bem como a obrigação de ir assistir a execuções públicas como se de uma visita de estudo se tratasse, criam uma série de reações diferentes em diferentes crianças, todas elas traumáticas à sua maneira. Mas o sentimento de vigilância constante vai-se entranhando, tal como o dever de lealdade aos Kims: “Se não olhares, a polícia e o coordenador vão pensar que és traidor”, avisou um amigo a Sungju Lee durante a primeira execução a que assistiu. “No fundo da cabeça de todos os norte-coreanos está a ideia de culpado-por-associação, a de que família e outros próximos de um traidor são destruídos juntamente com o criminoso”, resumiu outro dissidente, Jang Jin-sung. “Eu sabia que esse princípio não era uma ameaça vã.”

Na Coreia do Norte, os pais não podem partilhar tudo com os filhos — para os protegerem e para se protegerem a eles próprios

“[O meu pai] evitava qualquer coisa que me pudesse criar dúvida, bania-as da minha vista. Era uma questão de sobrevivência, não apenas minha, mas da família toda. Portanto ele decidiu fazer de mim um ortodoxo sincero. Um bom filho do Partido.”
Kang Hyok, em Aqui é o Paraíso! (ed. Ulisseia)

Kang, que tinha nove anos quando assistiu à sua primeira execução pública, cresceu numa família privilegiada da elite de Pyongyang, numa das “famílias patrióticas” do regime. Isso não o impediu de, mais tarde, fugir para a China, para tentar escapar à fome. Mas, antes disso, a infância de Hyok foi marcada por uma devoção extrema à família Kim e ao Partido. Os seus pais esconderam de si todas as reservas que alimentavam face ao regime. Era, como ele próprio explica, uma “forma de sobrevivência”.

Na Coreia do Norte as crianças são muitas vezes submetidas a sessões de "Confissão e Crítica", desde cedo (ED JONES/AFP/Getty Images)

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O controlo das ideias, pensamentos e ações dos norte-coreanos começa desde cedo, razão pela qual os pais protegem os filhos não os expondo ao risco. As crianças, contudo, acabam por ser não apenas vítimas desse alheamento como elas próprias se tornam vigilantes dos pais e restantes familiares. Para além da propaganda escolar, a lealdade à família Kim é conseguida de todas as formas possíveis. Nos aniversários dos líderes, são distribuídos presentes e doces, em cerimónias escolares que ficam envoltas numa memória feliz da infância: “A professora ficava em pé em frente ao retrato de Kim Il-sung e Kim Jong-il e chamava cada estudante pelo nome, por ordem alfabética. Quando ela chamava o meu nome, eu ficava tão feliz e fazia uma vénia aos retratos e dizia ‘Líderes mais queridos e grandiosos, obrigado pelo vosso presente e pela vossa bondade’”, recordou um dissidente, citado na tese de Richardson.

“Kim Jong-un e a família Kim são os verdadeiros pais e avós”, resume Sandra Fahy, relembrando os testemunhos como este que foi ouvindo ao longo dos tempos entre os norte-coreanos que entrevistou. “O Estado é o verdadeiro seio, é aquilo que dá mais segurança. Não são os pais.”

Para além dos mecanismos de lealdade, as crianças são, desde cedo, submetidas às sessões de “Confissão e Crítica”, como relata a Comissão de Inquérito da ONU, que fomentam a ideia de que qualquer ação contra o Estado deve ser denunciada. Nessas sessões, as crianças devem confessar que más ações cometeram nos últimos tempos, como ações que podem ter violado os Dez Princípios, numa espécie de confissão coletiva e partilhada. Devem depois comprometer-se a corrigir-se e a melhorar. E, por fim, devem denunciar as más ações que viram os colegas fazer. A participação é obrigatória.

Por tudo isto, os pais acabam por evitar muitas vezes partilhar determinadas coisas com os filhos enquanto são demasiado pequenos. É o caso, por exemplo, das famílias que participam de forma clandestina em igrejas ou qualquer outro culto religioso, proibido pelo Estado. “Têm medo de que os filhos possam dizer algo na escola, têm medo de os colocar em perigo. Da mesma maneira, se os pais tiverem alguma hesitação face ao regime, o mais provável é que não o partilhem com os filhos. Por isso, faz sentido dizermos que o regime torna as relações entre as pessoas delicadas. Não se pode dizer sempre o que se sente, nem sequer à família. Não é que não haja intimidade, mas não há, pelo menos, intimidade política entre pais e filhos.”

E, lá no fundo, cada norte-coreano hesita em verbalizar o que pensa inteiramente, até, por vezes, aos respetivos maridos e mulheres. Quanto mais às crianças, para quem a ideia de lealdade “está primeiro com o Estado”. A possibilidade de que filhos possam denunciar os próprios pais não é, diz Fahy, “assim tão rebuscada”.

A grande maioria das crianças na Coreia do Norte sente que a sua lealdade para com o Estado é, regra geral, maior do que para com os pais (KIM WON-JIN/AFP/Getty Images)

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À beira de mais uma cimeira entre os líderes da Coreia do Norte e dos Estados Unidos, a vida de uma criança no “Reino Eremita” deverá continuar como sempre. Para algumas, a comida continuará a ser pouca e de baixa qualidade. Outras continuarão a vaguear pelas ruas da sua cidade, procurando no lixo e dormindo ao relento. A maioria continuará a ir à escola ouvir os relatos mágicos da infância dos Kims e responder a problemas de álgebra sobre a morte de soldados americanos. “Não consigo imaginar esses problemas a serem alterados dos livros de escola nos próximos tempos”, prevê a antropóloga, destacando que, enquanto as Coreias permanecerem separadas, o regime continuará a apontar o dedo aos EUA. Aconteça o que acontecer na cimeira de Hanói, há coisas que nunca mudam na vida de uma criança na Coreia do Norte.

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